É possível democratizar o acesso ao direito e fazer justiça no processo penal que atinja os pobres?

20/07/2015 às 10:37
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O presente estudo norteia-se pela discussão da possível democratização do acesso ao direito com justiça no processo penal, quando os menos abastados são atingidos.

 A democratização do direito na seara processual penal que surge na instância da jurisdição é algo equidistante para os menos favorecidos e que tem como uma de suas naturezas as leis, construídas, quase sempre pela elite.

No pensamento grego encontraremos a idéia da existência de um direito baseado no mais íntimo da natureza humana, como ser individual ou coletivo, como acreditavam alguns pensadores, existir um direito natural permanente e eternamente válido, independente de legislação, convenção ou qualquer outro expediente, imaginado pelo ser humano.

Tem-se no direito desde os tempos mais longevos, na fundamentação, a procura de razões para a existência da veracidade, através de mecanismos, buscando a concretização para o ordenamento dirigente da sociedade. A democratização do acesso à justiça é menos célere aos mais pobres.

 O estudo de sua fundamentação deve caminhar além das teorias do direito positivo e natural, explicitando as demais formas de fundamentação que justifiquem o direito nas duas vertentes de pensamento: validade imutável no caminhar dos tempos, conectando-se aos princípios fundamentais de ordem abstrata, que correspondem à ideia de justiça, e de outra banda, por tempo determinado na vigência, como assevera Vasconcelos:

[...] direito positivo, portanto, que compete disponibilizar os meios legislativos ou judiciais para sua constante compatibilização com o ritmo do progresso social. Ao direito natural, tornado-lhe os princípios disponíveis, cabe fornecer-lhe as diretrizes desse ajuste. O que envelhece e se desatualiza são as normas do direito positivo, e não os princípios do direito natural, os quais, por seu descompromisso com os fatos da história, não contam tempo, nem perecem. (VASCONCELOS, 2006, p. 53).  

Existe coação no mundo jurídico? A questão é identificar onde ela se encontra.  Facilmente identificável ao se verificar o exato momento em que o ser é chamado a comparecer a contenda judicial em que há contendores sem o patrocínio de um bom jurista [1].    

O direito, o humanismo e a democracia devem estar presentes nos tribunais que longe de serem estéreis e frios capitaneados pela letra seca da lei, pelo texto da doutrina e da jurisprudência, seja um palpitante convite à grande reflexão do arcabouço jurídico, que precisa ser interpretado holisticamente, visando extrair do direito a justiça reta aos que dela necessitam, com o apoio dos princípios fundamentais [2]. Afirmativa do contemporâneo Bobbio:

 [...] direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais. (BOBBIO, 1992, p. 01).

Como pensar os pobres no processo penal?  Tudo é muito evidente. Sem dúvida. Mas na verdade, as pessoas em geral temem os raciocínios complexos, como no direito, pois exige concentração e aprofundamento teórico, e que não estão afeitas a vida cotidiana dominada pela urgência.  

A responsabilidade de pautar as ações em normas jurídicas, responderia ao chamado do princípio da legalidade, que a Constituição da República consagrou-o no art. 5º, inciso XXXIX, que aduz: "não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal", buscando nesse sentido, aparecer com o fim de agregar a defesa dos menos possuídos financeiramente e intelectualmente.

O pré-julgamento realizado pela imprensa pode induzir e levar a grandes erros no judiciário, em que a busca pela verdade é soterrada quando da exposição exagerada dos operadores jurídicos. Nessa seara, incluindo-se todos os artesões, advogados, promotores, juízes, e, sobretudo, os jurados, ao fascinante poder exercido pela mídia. Disse Barbosa, (1914), com grande sapiência que: “[...] de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus - o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.

As diferenças sociais e desigualdades ideológicas são inevitáveis, cabendo ao Estado equilibrar os desníveis, aparando arestas, incidindo neste ponto a justiça isonômica, buscando o equilíbrio, dando direito e buscando justiça para um processo justo.

