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Rescindibilidade da sentença protegida pela coisa julgada

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01/05/2003 às 00:00
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7. Rescindibilidade da sentença injusta

A sentença injusta, aos olhos do leigo, corresponde à negação do direito. Em havendo error in procedendo ou error in iudicando numa sentença, o ato deve ser combatido via recurso. Transitando em julgado a sentença, por falta de recurso ou pelo esgotamento das vias recursais, só resta ao vencido a ação rescisória, nas hipóteses do art. 485 do Código de Processo Civil, oponível em órgão hierárquico superior no prazo de dois anos, a contar da data do trânsito em julgado, sob pena de decadência do direito àquela ação.

Mas há hipóteses em que se justifica plenamente a rescisão da sentença, quando acoimada de injusta não pela valoração da prova, mas para premiar a legalidade, a moralidade e a boa-fé, quando diante de descoberta da verdade real, que deve se sobrepor à verdade ficta.

No início de 1998 sustentou o E. STJ que a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada[32]. Mas já havia naquele sodalício corrente de pensamento que propugnava mudanças. Lavrando Acórdão, certa feita teve o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira a oportunidade de admitir a possibilidade de se discutir, em ação de investigação de paternidade, o registro do pai biológico no assento de nascimento, quando já havia adoção muito anterior à investigatória. Ficou patente no Acórdão que: Saber a verdade sobre sua paternidade é um legítimo interesse da criança, um direito humano que nenhuma lei e nenhuma Corte pode frustrar. [33]

Fruto de um amadurecimento do pensamento jurisprudencial, a Corte infraconstitucional tem mitigado os efeitos da coisa julgada.

Há que se repensar o conceito da coisa julgada material, mormente quando a sociedade se vê diante de avanços tecnológicos no campo da informática e da biomedicina. Dar à coisa julgada material o manto da irretratabilidade incondicional, muitas vezes leva o jurisdicionado e, porque não dizer, a sociedade, a uma frustração incompatível com os desígnios da lei fundamental, calcada na boa-fé e na moralidade.

Para arrematar, a lúcida posição estampada por José augusto DELGADO, para quem,

A sentença não pode expressar comando acima das regras postas na Constituição nem violentar os caminhos da natureza, por exemplo, determinando que alguém seja filho de outrem, quando a ciência demonstra que não o é. Será que a sentença, mesmo transitada em julgado, tem valor maior que a regra científica? É dado ao juiz esse poder absoluto de contrariar a própria ciência? A resposta, com certeza é de cunho negativo.

A sentença transitada em julgado, em época alguma, pode, por exemplo, ser considerada definitiva e produtora de efeitos concretos, quando determinar, com base exclusivamente em provas testemunhais e documentais, que alguém é filho de determinada pessoa e, posteriormente, exame de DNA comprove o contrário.[34]

A tópica trabalha justamente com problemas. O órgão jurisdicional examina o problema suscitado, à luz da ética, da boa-fé e dos princípios constitucionais. Dos problemas propostos surgem as jurisprudências. Das jurisprudências a possibilidade de súmulas, editadas por força dos incidentes de uniformização, tornando-se precedentes para aplicação do direito ao caso concreto.


8.

Considerações finais

Há que se repensar o atual modelo de justiça, na busca ideal de uma interpretação que se amolde aos princípios fundamentais, sem as amarras do pragmatismo, tornando-o compatível com a evolução da sociedade, que está, cada vez mais, a exigir novos métodos de aplicação do direito.

Não resta dúvida que o tema tem sido objeto de constante debate, suscitando questionamento cada vez maior.

De ver-se que a coisa julgada não pode se sobrepor aos princípios da moralidade e da legalidade. Nem tampouco aos princípios da proporcionalidade ou da razoabilidade.

A sentença, embora coberta com o manto da coisa julgada, não pode ser veículo de injustiça e de certeza quanto à verdade real. Esta deve prevalecer sobre a verdade ficta ou meramente formal.

A imperatividade da coisa julgada, aqui tida como de natureza relativa, pode ser revista, em qualquer tempo, quando eivada de vício grave, capaz de produzir conseqüências que alterem o estado natural das coisas; que estipule obrigações para o estado ou para o cidadão, ou para pessoas jurídicas, que não sejam amparadas pelo direito...

