Jusnaturalismo e Filosofia política: as contribuições de Leo Strauss em Direito Natural e História

09/07/2015 às 17:30
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A obra Direito Natural e História representa um dos maiores testemunhos da possibilidade da filosofia política no século XX. Como obra de filosofia política, Direito Natural e História tem dimensão filosófica e política no estudo do direito natural.

A obra Direito Natural e História de Leo Strauss apresenta uma dimensão (ou intenção) filosófica e uma dimensão (ou intenção) política. Em Direito natural e história, Strauss segue constantemente esta abordagem. Mas o objeto de análise da obra não é só a vida filosófica, ou a possibilidade da filosofia, mas também o direito natural, ou a sua possibilidade[1].

Direito natural e história abre com o enunciado da Declaração da Independência dos Estados Unidos da América proferidas em 1776. Daqui talvez seja possível concluir que a audiência política a que Strauss preferencialmente se dirige é constituída por patriotas, por leitores orgulhosos do seu país. Em Direito natural e história, Strauss observa que, do ponto de vista das conclusões práticas, Sócrates, o pai fundador da filosofia política clássica, era muito conservador; e na discussão de Burke, a grande referência intelectual do conservadorismo moderno, não se coíbe de afirmar que o conservadorismo de Burke está em pleno acordo com o pensamento clássico[2].

Strauss apresenta sua crítica a três autores abordados em Direito Natural e História: Tomás de Aquino, Locke e Burke. Segundo Strauss, o grande teórico medieval da lei natural, Tomás de Aquino, além de algumas referências em notas de rodapé, não merece mais de duas páginas de comentário num livro que, recorda-se, se ocupa da questão do direito natural[3]. A crítica mais grave incide sobre o esforço global de síntese – ou, na opinião dos adversários do projeto tomista, de confusão – da fé com a razão, que regula a obra de Tomás de Aquino, e que, no entender de Strauss, desliza necessariamente para a subordinação da filosofia à teologia[4].

Dentre as interpretações que Strauss oferece dos filósofos modernos (Hobbes, Locke, Rousseau e Burke), a de Locke foi talvez a mais criticada pelos estudiosos da história do pensamento político. A interpretação de Strauss visa refutar de uma vez por todas a interpretação aceite – a interpretação consagrada pelos estudiosos do século XX – de Locke. A nova orientação interpretativa visa principalmente rejeitar a sugestão da interpretação aceite segundo a qual através do pensamento de Locke se chega a uma conciliação isenta de tensões entre o liberalismo de Locke, o cristianismo (ou a fé, ou a palavra revelada), e a antiga tradição do direito natural, isto é, que existe um percurso intelectual mais ou menos linear, ou uma transmissão sem grandes sobressaltos, que parte da concepção estóica do direito natural, depois passa pela Patrística e pelo tomismo, até chegar a Locke.

A tese de Strauss sobre o significado histórico da obra de Burke também não evitou a controvérsia. O propósito político que subjaz à crítica straussiana de Burke também se percebe pelo fato de se tratar de uma crítica conservadora – em nome do conservadorismo dos clássicos e da possibilidade do direito natural – a um pensador cujos discípulos e inimigos quase universalmente concordam em atribuir o título de fundador do conservadorismo moderno[5].

Em Direito natural e história três grandes pensadores projetam a sua sombra sobre quase todas as páginas. Esses três grandes pensadores com quem Strauss manteve um diálogo mais ou menos explícito e permanente durante toda a vida acadêmica são Martin Heidegger, Carl Schmitt e Alexandre Kojeve[6].

O livro também é uma forma de homenagem e de integração no pensamento de Strauss daquilo que aprendeu com cada um deles. Nesse aspecto, o próprio título da obra, por exemplo, sugere com elegância o caráter completo da relação intelectual de Strauss com Heidegger. Strauss viu na filosofia de Heidegger a mais poderosa manifestação do intelecto humano no século XX. Viu em Heidegger alguém que confrontou o problema. Mas não deixou de apontar à filosofia heideggeriana um defeito nem de vislumbrar nela uma ameaça.

Uma concepção viável do direito natural não pode estar separada da cidade. Por outras palavras, a reflexão sobre a justiça, e que desemboca no direito natural, não pode estar separada do fenômeno social primordial. A perfeição da justiça não pode estar separada da justiça na e da cidade. Por conseguinte, a reflexão sobre a justiça e sobre o direito natural não prescinde da reflexão sobre o melhor regime político. A questão do direito natural não é separável da discussão sobre o melhor regime ou sobre a cidade ideal, que não é outra senão conforme à natureza ou sumamente justa.