Para Reale (1999), “[...] o adjetivo democrático pode também indicar o propósito de passar-se de um Estado de Direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social, isto é, instaurado concretamente com base nos valores fundantes da comunidade”.

O homem e o direito convivem na mesma morada, o lastro das possibilidades, onde se constrói o mundo dos valores. Direito injusto é, sem dúvida, direito. Direito deturpado, construído fora do seu modelo ideal e próprio, confiado aos aplicadores sem compromisso com a verdade, devem ser combatidos.

Na aplicação da pena ao condenado o juiz tem papel fundamental e deve observar determinadas circunstâncias, umas objetivas e outras subjetivas. Segundo Silva:

[...] magistrado, que manteve contato com o acusado, vítima, testemunhas e demais participantes do processo, e teve a oportunidade de colher a prova diretamente, estará sempre em melhores condições, fática e jurídica, inclusive pessoal de decidir, impondo uma pena que não seja mera medida aritmética, mas espelhe a realidade do que presenciou, vivenciou e depreendeu de todo o feito (SILVA, 1993, p. 9/10).   

É fundamental democratizar o modelo penal de acordo com os princípios reitores do direito, visando à busca da verdade real, com a correta interpretação das leis postas em prol da cidadania e direitos fundamentais reconhecidos pela doutrina e jurisprudência mais avançada.

A estrita observância aos direitos humanos no processo penal é importante no que diz respeito à blindagem das garantias judiciais, independência do judiciário, prerrogativas de defesa ampla e do contraditório.

O contraditório deve ser experimentado por ambas as partes no processo e não somente à defesa, como já se pensou. A noção de contraditório deve ser incrementada como afirmado por Marques (1988) “no processo penal, então, em que as formas processuais se destinam a garantir direitos imediatamente tutelados pela Constituição, das diretrizes políticas desta é que partem os postulados informadores da legislação e da sistematização doutrinária”.

Faz-se necessário estabelecer um profundo sentimento social, uma preocupação com os humilhados, injustiçados e até certa piedade com os paupérrimos. A ação punitiva para ser legitimada precisa pautar-se na ideia de retração do exercício do poder de punir e o alargar da proteção aos direitos e garantias do ser infrator, mediante a opção por direito garantista mínimo, portanto, o último ratio.

O Estado Democrático de Direito possui dupla responsabilidade: cumprir a lei, e assegurar os direitos e garantias em que consagra valores primordiais, sendo responsável pela concretização das referidas garantias.

Humanizar o processo é tarefa árdua, assim como acessar a justiça. O acusado não se acha capaz de lutar por seus direitos e o cotidiano revela sempre um guardião proibindo o acesso do pobre aos palácios da justiça, é o que revela Kafka:

[...] o sentinela lhe diz que neste momento não é permitido entrar. O homem reflete e depois pergunta se mais tarde lhe será permitido entrar. “È possível”, diz o guarda, “mas agora não”. A grande porta que dá para a lei está aberta de par em par como sempre, e o guarda se põe de lado; então o homem, inclinando-se para adiante olha para o interior através da porta. Quando o guarda percebe isso desata a rir e diz: “Se tanto lhe atrai entrar, procura fazê-lo não obstante a minha proibição. Mas guarda bem isto: eu sou poderoso e, contudo não sou mais que o guarda inferior; em cada uma das salas existem outros sentinelas, um mais poderoso do que o outro. Eu não posso suportar já sequer o olhar do terceiro”. O camponês não esperara tais dificuldades [...]. (KAFKA, 2007, p. 238).

A Ministra Andrighi, relatou em palestra que em inesquecível julgamento proferido pelo juiz, La Guardia, proferiu sentença, aplicando a justiça em órbita diferente [3]:

Certa feita foi levado ao tribunal um pobre cidadão que fora surpreendido furtando um pão. Ouvidas as testemunhas, e tendo o réu confessado a prática do crime, La Guardia, do alto de sua magistratura, expediu o seguinte veredicto: “Fica o réu condenado à pena de recolher em juízo a multa de cinquenta dólares...” Todos se espantaram e perplexos entreolhavam-se pelo absurdo da punição imposta ao miserável infrator. Fez-se uma pausa silenciosa e prosseguiu o juiz, dirigindo-se agora não ao réu, mas à plateia atônita: “E todos os senhores, respeitáveis cidadãos americanos, estão condenados a se cotizarem até o valor da multa, por que: Numa terra onde um homem rouba um pão para mitigar sua fome, todos nós somos culpados!”

