A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do processo administrativo de responsabilização (Lei 12.846/2013)

03/07/2015 às 17:49
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Através da Lei Anticorrupção mais uma norma positiva o instituto da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, como instrumento viabilizador da efetividade do processo, no caso, administrativo.

A desconsideração da personalidade jurídica, como todos sabem, consiste em mecanismo que, visando reprimir o uso indevido da pessoa jurídica, gera a suspensão, em caráter excepcional, dos efeitos da separação patrimonial. Portanto, relativizam-se os efeitos da autonomia patrimonial, princípio através do qual não há de se confundir o patrimônio da sociedade com o patrimônio dos seus sócios. Diante de determinado caso concreto, poderá vir a ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica, imputando-se aos sócios ou administradores a responsabilidade pela satisfação da obrigação devida originariamente pela pessoa jurídica. E isso desde que tenham os sócios ou administradores feito uso impróprio do instituto da pessoa jurídica que, segundo a dicção do art. 50 do Código Civil, se revela pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

      No ordenamento jurídico, não só o Código Civil trata da desconsideração da personalidade jurídica. O instituto encontra-se positivado no Código de Defesa do Consumidor (art. 28); na Lei nº 12.529/2011 que dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica (art. 34) e na Lei 9.605/1998 que dispõe sobre as sanções penais e administrativas por infração ao meio ambiente (art. 4º). Embora haja posicionamentos de que o art. 135 do Código Tribunal Nacional também contempla a desconsideração da personalidade jurídica [1], nos parece que a situação retratada no CTN se coaduna melhor com a responsabilidade pessoal dos administradores que agem dolosamente com excesso de poderes ou infração de lei, estatutos ou contrato social [2], aspecto que não pode ser confundido com a desconsideração da personalidade jurídica já que não há qualquer entrave (na autonomia patrimonial e limitação da responsabilidade dos sócios) à responsabilização direta dos administradores, gerentes, diretores, prepostos da pessoa jurídica. O CTN traz uma norma expressa de exceção ao dispor sobre a responsabilidade direta de terceiros.

      Também no âmbito trabalhista se utiliza a desconsideração da personalidade jurídica, embora a CLT não traga qualquer referência expressa acerca do instituto. Os juízes aplicam a técnica a partir do conteúdo do § 2º do art. 2º da CLT, dos dispositivos do Código Civil e também do Código de Defesa do Consumidor, não cabendo neste brevíssimo estudo discorrer acerca dos fundamentos utilizados e sua pertinência com os originais conceitos e pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica.

      Pois bem, a partir da vigência da Lei 12.846/2013, que ficou conhecida por Lei Anticorrupção [3] mais um diploma contempla norma voltada à desconsideração da personalidade jurídica, utilizando-se da seguinte redação:

Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática de atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

      Temos assim, no capítulo que trata do Processo Administrativo de Responsabilização - RAP (Capítulo IV) dispositivo prevendo a aplicação da técnica da desconsideração da personalidade jurídica na hipótese de não pagamento da multa imposta por decisão motivada ou mesmo diante de outras sanções como a restrição ao direito de participar em licitações [4]. Somente para ilustrar, vale o registro de que o processo administrativo é instaurado pela autoridade máxima de cada órgão ou entidade em face da qual o ato foi praticado. A autoridade designará uma comissão que concluirá com um relatório a ser encaminhado à autoridade competente para o julgamento, sendo que o relatório deverá, se apuradas infrações e atos lesivos à administração, tratar das sanções cabíveis e da dosimetria da multa [5]. Nos termos do art. 6º da referida lei as sanções aplicadas na esfera administrativa são: (i) multa em valor que pode corresponder a 0,1 até 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos; (ii) publicação extraordinária da decisão condenatória. Nunca é demasiado o registro quanto a independência entre o processo administrativo sancionador e o processo judicial o qual sujeita a parte infratora a outras sanções dispostas na Lei Anticorrupção (art. 19). Outro aspecto digno de nota diz respeito a possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa. No acervo de decisões do Superior Tribunal de Justiça localizamos posicionamento consignando que “a Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.”[6]

      Relevante também a decisão monocrática no âmbito do STF que, embora deixando claro o cenário de incompleta cognição e da ausência de pronunciamento da Suprema Corte sobre a validade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito dos procedimentos administrativos, consignou a possibilidade de o TCU estender os efeitos da sanção administrativa a outra sociedade composta pelos mesmos sócios, se presentes os pressupostos necessários para tanto. [7]

      Assim, com foco tão somente na relativização da limitação da responsabilidade dos sócios e administradores da pessoa jurídica envolvida no processo administrativo disciplinado pela Lei 12.846/2013 - RAP, passemos a uma breve análise acerca de alguns aspectos importantes extraídos do art. 14 começando pela referência à pessoa jurídica cujo regime de responsabilização é objetivo, isto é, independe da comprovação de culpa na prática de atos lesivos à administração pública (atos definidos no art. 5º).

      Segundo dispõe o parágrafo único do art. 1º, pessoas jurídicas são as sociedades empresárias ou sociedades simples, personificadas ou não, fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente. Portanto, teve a lei a preocupação de elencar as pessoas jurídicas de direito privado particular (sociedades, fundações [8] e associações [9]) com expressa referência a entidades não personificadas, inclusive. A personalidade jurídica, é sabido, se adquire com o registro dos atos constitutivos nos órgãos competentes, surgindo da personificação vários efeitos, dentre eles a formação de um centro de direitos, deveres e interesses distinto dos direitos, deveres e interesses das pessoas que dele participam [10], além da autonomia patrimonial, princípio episodicamente afastado pela aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.


