Introdução
O presente estudo busca contextualizar aspectos relevantes da obra “A Condição Humana” de Hannah Arendt e suas contribuições para os estudos sobre a reconstrução dos Direitos Humanos. Neste contexto, destaca-se a obra de Celso Lafer, o qual apresenta um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt em seus estudos sobre a reconstrução dos direitos humanos. Continuam a persistir no mundo contemporâneo situações sociais, políticas e econômicas que contribuem para tornar os homens supérfluos e sem lugar na sociedade. Daí o interesse e a sugestividade de um diálogo com o pensamento de Arendt para uma reflexão sobre as condições de possibilidade de uma das propostas básicas da modernidade, que é a da conversão, com os direitos subjetivos e os direitos humanos, do homem como o sujeito de Direito, legitimador do ordenamento jurídico.
Na Obra A Condição Humana, Hannah Arendt empreende uma investigação histórico-filosófica visando discernir melhor o tipo de ação e engajamento a apresentar existência política. A obra tem uma preocupação fundamental com o problema de reafirmar a política como uma referência valiosa da ação humana.
1.Contextualização da obra A Condição Humana de Hannah Arendt
Na obra “A condição humana” Hanna Arendt apresenta, inicialmente, uma análise sobre o que é específico e genérico na condição humana através da compreensão das atividades: labor, trabalho e ação, as quais integram a vita activa.
Com esta expressão vita activa, Arendt pretende designar três atividades humanas fundamentais, sendo elas o labor o trabalho e a ação. Entende que são atividades fundamentais, pois a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo e metabolismo tem a ver com as necessidades vitais produzidas pelo labor no processo da vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, produzindo um mundo artificial de coisas diferentes do ambiente natural. A ação seria a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação de coisas. Corresponde à condição humana da pluralidade. Esta pluralidade é a condição de toda vida política[1].
Observa-se que o estudo destas atividades da condição humana é fundamental para a compreensão sobre a liberdade do homem no espaço público e sua coragem política.
As três atividades e suas respectivas condições tem íntima relação com as condições mais gerais da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados, ou seja, tudo aquilo com a qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. A objetividade do mundo e a condição humana complementam-se uma a outra, por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana.
A expressão vita activa é sobrecarregada de tradição. Deriva seu significado da vita contemplativa, sua limitada dignidade deve-se ao fato de que serve às necessidades e carências da contemplação num corpo vivo. Logo, Arendt propõe que o uso desta expressão está em manifesto conflito com a tradição e duvida não da validade da experiência que existe por trás desta distinção, mas da ordem hierárquica que a acompanha desde o inicio[2].
Para Arendt todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos, mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas, somente duas eram consideradas políticas: a ação e o discurso, dos quais surge a esfera dos negócios humanos. A ênfase passou da ação para o discurso e para este como meio de persuasão como forma humana de responder, replicar e enfrentar o que acontece ou que é feito. O ser político, o viver em uma polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão e não através de força ou violência.
Neste contexto, interessa a dificuldade que se experimenta em compreender a divisão decisiva entre as esferas públicas e privadas, entre as esferas da polis e da família e entre as atividades pertinentes ao mundo comum e aquelas referentes à manutenção da vida. É muito provável que o surgimento da cidade-estado e da esfera pública tenha ocorrido às custas da esfera privada[3].
Observa-se que para Arendt a esfera da polis era a esfera da liberdade e se havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis. A liberdade situa-se na esfera do social e a força e a violência torna-se monopólio do governo. A liberdade situa-se na esfera política. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Dentro da esfera da família a liberdade não existia, pois o chefe da família só era considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política.
Um fator decisivo é que a sociedade exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um de seus membros um certo tipo de comportamento impondo variadas regras, todas tendentes a normalizar os seus membros. O que tradicionalmente se denomina de estado de governo cede lugar à mera administração. O termo público significa que tudo que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível[4].
A Autora expõe que parece ser da natureza da relação entre as esferas pública e privada que o estágio final do desaparecimento da esfera pública seja acompanhado pela ameaça de igual liquidação da esfera privada. Somente com o surgimento concreto deste mundo comum, com a ascendência da cidade-estado, pôde este tipo de sociedade privada adquirir sua importância política[5].