A ciência jurídica não acompanha o cidadão desde o procedimento inquisitório nas delegacias. Os inquéritos são elaborados de forma ditatorial e, por conseguinte, um processo cheio de vícios, mostrando as evidências de abuso de poder e flagelação dessa miserável casta social, o que nos dá o dever de ao menos discutir a questão.

Segundo Cesare Beccaria (2006), “[...] é monstruoso e absurdo exigir que um homem acuse-se a si mesmo, e procurar fazer nascer à verdade por meio dos tormentos, como se essa verdade estivesse nos músculos e nas fibras do infeliz”.

O agente delinquente é levado à seara judicial, às vezes patrocinado por um advogado dativo que se quer conhece o processo, não tendo direito e acesso ao debate em igualdade de condições com o representante do Ministério Público, na busca incessante da verdade real. Com a promulgação da Constituição, o direito ao silencio ganhou amparo constitucional, (art. 5°, LXIII CF/88) “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”.

O preconceito dos membros da justiça com as classes mais pobres também é fruto da relação histórica entre os representantes da elite e do judiciário, sendo o acesso à justiça marcado por óbices que dificultam a busca da prestação para satisfação de uma pretensão.

 Tem-se uma herança escravocrata, os negros, após a abolição, deixaram de ser o sustentáculo da economia nacional e passaram a serem excluídos e marginalizados, colhidos pela violência que os atinge, em sua maioria, os menos abastados da população.

As prisões brasileiras encontram-se abarrotadas, condições indignas, contribuindo para desenvolver o caráter violento do indivíduo e seu repúdio à sociedade que ali o colocou, seja aqui ou em outro lugar, porém, mesmo nesse universo de miséria, há presos que ainda conseguem dizer algo impressionante, como diz Carnelutti, ao conversar com um homicida,

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[...] tinha matado dois homens, premeditadamente, desferindo dois tiros de pistola pelas costas [...] o colóquio que tive com ele, apenas chegado lá em baixo, lhe devia dizer que infelizmente para ele não havia esperança; tudo o mais se podia tentar, com as atenuantes genéricas, de converter a prisão perpétua em trinta anos de reclusão. Ele me ouviu impassível; depois disse: “não se ocupe de mim, advogado; não importa; eu sou um homem perdido; pense para salvar meu irmão, que tem nove filhos”. Então um raio de amor iluminou a sua fronte. Não era a sua riqueza aquele amor fraterno, que o fazia esquecer até o seu terrível destino? (CARNELUTTI, 2008, p. 26). 

A democratização, o acesso à justiça no processo penal é ferramenta distante. Deve-se funcionar como meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado e não mero instrumento de efetivação do direito penal. Ser verdadeiramente um instrumento de satisfação de direitos fundamentais dos que caminharam ao arrepio da lei.

 A idéia de que o sistema processual penal deveria significar segurança jurídica é distorcida diante da realidade vivenciada pelos pobres quando selecionados entre as pessoas criminalizáveis.

Existe um enorme déficit na investigação preliminar em todos os aspectos. A consequência disso é a baixa qualidade da prova colhida sob o crivo do contraditório, em virtude da pouca utilização de provas técnicas como perícias, isolamento do local, colheita de digitais, entre outras.

Neste contexto o processo penal depende e muito da prova testemunhal, motivo pelo qual os aplicadores do direito não podem ignorar as contribuições de outras ciências, como a neurociência e a psicologia cognitiva no âmbito do estudo da memória humana. Isto, pois, a denominada justiça efetiva deve estar sempre compatibilizada com um processo penal constitucional que respeite as normas. 