Segundo Strauss, além do historicismo radical, os outros dois grandes adversários do direito natural são o positivismo e o convencionalismo. A crítica de Strauss ao positivismo, nomeadamente à distinção entre fatos e valores, pode parecer algo datada, já que a denúncia das contradições filosóficas do positivismo e da dita distinção se tornou num exercício regular[7].

A necessidade do direito natural é tão evidente hoje como foi durante séculos e até milênios. Rejeitar o direito natural é equivalente a dizer que todo o direito é positivo, e isso significa que o direito é determinado exclusivamente pelos legisladores e pelos tribunais dos diversos países[8].

O problema do direito natural é hoje uma questão mais de evocação do que de conhecimento real. A questão do direito natural apresenta-se hoje como uma matéria de lealdade partidária. Na sua forma clássica o direito natural está ligado a uma concepção teleológica do universo. O dilema fundamental, com o qual nos debatemos, tem como causa a vitória da ciência natural moderna. Uma solução adequada para o problema do direito natural não será encontrada antes deste problema básico ter sido resolvido. A ciência social dos nossos dias rejeita o direito natural com dois fundamentais diferentes, embora quase sempre ligados entre si; rejeita o direito natural em nome da História e em nome da distinção entre fatos e valores.

O ataque ao direito natural em nome da história assume, na maioria dos casos, a seguinte forma: o direito natural pretende ser um direito discernível pela razão humana e universalmente reconhecido; mas a história (incluindo a antropologia) ensina-nos que esse direito não existe; em vez de uma presuntiva uniformidade, encontramos uma variedade infinita de noções de direito ou de justiça. Por outras palavras, não há direito natural se não houver princípios imutáveis de justiça. Não se compreende o significado do ataque ao direito natural em nome da história sem antes compreender a perfeita irrelevância deste argumento[9].

Concluir da diversidade de concepções de direito a inexistência do direito natural é uma conclusão tão antiga quanto a própria filosofia política. Esta perspectiva convencionalismo representa o convencionalismo.

O convencionalismo pressupunha que a distinção entre natureza a convenção é a mais fundamental de todas as distinções. A tese de que o direito e a justiça são convencionais significava que o direito e a justiça não tinham qualquer fundamento na natureza, que eram em última análise contra a natureza, sem outra razão de ser além das decisões arbitrárias[10].

A rejeição contemporânea do direito natural em nome da história baseia-se, não em evidência histórica, mas numa crítica filosófica da possibilidade ou cognoscibilidade do direito natural[11].

O reconhecimento de princípios universais tende, assim, a impedir que os homens se identifiquem por inteiro com a ordem social que o destino lhes deu, ou que a aceitem. Tende a aliená-los do seu lugar na terra.

O direito natural é hoje rejeitado, então, não só porque se considera que todo o pensamento humano é histórico, mas igualmente porque se pensa que existe uma variedade de princípios imutáveis de justiça ou de bondade que conflituam uns com os outros, sem que se possa demonstrar a superioridade de um princípio sobre os restantes[12].

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É impossível compreender fenômenos desta natureza sem reter o critério de julgamento inerente à situação, e que é aceite de forma natural pelos próprios atores; e é impossível passar à avaliação efetiva sem recorrer a esse critério[13]. A questão de saber se os inevitáveis e justificáveis juízos de valor devem ser expressos ou suprimidos, deve ser com efeito convertida numa outra questão, a de como devem esses juízos de valor ser expressos, onde, quando, por quem e para quem, está, portanto, sob a jurisdição de outro tribunal que não o da metodologia das ciências sociais[14].

A ciência social só podia evitar os juízos de valor se se mantivesse escrupulosamente dentro dos limites de uma abordagem puramente histórica ou interpretativa. O cientista social teria de se inclinar sem um murmúrio perante a auto-interpretação.

De todos os teóricos modernos do direito natural, o mais famoso e o mais influente foi John Locke. Mas Locke dificulta bastante a a tarefa de reconhecer quão moderno ele é, ou até que ponto se afasta da tradição do direito natural[15].

