A exceção da coisa julgada no processo penal

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30/06/2015 às 16:03
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IV   – AS DECISÕES TRANSITADAS EM JULGADO NO JUÍZO CRIMINAL E SUA REPERCUSSÃO NO MESMO JUÍZO OU NO CÍVEL.

AGUIAR DIAS[8], comentando o artigo 1525 do Código Civil, que corresponde ao disposto no artigo 935 do atual diploma civil, diz que o injusto criminal nem sempre coincide em seus elementos com o injusto civil. Assim quando reconhecidos, na instância penal, o fato e a autoria, ainda assim for o acusado declarado não delinquente, por faltar a seu ato algumas das circunstâncias que o qualificam criminalmente( por não estar completo o tipo penal), o julgado não condiciona o civil, para o fim de excluir a indenização, porque não são idênticos num e noutro os princípios que são determinantes da responsabilidade.

Intercomunicam-se as jurisdições  civil e criminal. A segunda repercute na primeira quando reconhece o fato e sua autoria. Nesse caso, a sentença criminal transitada em julgado,  se constitui em título executório no civil(artigo 63 do Código de Processo Penal). Se negar o fato ou a autoria, também de modo categórico, impede, no juízo civil, questionar-se o fato. Se a sentença absolutória apoiar-se em ausência ou insuficiência de provas, remanesce o ilícito civil, como se lê de decisão do Superior Tribunal de Justiça, no RSTJ 7/400.

CAPEZ[9] alerta, ao comentar o artigo 386 do Código de Processo Penal, em suas 6(seis) hipóteses de absolvição, que os incisos II, IV e VI dizem respeito a hipóteses de falta de provas e que ensejam o ajuizamento de ação de reparação de dano, na esfera civil. Não é, portanto, a sentença condenatória transitada em julgado, a única que se reflete no civil, obedecido o que reza o artigo 63 do Código de Processo Penal, no sentido de que transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo civil, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros, uma vez que a sentença condenatória criminal constitui título executório no civil.

O artigo 386 do Código de Processo Penal determina que o juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte  dispositiva da sentença, desde que reconheça:

a)      Estar provada  a inexistência do fato: dessa forma está desfeito o juízo de tipicidade, uma vez que o fato que serviu de subsunção ao modelo legal de conduta proibida não existiu, sendo que, aqui, se impossibilita o ajuizamento da ação civil ex delicto, necessária para a busca da reparação do dano;

b)     Inexistência de prova da ocorrência do fato; aqui inexistem provas suficientes e seguras de que o fato tenha, efetivamente, ocorrido, in dubio pro reo, permitindo-se o ajuizamento de ação civil de indenização uma vez que a absolvição não fará coisa julgada no civil;

c)      Inexistência de infração penal: o fato ocorreu, mas não é típico. Será o caso, inclusive, de aplicação do princípio da insignificância, lembrando que a conclusão de que não há fato criminoso para a absolvição não impede a propositura de ação civil ;

d)     Existência de prova de não concorrência do réu: aqui não está provada a coautoria ou participação;

e)      Inexistência de prova da concorrência do réu: há o fato, mas não se conseguiu demonstrar que o réu tomou parte ativa;

f)      Excludentes de tipicidade ou de culpabilidade: aqui estão o erro do tipo, o erro de proibição, a coação moral irresistível, a obediência hierárquica, a legitima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal, a inimputabilidade e a embriaguez acidental[10];

g)      Prova insuficiente para a condenação: o princípio da prevalência do interesse do réu determina que se o juiz não possui provas sólidas para a formação do seu convencimento, sem poder indicá-las na fundamentação da sentença, tem-se a absolvição. Tal decisão não tem trânsito em julgado no juízo civil, razão pela qual pode ser ajuizada ação indenizatória, naquela esfera.

Destaco que não constitui ato ilícito penal ou civil a prática da legitima defesa, dentro dos pressupostos legais. Não constitui ato ilícito penal ou civil o fato   do policial prender alguém, usando a violência que for necessária, quando há uma prisão regularmente decretada (estrito cumprimento do dever legal). No caso de estado de necessidade, permite-se dizer que, tratando-se de estado de necessidade defensivo, como voltar-se contra um animal ou coisa que gera o perigo atual, necessário de ser afastado, não cabe indenização alguma, desde que para a remoção do perigo não se atinja um inocente. No caso do estado de necessidade agressivo, ou ofensivo, quando alguém se volta contra pessoa, animal ou coisa de onde não provém o perigo atual, mas cuja lesão torna-se indispensável para salvar o agente do fato necessário, pode-se falar em indenização.

Consequência da absolvição é a liberdade do réu, a cessação das medidas cautelares, assecurativas,  como o sequestro, a hipoteca legal, dentre outras medidas, que têm evidente cunho mandamental.

Se for reconhecida a inimputabilidade do réu, deverá o juiz, via sentença absolutória imprópria, aplicar medidas de segurança previstas na parte geral do Código Penal.

Que dizer com relação as hipóteses de arquivamento do inquérito? Se houver novas provas, pode ele ser reaberto. Observe-se o que diz o artigo 18 do Código de Processo Penal.

Já se consignou na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Sumula 524, que arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas.

Novas provas capazes de autorizar o início da ação penal, do que se lê da Súmula 524 do Supremo Tribunal Federal, serão somente aquelas que produzem alteração no panorama probatório dentro do que fora concebido o pedido de arquivamento. A nova prova há de ser substancialmente inovadora e não apenas formalmente nova(RTJ 91/831).