REFERÊNCIAS

 BARBOSA, Rui. Discursos Parlamentares-Obras Completas - vol. XLI - 1914 - Tomo III.

 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2006.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

CARNELUTTI, Francisco. As misérias do processo penal. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2008.

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, v. 1. 1998.

REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

KAFKA, Franz.  O Processo.  Tradução e Revisão: Torrieri Guimarães.  São Paulo: Martin Claret, 2007.

ROSA, Alexandre Morais da & SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009.

SILVA, Marco Antonio Marques. A Vinculação do Juiz no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1993.

VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, Humanismo e Democracia. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2006.

Notas:

[1] No Código Penal, pode ver-se o aparecimento da coação: a) com a qualificação de irresistível (art. 22), ou b) como agravante (art. 62, II), ou atenuante da pena (art. 65, III, c), ou constrangimento ilegal (art. 146).

[2] A dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1°, III), a carta maior não admite as penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e quaisquer outras de natureza cruel (art. 5°, XLVII). Assegura aos presos o respeito à integridade física e moral; cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, conforme o delito, a idade e o sexo do condenado e assegurado às presas condições para que possam permanecer com os filhos, durante o período de amamentação (CF art. 5°, XLVIII, XLIX e L).

[3] Fragmentos extraídos do artigo publicado por: Dra. Monica Rodrigues Campos Moraes - Humanização da Justiça - Uma Abordagem Conceitual. http://www.jurisway.org.br/. (Palestra proferida na Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro - Niterói, 29 de agosto de 2004 - Juizados Especiais de Família e o Espiritismo, pela Ministra Fátima Nancy Andrighi).

Sobre o autor
Jailton Ferreira Santos

Profissional Especializado. Bacharel em Direito - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Paripiranga-AGES (2013). Monografia MAGNA CUM LAUDE - com grande louvor. Aprovado no XIII Exame da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/1ª inscrição - (2014). Inscrito no Conselho Seccional da Bahia (2014). Pós-Graduado Latu Sensu em Direito Eleitoral pela UCAM - Universidade Cândido Mendes (2014/2015), com nota máxima na produção acadêmica. Pós-Graduado Latu Sensu em Docência do Ensino Superior, UCAM - Universidade Cândido Mendes (2015/2016). Nota máxima na produção acadêmica. Pós-Graduado Latu Sensu em Direito Administrativo, pela UCAM - Universidade Cândido Mendes (2016/2017). Pós-Graduado Latu Sensu em Direito Penal e Processual Penal, pela UCAM - Universidade Cândido Mendes (2019/2021). Pós-Graduado Latu Sensu em Direito do Consumidor, Direito do Constitucional Aplicado e Direito da Seguridade Social - Previdenciário e Prática Previdenciária, pela Faculdade LEGALE (2020/2021). ADVOGADO (43231). Consultivo e Contencioso. Atuação no Tribunal do Júri. Atuação em Juazeiro/BA. Petrolina/PE. e outras. Recebeu Mérito AGES (2014), pelo desempenho acadêmico e competências para a profissão, dimensões teoria e prática, do primeiro ao último período do Curso de Direito. Experiência em gestão pública no âmbito municipal, com ênfase no campo educacional. Participou da campanha Secretário Educação em Ação (2003). Avaliado pelo Instituto de Pesquisa Leia Hoje On-line - Revista Leia Hoje. (Gestão Educacional). Possui formação Técnica em Agropecuária (1986/1988) e Cursos de Aperfeiçoamento. Possui habilitação em Magistério (1994/1995). Estagiário na 3ª Diretoria Regional da CODEVASF e Cia de Engenharia Rural da Bahia. Trabalhou na Empresa Mandacaru Comercial Ltda., na área de contabilidade. Exerceu a função docente no ensino fundamental e médio. Participação como colaborador em Conselhos Municipais e Secretaria de Cultura de Canudos. Autor de artigos publicados em site jurídicos (JurisWay e Jus Navegandi). Estudante de diversos ramos do Direito. Ministrou palestras em eventos estudantis. Participação em outros eventos de formação. Contatos: [email protected]

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