Logo que passou à esfera pública, a sociedade assumiu um disfarce de uma organização de proprietários que, ao invés de se arrogarem acesso à esfera pública em virtude de sua riqueza, exigiram dela proteção para o acúmulo de mais riqueza. Embora a distinção entre privado e público coincida com a oposição entre necessidade e liberdade, entre a finalidade e a realização, e, finalmente entre a vergonha e a honra, não é de forma alguma verdadeiro que somente o necessário, o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar adequado na esfera privada.
Segundo Arendt, em sua qualidade humana, a ação, o discurso e o pensamento têm muito mais em comum entre si que qualquer um deles tem com o trabalho ou o labor. Todo o mundo fatual dos negócios humanos depende, para sua realidade e existência contínua, em primeiro lugar da presença de outros que tenham visto e ouvido e que lembrarão, em segundo lugar, da transformação do intangível na tangibilidade das coisas[6].
A ascensão da sociedade trouxe um declínio simultâneo das esferas pública e privada, mas o eclipse do mundo público comum, fator tão crucial para a formação da massa solitária e tão perigoso na formação da mentalidade, alienada do mundo, dos modernos movimentos ideológicos de massas, começou com a perda, muito mais tangível, da propriedade privada de um pedaço de terra neste mundo[7].
Arendt finaliza sua obra afirmando que a atividade de pensar, que fiéis à tradição pré-moderna e moderna omitem de nossa reconsideração da vita activa, ainda é possível e ocorre onde quer que os homens vivam em condições de liberdade política. Em uma tirania é muito mais fácil agir do que pensar. Como Experiência vivida sempre se supôs que a atividade de pensar fosse privilégio de poucos. Encerra a obra com as palavras de Catão: “Nunca ele está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só que quando a sós consigo mesmo[8].
2.O diálogo entre A Condição Humana e a Reconstrução dos Direitos Humanos de Celso Lafer
Na obra “A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt”, Celso Lafer inicia sua análise com o verso do poeta grego Arquíloco de que “muitas coisas sabe a raposa; mas o ouriço uma grande coisa”. A partir desta afirmação Isaiah Berlin[9] propôs um critério para classificar escritores e pensadores, diferenciando-os a partir de certos traços definidores de suas obras. Os ouriços relacionam tudo a uma visão unitária e coerente, que funciona como um princípio organizador básico do que pensam e percebem. São as raposas, que dessa maneira exprimem uma perspectiva centrífuga e pluralista da realidade[10].
Lafer afirma que Hannah Arendt, cuja reflexão é o ponto de partida da obra, é tanto ouriço quanto raposa. Ela é um ouriço na percepção da ruptura trazida pela experiência do totalitarismo, que levou às últimas consequências a modernidade que, na vertente capitalista, comportou o nazismo e na vertente socialista o stalinismo. Em síntese, para Hannah Arendt o “tudo é possível” da experiência totalitária mostrou como uma forma até então inédita de organização da sociedade assumiu, explicitamente, em contraposição aos valores consagrados da Justiça e do Direito e avocados pela modernidade, com o individualismo, da perspectiva que os seres humanos são supérfluos e descartáveis.
Hannah Arendt é uma raposa na sua percepção da realidade que ela encara como ontologicamente complexa e rica nas suas particularidades e contingências e na sua proposta de reconstrução. Esta proposta almeja o exame das condições políticas e jurídicas que permitam assegurar um mundo comum, assinalado pela pluralidade e pela diversidade e vivificado pela criatividade do novo, que através do exercício da liberdade, que está ao alcance dos seres humanos, impeça a reconstituição de um novo estado totalitário de natureza[11].
São reais os riscos de reconstituição de um estado totalitário de natureza, cuja emergência configurou a ruptura, com a qual Hannah Arendt, enquanto ouriço, preocupou-se centripetamente, e à qual ela reagiu como raposa, afirmando a importância, para a dignidade humana, do pluralismo centrífugo de um mundo assinalado pela diversidade e pela liberdade. Continuam a persistir no mundo contemporâneo situações sociais, políticas e econômicas que contribuem para tornar os homens supérfluos e sem lugar num mundo comum.