O desarquivamento sem novos elementos deve ser negado quando o inquérito houver sido arquivado por falta de lastro probatório.

Considera-se   que a natureza jurídica do ato processual que determina o arquivamento é uma decisão, não um despacho. TOURINHO FILHO[11] fala em despacho. Data vênia, tal pronunciamento tem conteúdo marcantemente decisório, determinando que se  arquive os autos de uma investigação, a pedido do Parquet, pelas razões fundamentadas que este apresentar. Não seria mero ato de impulso procedimental, de expediente.  O juiz, quando reconhece que há atipicidade, que há prejudicial de prescrição, que há coisa julgada, litispendência e manda  arquivar o inquérito, decide.  Assim como quando reconhece que, do que se investigou no inquérito, houve incidência de legítima defesa. Se entender que não houve tais hipóteses  , apesar do pedido do Parquet, titular da ação penal, no sentido contrário, determinará o envio dos autos ao Procurador-Geral, em ato decisório, para que este decida se mantém o arquivamento ou determine que outro membro da Instituição, por delegação, apresente a denúncia, respeitado o principio da autonomia funcional.

Os despachos  não têm conteúdo marcantemente decisório e, portanto, não são capazes de gerar prejuízo jurídico. Como tal, são irrecorríveis.

Questiona-se se a decisão que determina o arquivamento do inquérito tem a natureza de coisa julgada material, ou seja, se  tem eficácia pan-processual com relação aos demais feitos:

Vislumbro dois casos:

a)      arquivamento com fundamento na atipicidade de conduta: é possível gerar coisa julgada material. Veja-se o decidido no HC 83.346 – SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Informativo 388;

b)      arquivamento com base em excludente de ilicitude ou de culpabilidade: é ainda possível gerar a decisão coisa julgada material e a observação que se faz, para o caso de exclusão de culpabilidade, é o reconhecimento do arquivamento    por doença mental do investigado[12], tendo em vista a possibilidade de aplicação de medida de segurança.

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Outro problema poderá surgir: digamos que o Tribunal, apreciando um recurso, anula todo o processo a partir da denúncia, transitando, formalmente, a decisão em julgado. Pergunta-se: pode, nessa hipótese, o promotor requerer arquivamento ao invés de apresentar nova denúncia. Sim, se ele entender, deve ser apresentada nova denúncia, obedecida sua independência funcional(um dos pilares da Instituição Ministerial), e,  se entender, apreciando novamente a espécie, de requerer o arquivamento, nada o impedirá de assim agir.

O arquivamento, salvo os casos já detalhados, não impõe perpétuo silêncio sobre a investigação. Ao contrário, enquanto não estiver extinta a punibilidade, poderá ser oferecida a denúncia.

O que não se pode conceber é que, após arquivamento do inquérito, e sem elemento novo, venha se dar andamento a uma ação penal baseada nele. Tal se afigura teratológico.


Notas

[1] BOLAFFI, RENZO. L¨eccezioni del diritto sostanziale, 1936, pág. 37,   apud  TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, São Paulo, Saraiva, volume II, pág. 455. 

[2] CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, Almedina, pág. 263.

[3] A preclusão não é sanção processual nem penalidade. A preclusão restringe o exercício da parte para a prática do ato.

[4] O pedido imediato é a tutela jurisdicional pretendida e o pedido mediato é o bem da vida sobre o qual recai a providência.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 10ª edição, pág. 310.

[6] DELITALA, Giacomo. Reato Continuato e cosa giudicata, in Scuola Positiva, 1928, 1ª parte, pág. 119, apud TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2º volume, São Paulo, Saraiva, 12ª edição, pág. 517.

[7] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, volume II, São Paulo, Saraiva, 12ª edição, pág. 515.

[8] AGUIAR DIAS, José de. Apud MENDES PIMENTEL. Da responsabilidade civil, 8ª edição, 2ª volume, Rio de Janeiro, Forense, 1987, pág. 954. 

[9] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal, 13ª edição, São Paulo, Saraiva, 2006.

[10] A teor do artigo 65 do Código de Processo Penal, faz coisa julgada no civil a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. No entanto, tem-se entendido que subsistirá a responsabilidade em indenizar a vítima, quando esta não tenha sido considerada culpada pela situação de perigo. A esse respeito, o julgamento do Recurso Especial 1.030.565/RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento de 5 de novembro de 2008, quando se examinou o reconhecimento de dever de indenizar mesmo em face do estado de necessidade em caso em que houve reconhecimento de culpa concorrente de motorista do ônibus na morte de vítima. Houve um atropelamento à beira da estrada por ônibus que havia sido abalroado por caminhão, em ultrapassagem temerária deste, ocorrido em 1990. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça não atendeu ao recurso da empresa do ônibus e manteve a decisão da segunda instância que entendeu existir responsabilidade civil mesmo quando o ato foi praticado em comprovado estado de necessidade. A jovem foi atropelada e acabou morrendo em um acidente de trânsito que envolveu um ônibus e um caminhão em 1990. Ela estava parada à beira da estrada quando o motorista do caminhão que deu origem ao acidente tentou fazer uma ultrapassagem. A manobra não deu certo e o caminhão atingiu a lateral do ônibus que vinha no sentido contrário. A colisão fez o motorista do ônibus perder o controle do coletivo e atingir a jovem no acostamento, antes de conseguir parar.

[11] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, volume I, São Paulo, Ed. Saraiva, 6ª edição, pág. 353.

[12] Sabe-se que, com a reforma penal  de 1984, Lei 7.209/1984, abandonamos o sistema do duplo binário. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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