Incoerências no Código de Trânsito Brasileiro

25/06/2015 às 14:09
Leia nesta página:

O Código de Trânsito Brasileiro possui, dos art. 302 a 312, os crimes de trânsito. Entretanto, alguns destes crimes estão completamente incoerentes com o ordenamento jurídico pátrio. Leia este artigo e entenda o motivo.

            Em 1997, o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9.503, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, modificando toda a legislação de trânsito até então vigente. Em seu contexto, trouxe conceitos, infrações administrativas e, nos art. 291 e ss., os crimes de trânsito, sendo que os crimes propriamente ditos foram instituídos entre os art. 302 e 312 do supramencionado diploma legal.

            Foram instituídos 11 tipos penais diferentes, a seguir elencados:

           

        “Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

       

        Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

       

        Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública:

        Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída:

        Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

        Art. 307. Violar a suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor imposta com fundamento neste Código:

       

        Art. 308.  Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:

        Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:

        Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança:

        Art. 311. Trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano:

        Art. 312. Inovar artificiosamente, em caso de acidente automobilístico com vítima, na pendência do respectivo procedimento policial preparatório, inquérito policial ou processo penal, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, a fim de induzir a erro o agente policial, o perito, ou juiz:”

            Entretanto, como muitas de nossas leis não foram cem por cento bem feitas, a legislação de trânsito, no tocante aos crimes em espécie, possui diversas incoerências, causando inúmeros transtornos diários aos operadores de Direito.

            Dentre as incoerências, dá para se citar três delas, às quais se dará ênfase neste texto. A primeira das incoerências – e talvez a mais famosa delas – dá-se no art. 303 do Código de Trânsito. Nele se narra a conduta de causar lesões corporais, de forma culposa, a terceiros, estando na direção de veículo automotor. Como pena, fixa-se a pena privativa de liberdade de período de 6 meses a 2 anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículos automotores. Demonstra-se maior preocupação do legislador em punir aquele que lesiona terceiros na direção de veículo automotor em detrimento daquele que lesiona terceiros de forma geral – eis que a pena da lesão corporal culposa é de 2 meses a 1 ano.

            Todavia, o art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro se preocupa única e exclusivamente nas lesões corporais culposas, deixando a cargo da legislação geral – Código Penal, no caso – tratar das lesões corporais dolosas. O Código Penal trata a lesão corporal de três formas – lesão leve, grave e gravíssima -, tendo como pena das lesões leves a privação de liberdade de 3 meses a 1 ano. Ou seja, quem lesiona culposamente terceiros – aquele que atropela alguém estando com sono, por exemplo – recebe como pena a prisão de 6 meses a 2 anos, enquanto que aquele que lesiona dolosamente terceiros – aquele que joga o veículo em alguém, objetivando machucá-lo – recebe como pena prisão de 3 meses a 1 ano, em caso de lesões leves. Ora, isso é uma grande incoerência legislativa. A pena de lesão corporal dolosa é a metade da pena de lesão corporal culposa, o que é inconcebível, pois viola o Princípio da Proporcionalidade, eis que os crimes dolosos são mais gravosos que os crimes culposos.

            A segunda incoerência da legislação de trânsito se dá logo no artigo seguinte, o art. 304. O dito artigo trata da omissão de socorro na direção de veículo automotor, dizendo ser crime “Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública”, tendo como pena a detenção de seis meses a um ano, ou multa. Estava o legislador trazendo o crime de omissão de socorro do art. 135 do Código Penal para a legislação de trânsito, modificando suas elementares.

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            Todavia, o que realmente chama a atenção nesse artigo é o seu Parágrafo Único, in verbis: “Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves.”. Segundo o dito parágrafo, cometerá crime ainda que sua omissão seja suprida ou a vítima tenha morte instantânea ou ferimentos leves. Omissão suprida ou ferimentos leves, tudo bem. Mas morte instantânea? O crime de omissão de socorro é crime de periclitação da vida e da saúde (Capítulo III, Título I do Código Penal), ou seja, a omissão de socorro é perigosa – e tratada como crime -, pois deixa a mercê da sorte a saúde ou até a vida da pessoa que sofreu acidente – de trânsito, no caso do art. 304. Tem como condão obrigar as pessoas a ajudarem aqueles que estão com a saúde e a vida em risco – como já tratado anteriormente, por causa de acidente de trânsito, no caso do art. 304 – para que estes não venham a falecer ou terem lesionadas suas saúdes – tanto que o Parágrafo Único do art. 135 do Código Penal aumenta a pena em até o triplo em caso de lesões corporais graves ou morte. Mas... se a pessoa teve morte instantânea, pra que socorrê-la? Qual risco de lesão à saúde ou à vida ela sofrerá? Nenhum, uma vez que já falecera. Não gera perigo algum à vida ou à saúde da vítima. E não pode alegar obrigação de socorrê-la para preservar o cadáver, pois não é a omissão de socorro crime contra o respeito aos mortos. Deixar de “socorrer” alguém que morreu instantaneamente é, portanto, fato atípico – eis que não há ofensa ou perigo de ofensa a nenhum bem jurídico penalmente tutelado.

            A última incoerência da legislação de trânsito adveio com a Lei 12.971, de 9 de maio de 2014. Dentre outras modificações, a lei modificou o art. 302 do Código de Trânsito, aumentando-se um § 2º, assim dito:

             “Art. 302 [...] § 2o Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente: 

Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”

            Ou seja, aquele que matar alguém na direção de veículo automotor (art. 302, caput) estando sob influência de álcool ou outra substância psicoativa que gera dependência, ou participa de racha, estará recebendo as iras do novo § 2º do art. 302, ao invés das iras do caput. Entretanto, o referido § 2º determina como penas as mesmas existentes no caput, só substituindo a detenção para reclusão. E mais, pode-se abrir brecha na lei para que não se puna aquele que mata alguém dirigindo veículo automotor estando embriagado, por exemplo, pelas iras do art. 306, eis que o § 2º do art. 302 trata do mesmo assunto, o que geraria bis in idem, vedado no nosso ordenamento jurídico. Fora não haver nenhuma modificação entre as penas do caput e do § 2º do art. 302, eis que ambos são crimes culposos, recebendo, portanto, todas as benesses dadas aos tais crimes – como a pena restritiva de direitos (art. 44, caput, I, in fine do Código Penal). O legislador quis modificar a legislação de trânsito no intuito de reforçar a punição dada a quem dirige o veículo sob efeito de álcool ou praticando richa (como, de fato, fizeram no art. 308, que trata da richa), mas acabou por abrandá-la – ou abrir brecha para tal.

            Criar legislação não é fácil – principalmente legislação criminal, que qualquer palavra colocada erroneamente pode desviar a lei de sua função quando criada -, necessitando de uma grande atenção por parte dos nossos legisladores, o que, decerto, faltou, ao se criar a parte penal do Código de Trânsito Brasileiro.

           

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Sobre o autor
Rodrigo Picon

Formado em Direito pelo Instituto Tancredo de Almeida Neves e pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Rodrigo Picon é advogado, regularmente inscrito pela Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, escritor e contista. Atua nas áreas criminal, empresarial, penal econômica, tributária, difusos e coletivos e de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. É autor dos livros "Direitos Difusos e Coletivos" e "Código Penal Comentado".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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