Urge que o sistema legislativo dê sua contribuição para diminuir o fosso existente entre o jurisdicionado e o judiciário. O magistrado, na sua sublime função de julgar, deve ter às mãos mecanismos institucionais para dinamizar a justiça. Sem esses instrumentos, sem esses mecanismos, continuaremos a ter um judiciário capenga, burocrático, sem a efetividade e o dinamismo almejado pela sociedade.

Convém lembrar a necessidade de se ter um magistrado comprometido com a filosofia humanística do direito. Sem essa sensibilidade, sem a exata noção de princípios constitucionais, tende o positivismo a alargar ainda mais esse fosso entre a verdade real e a verdade ficta produzida pela coisa julgada, principalmente quando envolver interesses da família e da fazenda pública.


BIBLIOGRAFIA

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Notas

[1] Hermenêutica e argumentação, p. 13/14.

[2] Dante ALIGUIERI, apud Miguel REALE, Lições preliminares de direito, p. 60.

[3] Roberto de RUGGIERO, Instituições de direito civil, 1 v., p. 26.

[4] Tercio Sampaio FERRAZ JR, Introdução ao estudo do direito, p. 31.

[5] Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, 1770 1831, professor na Universidade de Berlim, onde ingressou em 1817, tornando-se Reitor em 1829. Princípios da filosofia do direito, p. 40.

[6] Edinaldo de HOLANDA BORGES, Teoria científica do direito, p. 79.

[7] Em política, Santo Tomás distingue três tipos de lei, que dirigem a comunidade ao bem comum. O primeiro é constituído pela lei natural (conservação da vida, geração e educação dos filhos, desejo da verdade); o segundo inclui as leis humanas ou positivas, estabelecidas pelo homem com base na lei natural e dirigida à utilidade comum; finalmente, a lei divina guiaria o homem à consecução de seu fim sobrenatural, enquanto alma imortal (Santo TOMÁS DE AQUINO Vida e Obra, Consultoria Carlos Lopes de Mattos, Nova Cultural, 1996, p. 13).

[8] Hans KELSEN, apud Edinaldo de HOLANDA BORGES, Teoria científica do direito, p. 79.

[9] Hugo GRÓCIO, 1583 - 1645, advogado protestante holandês, erudito e aventureiro, um dos pensadores mais influentes da ciência jurídica e política jusnaturalista, em razão do impulso que deu à doutrina do direito natural no século XVII, com sua clássica obra Droit de la guerre et de la paix (F. Chatelet, O. Duhamel, E. Pisier. Dicionário das Obras Políticas, RJ: Civilização Brasileira, 1993, p. 424-431).

[10] Franz WIEACKER, História do direito privado moderno, p. 302.

[11] A esse respeito J. J. Gomes CANOTILHO, ao dispor que Os direitos fundamentais serão estudados enquanto direitos jurídico-positivamente vigentes numa ordem constitucional. Como iremos ver, o local exacto desta positivação jurídica é a constituição. A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados naturais e inalienáveis do indivíduo. (Direito constitucional e teoria da constituição, p. 353).

[12] A Constituição Federal de 1988 contempla esses direitos e garantias nos artigos 5º a 11.

[13] Paulo BONAVIDES, Curso de direito constitucional, p. 235.

[14] Franco MONTORO, Estudos de filosofia do direito, p. 33.

[15] Neste sentido Franz WIEACKER, ao afirmar que o próprio direito natural é, por um lado, uma questão permanente do homem teórico acerca do seu lugar na sociedade e, como tal, uma filosofia social; mas, por outro lado, é uma tradição cultural que se mantém desde os inícios da filosofia helenística até a atualidade (História do direito privado moderno, p. 280).

[16] Roberto de RUGGIERO, Instituições de direito civil, p. 46-47.

[17] Norberto BOBBIO, O positivismo jurídico, p.131.

[18] Miguel REALE, Lições preliminares de direito, p. 64.

[19] Thomas HOBBES, 1588 1679, filósofo inglês, partidário do poder absoluto que admite, ao mesmo tempo, o pacto social. Hobbes não estabelece contradição entre o pacto e o absolutismo; quando bem compreendido, o pacto conduziria necessariamente ao absolutismo. Daí ser Hobbes absolutista sem ser teólogo; não deriva o absolutismo de um direito divino, mas do pacto. Publicou Elementos de lei natural e política (1640), Leviatã ou matéria, forma e poder de uma comunidade eclesiástica e civil (1651), suas principais obras (Hobbes vida e obra, São Paulo: Nova Cultural, 1997, p.5-19).