      Portanto, aspecto que salta para imediata reflexão (sem comentar a omissão quanto a partidos políticos e outras entidades de direito privado ou mesmo de direito público no rol das pessoas jurídicas) diz respeito à avaliação de as obrigações (e sanções a elas impostas) de entidades não personificadas poderem vir a ser imputadas aos sócios ou administradores que tenham desviado a finalidade da pessoa jurídica através do abuso do direito. Isso porque umas das implicações para as pessoas jurídicas despersonalizadas já é a responsabilidade solidária e ilimitada dos sócios (art. 990 do Código Civil) não havendo necessidade de se recorrer ao afastamento da limitação de responsabilidade e ineficácia da autonomia patrimonial. [11]

        Avançando na análise do art. 14, temos como pressuposto para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica o abuso do direito manifestado em condutas reveladoras de má-fé dos sócios ou administradores ao facilitar ou encobrir a prática de ilícitos (em desprestígio ao interesse social, por exemplo) ou mesmo ao provocar confusão patrimonial (apropriação de capital e patrimônio sociais; ausência de clara limitação entre o patrimônio da sociedade e o de seus sócios que, inclusive, podem ser outras sociedades). Ao imputar aos administradores e sócios a responsabilidade pelas obrigações da pessoa jurídica envolvida no PAR (e normas a ela direcionadas), suspendendo a autonomia patrimonial, o art. 14 não só expõe os requisitos a serem alcançados (e devidamente comprovados no processo administrativo) como também deixa clara a imputação da responsabilidade aos sócios com poderes de administração, o que leva a interpretação de que os sócios que não tenham exercido a administração não serão afetados pela desconsideração. Embora sem a intenção de investigar a real intenção da lei, não se pode perder de vista que os sócios que não tenham incorrido na prática de abuso da personalidade jurídica, não devem mesmo estar sujeitos à sanção da desconsideração. E mais, possível que algum sócio, sem poderes de administração, seja responsabilizado, sob o regime subjetivo, pessoal e diretamente pela prática de algum ato contrário à lei (art. 3º). Aliás, o inciso III do art. 5º descreve como ato lesivo à administração “utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados”. No caso, trata-se de responsabilidade pessoal e não via desconsideração da personalidade jurídica.

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      Considerando a necessidade de comprovação dos pressupostos autorizadores da imputação de responsabilidade aos sócios e administradores, claro parece que não bastará a mera hipótese de não pagamento da multa para a aplicação da desconsideração. Já quanto a eventual encerramento irregular da sociedade, a tendência nos parece mais direcionada para a presunção de abuso da personalidade jurídica, autorizando a aplicação da desconsideração, inclusive na Execução Fiscal que venha a ser manejada em face da sociedade. [12]

      Bastante positiva é a expressa referência ao contraditório e a ampla defesa oportunizando aos sócios com poderes de administração ou administradores a efetiva demonstração do abuso do direito como pressuposto para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

      Enfim, apesar de a temática retratada no art. 14 ainda comportar várias outras frentes para reflexão e estudo, cingimo-nos a comentar somente algumas, concluindo que a norma em questão, cujo destinatário é a pessoa jurídica envolvida no PAR (aquela que praticou o ato lesivo à administração), tem por vocação redirecionar o conteúdo das sanções legais para os sócios com poderes de administração ou administradores, via desconsideração [13] em prestígio a valores e princípios maiores que molduram o tema e cuja tutela se sobrepõe, como a moralidade administrativa e indisponibilidade dos interesses públicos. E isso no contexto desafiador do não comprometimento da preservação da empresa e da segurança jurídica.


NOTAS

[1] Elizabeth Cristina Campos Martins de Freitas, Desconsideração da personalidade jurídica – Análise à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2002, p. 73
[2] Regina Helena Costa, Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 223
[3] Lei que dispõe sobre a responsabilidade administrativa e civil cuja edição atende aos compromissos internacionais decorrentes de convenções ratificadas pelo Brasil cujo objetivo também estava voltado para o combate à corrupção.
[4] Art. 16 do Decreto nº 8.420, de 18.03.2015 que regulamenta a Lei nº 12.846/2013
[5] Previsão contida no § 3º do art. 9º do Decreto 8.420, de 18.03.2015
[6] STJ, Segunda Turma, RMS 15.166-BA, Relator Min. Castro Meira, j. 07.08.2003. Disponível em https://www2.stj.jus.br Acesso em: 08.06.2015
[7] STF, MS 32494 MC/DF, Relator Min. Celso de Mello, j. 11.11.2013. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia Acesso em: 09.06.2015
[8] O TJRS aplicou a desconsideração da personalidade jurídica determinando o alcance de bens particulares do fundador e representante legal da fundação. Nesse sentido: Décima Quinta Câmara Cível, AI 70009702655, Relator Des. Angelo Maraninch Giannakos, j. 15.12.2004 e AI 70020155255, Relator Des. Ergio Roque Menine, j. 21.06.2007. Disponível em: http://www.tjrs.jus.br Acesso em: 08.06.2015
[9] O Enunciado 284 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal assim dispõe: “As pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de fins não econômicos estão abrangidas no conceito de abuso de personalidade jurídica”.
[10] Francisco Amaral, Direito Civil – Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 322
[11] No mesmo sentido não haveria de se falar em desconsideração em situações envolvendo sociedade controladora e controlada, já que o § 2º do art. 4º prevê expressamente a solidariedade.
[12] Sumula 435 do STJ
[13] Calixto Salomão Filho, O novo direito societário. São Paulo: Malheiros, 2002, p.185

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Sobre a autora
Tania Bahia Carvalho Siqueira

professora universitária.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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