Daí o interesse e a sugestividade de um diálogo com o pensamento de Arendt para uma reflexão sobre as condições de possibilidade de uma das propostas básicas da modernidade, que é a da conversão, com os direitos subjetivos e os direitos humanos, do homem como o sujeito de Direito, legitimador do ordenamento jurídico.
Lafer analisa o paradigma clássico da reflexão metajurídica, que é a do Direito Natural. Tem como pressuposto a ideia de imutabilidade de certos princípios, que escapam à História, e a universalidade destes princípios, que transcendem a Geografia. No mundo moderno o paradigma do Direito Natural foi capaz de lidar, até o século XVIII, com os problemas da crescente secularização, sistematização, positivação e historicização do Direito, mas a intensidade destes processos levou à sua erosão. Daí o aparecimento de um novo paradigma: o da Filosofia do Direito[12].
O novo paradigma da Filosofia do Direito é uma resposta ao processo da crescente positivação do Direito pelo Estado, um processo que realçou o papel do Direito como instrumento de gestão e comando da sociedade através da técnica das ordens e proibições, dos estímulos e desestímulos às condutas humanas.
Na explicitação deste paradigma, foram definidos campos de investigação que tem a sua raiz nestes problemas. O primeiro é o metodológico. Prende-se à preocupação que caracteriza a Filosofia moderna com as possibilidades de conhecimento e diz respeito ao exame crítico e à legitimidade epistemológica dos procedimentos intelectuais de que se vale o jurista para comprovar, interpretar, integrar e conciliar normas de Direito positivo. O segundo é o da validade formal da norma e diz respeito à necessidade de definir o Direito pela forma, por meio de categorias internas ao próprio sistema jurídico, pois dada a contínua mudança do Direito Positivo, tornou-se impraticável identificar o jurídico por seu conteúdo. O terceiro campo é o da efetividade da norma em relação aos seus destinatários, que foi sendo articulado na medida em que a experiência jurídica pressupõe a referibilidade das normas a comportamentos reais, e este pressuposto colocou-se como problemático na vida do Direito Positivo. Finalmente, o quarto campo é o da justiça da norma, que foi sendo explicitado como campo autônomo por força da crise da legalidade que também tornou problemática a identificação da justiça com a lei[13].
A ruptura surge, provocando, o hiato de que fala Hannah Arendt, e levando ao desconcerto epistemológico, quando a lógica do razoável que permeia o paradigma da Filosofia do Direito não consegue dar conta da não-razoabilidade que caracteriza uma experiência com a totalitária. Assim, dando sequência á análise do tema da ruptura procurando mostrar, num primeiro momento, quais são, no campo do pensamento, as raízes do desconcerto epistemológico que está ligado, de acordo com Hannah Arendt, à dissolução da identidade entre ser e pensamento e, consequentemente, do pressuposto de harmonia entre o homem e o mundo[14].
A reflexão Arendtiana sobre os direitos humanos é fragmentária. Tanto a relevância de um diálogo com o seu pensamento, quanto a liberdade com a qual deve ser conduzido, pois tem como objetivo tratar de assuntos que ela não tratou.
Na segunda parte da obra Lafer mostra como, no jusnaturalismo moderno, foi sendo elaborada a ideia de direitos inatos, tidos como uma verdade evidente, que seriam a medida da comunidade política mas que dela independeriam. Indica-se a seguir como a positivação das Declarações de Direitos Humanos, nas constituições, tinha como objetivo conferir segurança aos direitos nelas contemplados, para tornar aceitável pela sociedade a variabilidade do Direito Positivo, requerida pelas necessidades da gestão do mundo moderno. O processo de positivação não desempenhou esta função a que aspirava o paradigma do Direito Natural, na vertente moderna, pois o elenco dos direitos do homem contemplados pelo Direito Positivo foi-se alterando do século XVIII até os nossos dias[15].