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[20] David HUME, 1711 1776, filósofo escocês empirista, publicou o Tratado da natureza humana (1739), Ensaios morais e políticos (1741 e 1748), Investigação acerca do entendimento humano (1748), Investigação sobre os princípios da moral (1751), como obras principais. Concebeu a filosofia como ciência indutiva da natureza humana e chegou à conclusão de que o homem é muito mais um ser prático e sensitivo do que racional. Foi fator essencial na formulação do positivismo de Augusto Comte (1798-1857), no utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) e influiu ainda mais profundamente no pensamento de John Stuart Mill (1806-1873). No século XX, os positivistas lógicos devem muito aos fundamentos que Hume lançou para o desenvolvimento de uma teoria da significação. (Hume vida e obra, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.5-13).

[21] VILLEY, apud Franco MONTORO, Estudos de filosofia do direito, p. 37.

[22] Franco MONTORO, Estudos de filosofia do direito, p. 41.

[23] Michel VILLEY, Filosofia do direito, p. 170.

[24] Enrico Tullio LIEBMAN, Manual de direito processual civil, p. 42.

[25] Vide, a propósito, o ensaio da professora Margarida Maria LACOMBE CAMARGO, in Hermenêutica e argumentação, p. 63.

[26] Miguel REALE, Revista de Direito Privado nº 09, 2002, Visão geral do novo Código Civil, p. 11.

[27] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª ed. Forense, Rio, 1998, p.160/161.

[28] É sua a observação de que no desempenho de suas funções jurisdicionais, deve o juiz manter-se sintonizado com a realidade social que o envolve, procurando, a cada demanda que lhe toca, decidir de forma criativa, aplicando a lei abstrata de modo mais amplo e inteligente e interpretando com largueza formas estáticas do processo, que, por sua rigidez, levam à ineficiência das instituições e ao desprestígio da Justiça (Ética Geral e Profissional, ed. RT, São Paulo, 1998, p. 239).

[29] Theodor VIEWYG, Tópica e jurisprudência, p. 33.

[30] Margarida Maria LACOMBE CAMARGO, ob. cit., p. 270.

[31] Suzana de Toledo BARROS, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, p. 95/96.

[32] Espera-se que o STJ venha repensar a posição firmada em maio de 1998, quando editou Acórdão, em REsp: Ação de negativa de paternidade. Exame pelo DNA posterior ao processo de investigação de paternidade. Coisa julgada. 1. Seria terrificante para o exercício da jurisdição que fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada que confere ao processo judicial força para garantir a convivência social, dirimindo os conflitos existentes. Se, fora dos casos nos quais a própria lei retira a força da coisa julgada, pudesse o magistrado abrir as comportas dos feitos já julgados para rever as decisões não haveria como vencer o caos social que se instalaria. A regra do art. 468 do Código de Processo Civil é libertadora. Ela assegura que o exercício da jurisdição completa-se com o último julgado, que se torna inatingível, insuscetível de modificação. e a sabedoria do Código é revelada pelas amplas possibilidades recursais e, até mesmo, pela abertura da via rescisória naqueles casos precisos que estão elencados no art. 485. 2. Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada. 3. Recurso Especial conhecido e provido. Por unanimidade, conhecer do Recurso Especial e dar-lhe provimento. (STJ - Recurso Especial (REsp) - nº 107248 - GO - Rip: 199600571295 - Rel. Carlos Alberto Menezes Direito 3ª T - j. 07/05/1998).GN.

[33] S.T.J., 4ª T., Recurso Especial nº 4.987 RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, por maioria, DJU de 28/10/91, RSTJ 26/378).

[34] Pontos polêmicos das ações de indenização de áreas naturais protegidas. REPRO 103, p.21.

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Sobre o autor
Luiz Tadeu Barbosa Silva

advogado, mestre em Direito pela UGF/RJ, professor da UNIGRAN em Dourados (MS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luiz Tadeu Barbosa. Rescindibilidade da sentença protegida pela coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4069. Acesso em: 22 dez. 2024.

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