Locke identifica a vida racional com a vida dominada pela dor que alivia a dor. O caminho para a felicidade faz-se num movimento de afastamento em relação ao estado de natureza, num movimento de afastamento em relação à natureza: a negação da natureza é o caminho para a felicidade. Como não há, portanto, prazeres puros, não há uma tensão necessária entre, por um lado, a sociedade civil, enquanto poderoso leviatã ou enquanto sociedade coerciva e, por outro lado, a vida boa: o hedonismo converte-se em utilitarismo. A vida é a descontente procura de contentamento.

Por fim, a obra apresenta a crise do direito natural moderno. A primeira crise da modernidade ocorreu no pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau não era um reacionário. Ele rendeu-se à modernidade. Seja como for, o seu retorno à antiguidade foi, ao mesmo tempo, um avanço da modernidade[16].

Rousseau atacou a modernidade em nome de duas ideias clássicas: por um lado, a cidade e a virtude, e, por outro lado, a natureza[17].

Segundo Rousseau, a sociedade civil é essencialmente uma sociedade particular ou, com maior rigor, uma sociedade fechada. Enquanto ciência é essencialmente cosmopolita, a sociedade tem de ser animada por um espírito de patriotismo, por um espírito que de modo algum é incompatível com ódios nacionais[18].

Rousseau tenta basear a justiça no entendimento dos homens como eles são, e não como devem ser. O método que Rousseau utiliza consiste numa meditação sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana. Por natureza, a lei natural tem de falar imediatamente com a voz da natureza; tem de ser pré-racional, tem de ser ditada pelo sentimento natural ou pela paixão.

O homem é por natureza bom porque é por natureza esse ser sub-humano que é capaz de se tornar bom ou mau. O homem não tem natureza no sentido preciso da palavra que lhe colocaria no limite ao que ele pode fazer a si mesmo[19].

Com a doutrina do estado de natureza de Rousseau, o direito natural moderno atinge sua fase crítica. Ao analisá-lo meticulosamente Rousseau foi colocado perante a necessidade de o abandonar por completo. Se o estado de natureza é sub-humano, é absurdo regressar ao estado de natureza com o objetivo de aí encontrar a norma para o homem. Com base na premissa de Hobbes tornou-se necessário desistir completamente da tentativa de encontrar o fundamento do direito na natureza, na natureza humana.

O caráter, assim como o conteúdo, do direito natural pode ser decisivamente afetado pelo modo como se concebe a origem do homem. A sua concepção do estado de natureza indica uma doutrina do direito natural que já não se baseia em considerações sobre a natureza do homem, ou indica uma lei da razão que já não é entendida como uma lei da natureza. Pode-se dizer que Rousseau indicou o caráter dessa lei da razão através da sua doutrina da vontade geral, através de uma doutrina que pode ser vista como o resultado da tentativa de encontrar um substituto realista para a lei natural tradicional.

O direito natural assim entendido conduz apenas a deveres condicionais e a uma virtude mercenária[20].

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Miguel Morgado. 70. ed. Lisboa: Biblioteca de teoria política. 2009.

[1] STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Miguel Morgado. 70. ed. Lisboa: Biblioteca de teoria política. 2009. p. XIII.

[2] Ob. Cit. p. XIV.

[3] Ob. Cit. p. XV.

[4] Ob. Cit. p. XVI.

[5] Ob. Cit. p. XXI.

[6] Ob. Cit. p. XXV.

[7] Ob. Cit. p. XXXVI.

[8] Ob. Cit. p. 04.

[9] Ob. Cit. p. 11.

[10] Ob. Cit. p. 13.

[11] Ob. Cit. p. 14.

[12] Ob. Cit. p. 34.

[13] Ob. Cit. p. 49.

[14] Ob. Cit. p. 49.

[15] Ob. Cit. p. 143.

[16] Ob. Cit. p. 215.

[17] Ob. Cit. p. 216.

[18] Ob. Cit. p. 219.

[19] Ob. Cit. p. 231.

[20] Ob. Cit. p. 238.

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Sobre a autora
Mariane Morato Stival

Doutora em Direito pelo Centro Universitário de Brasília com estágio doutoral na Universidade Paris 1- Sorbonne. Pós-doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente da UniEVANGÉLICA. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Supervisora e Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Direito, Professora com atuação no Programa de Mestrado da UniEVANGÉLICA. Pesquisadora Visitante da Universidade Paris 1 – Sorbonne e da CorteEuropeia de Direitos Humanos. Advogada e Escritora.

Informações sobre o texto

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