Lafer trata do seguimento em larga escala dos refugiados e apátridas. Estes assinalam, com a emergência do totalitarismo, o ponto de ruptura. Na medida em que os refugiados e apátridas se viram destituídos, com a perda da cidadania, dos benefícios do princípio da legalidade, não puderam valer-se dos direitos humanos. Daí a conclusão de Hannah Arendt, calcada na realidade das displaced persons e na experiência do totalitarismo, de que a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos[16].
Para Lafer, o genocídio não é um crime contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. É um crime que ocorre, lógico e praticamente, acima das nações e dos Estados, das comunidades políticas. Diz respeito ao mundo como um todo. É, portanto, um crime contra a humanidade que assinala, pelo seu ineditismo, a especificidade da ruptura totalitária[17].
O totalitarismo, na exata medida em que representou uma proposta de organização do Estado e da Sociedade, que escapa ao bom senso de qualquer critério razoável de Justiça, recolocou em novos termos o tema clássico da resistência à opressão.
Celso Lafer examina como o paradigma do Direito Natural tratou o direito de resistência, com base na ideia de uma reciprocidade de direitos e deveres na interação entre governantes e governados, que não existindo enseja o direito de revolução. Mostra como o direito de resistência foi inicialmente consagrado nas Declarações do século XVIII, mas desapareceu posteriormente do Direito Positivo, pois a expectativa, contemplada pelo paradigma da Filosofia do Direito, era no sentido de que a positivação, pelo Direito Constitucional, de importantes instrumentos destinados a evitar o abuso do poder seria suficiente para impedir a opressão[18].
A ruptura totalitária opera, na prática, através do isolamento, que destrói a possibilidade de uma vida pública autêntica. Por isso, a reconstrução inspirada em Hannah Arendt da temática dos direitos humanos diz respeito àqueles direitos que devem ser tutelados, pois podem impedir, se exercidos, a reconstituição de um estado totalitário de natureza através de garantia de uma sobrevivência do espaço público. A reconstrução do tema dos direitos humanos elaborada com base em desenvolvimentos ou sugestões contidas na obra de Hannah Arendt não leva a um sistema. Permite identificar problemas que são importantes e se tornaram relevante em virtude da ruptura totalitária. A identificação destes problemas resulta em prejuízo, uma faculdade da mente com a qual Hannah Arendt se preocupou, mas sobre a qual não chegou a escrever como pretendia.
O juízo, entendido como a faculdade de subsumir o particular no geral é um dos temas fundamentais do Direito, pois uma das características da experiência jurídica moderna é o processo por meio do qual o caso concreto é qualificado pela normal geral. A lógica razoável do paradigma da Filosofia do Direito explorou amplamente, em matéria de hermenêutica jurídica, as dificuldades da subsunção. Entretanto, sempre partiu do pressuposto de que existe um geral, ao qual se possa razoavelmente recorrer.
A reflexão de Arendt tem como horizonte o problema de como julgar um particular, para o qual não existe previamente o dado de um universal. Foi por esta razão que, diante das dificuldades do juízo determinante em situações-limite provenientes da impossibilidade de se aplicar uma regra universal de entendimento a um caso particular, ela explorou o campo dos juízos reflexivos e raciocinantes que entreabrem a faculdade de pensar o particular[19].
Para Lafer estas indicações são suficientes para fundamentar por que uma reconstrução, inspirada em Hannah Arendt, do tema dos direitos humanos, só podia ser tópica e não sistemática, e que existe indiscutível validade nos problemas investigados com base em sua reflexão.
A cidadania é entendida como o direito a ter direitos, pois sem ela não se constrói a igualdade que requer o acesso ao espaço público; a fundamentação da repressão ao genocídio como um crime contra a humanidade, pois o genocídio visa a destruição da pluralidade e da diversidade inerentes à condição humana; o alcance do direito de associação, que gera poder e que, na sua forma mais radical de resistência à opressão em situações-limite, resgata, através da desobediência civil, a obrigação política da destrutividade da violência; o direito à informação, necessário para a preservação do calor da vida humana na esfera privada são um demonstração da eloquente capacidade do pensamento arendtiano de indicar caminhos teóricos a partir de problemas concretos.