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Fraternidade:

um caminho jurídico para uma mudança social

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3. UM CAMINHO JURÍDICO PARA UMA MUDANÇA SOCIAL

Não é possível estabelecer o princípio da fraternidade como princípio constitucional e, por isso, categoria jurídica, sem ter a noção de democracia e participação social. Tendo à frente a fraternidade, a cidadania e essa grande pólis que é o mundo moderno não podem funcionar como um amontoado de diferentes identidades culturais, mas como um ambiente de encontro com o outro, de criação de novos modos de existência e de sociedade, em busca de uma grande comunidade. Aliás, a palavra comunidade é bem definida por Zygmunt Bauman[23]: “As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade,” “estar numa comunidade”. Se alguém se afasta do caminho certo, frequentemente explicamos sua conduta reprovável dizendo que “anda em má companhia”. Se alguém se sente miserável, sofre muito e se vê persistentemente privado de uma vida digna, logo acusamos a sociedade — o modo como está organizada e como funciona. As companhias ou a sociedade podem ser más; mas não a comunidade. Comunidade, sentimos, é sempre uma coisa boa.

Os significados e sensações que as palavras carregam não são, é claro, independentes. “Comunidade” produz uma sensação boa por causa dos significados que a palavra “comunidade” carrega — todos eles prometendo prazeres e, no mais das vezes, as espécies de prazer que gostaríamos de experimentar mas que não alcança mais.

Para começar, a comunidade é um lugar “cálido”, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui, na comunidade, podemos relaxar — estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros (com certeza, dificilmente um “canto” aqui é “escuro”). Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós. Podemos discutir — mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum, podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns aos outros, e podemos estar certos de que os outros à nossa volta nos querem bem”.

Na comunidade, os ideais democráticos e a garantia dos direitos humanos estão resguardados. Mas esta segurança encontrada na comunidade sempre está ameaçada quando se está diante de uma crise política. Parece bem atual a análise de Paulo Bonavides[24]: “Com efeito, a crise politica de uma Nação pode percorrer três distintos graus nesta escala: em primeiro lugar é crise do Executivo, que normalmente chega ao seu termo quando se muda a chefia do governo ou advém, de maneira bem-sucedida, uma nova política; a seguir, crise constitucional – de solução ainda possível – mediante uma Emenda à Constituição ou, nos casos mais graves e excepcionais, por via da reforma total ou da promulgação doutra lei maior; enfim, se converte ela em crise constituinte, a de terceiro e derradeiro grau, quando deixa de ser tão-somente a crise de um Governo ou de uma Constituição para se transformar em crise das instituições ou da Sociedade mesma, em seus últimos fundamentos”.

E continua com um exemplo já vivido pelo Brasil[25]: “Nunca, porém, as três conjunturas se conjugaram com tamanho ímpeto e força como nas décadas da segunda metade do século XX. Uma só época constitucional – a do transcurso da Constituição de 1946 – coloca-nos diante do desastre de legitimidade a que ontem chegamos e do qual, em nossos dias, ainda não emergimos.

Efetivamente, durante aquele singular período de nossa existência, vimos primeiro uma crise de governo ou crise executiva, quando Getúlio Vargas entrou em conflito com o Congresso e, não podendo resolver a pendência, suicidou-se.

A seguir, decorridos menos de dez anos, passamos por uma crise constitucional, com a renuncia de Jânio Quadros e a introdução do parlamentarismo do Ato Adicional. Já não se tratava então de substituir um Governo, mas de alterar a própria forma de Governo, numa experiência, aliás, malograda.

Finalmente, não se resolvendo a crise constitucional, mediante o retorno ao presidencialismo, cedo ela se converteu na mais funesta de todas as crises: a crise constituinte, que recai sobre o Governo, a Constituição e a Sociedade.

Nessa crise submergimos durante todo o período autoritário em que o país se governou por Atos Institucionais e decretos-leis.

Toda vez que os desesperos coletivos somam os infortúnios gerados pelas três crises, produz-se a desmoralização política da Sociedade e os direitos humanos fundamentais padecem muito com isso”.

A crise política tira a sociedade do raio de luz do fim do túnel, torna a sociedade extremista e intolerante. Por isso, é fundamental a afirmação da fraternidade enquanto categoria jurídica capaz de produzir uma mudança social. Para constatar isso, entende-se necessária a demonstração de julgados pela Corte Suprema do Brasil e de experiências dos operadores de Direito que, tendo como foco o princípio da fraternidade, contribuem para a mudança do status quo da humanidade.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.768-4/DF, ajuizada em 1° de agosto de 2006, teve como Relatora a Ministra Cármen Lúcia e nela refere-se ao Direito Fraterno:

3. Alega a Autora que a presente Ação Direta ‘visa apenas que o Supremo consagre uma interpretação (ou elimine uma dentre as possíveis do art. 39 do Estatuto do Idoso Lei n. 10.741/2003) de que seja compatível com inteligência harmônica dos arts. 30, V; 37, XXI; 175; 195, § 5º; 203, I e 230, caput, e § 2º, todos da Constituição, de forma a desvendar os limites e possibilidades de aplicação da regra de gratuidade no cenário do serviço de transporte urbano prestado indiretamente pelo Município, isto é, no regime de permissões e concessões.’

a) o direito daqueles que têm mais de 65 anos ao transporte gratuito ‘encarna uma decisão política de amparar a velhice como valor constitucional, por isso deve ser classificado ou como direito social de uma fatia determinada da população, logo de segunda geração; ou como direito de solidariedade ou fraternidade, ligado à assistência social, e por isso pertencente à classe dos direitos de terceira geração, (...) o que já [seria] bastante para inferir que a sua implementação pelo poder público municipal, sempre a atrair prestações positivas de cunho oneroso, submeter-se-á à luz da chamada reserva do possível’;

5. Insiste a Autora que esse direito do idoso não seria de primeira, mas de segunda ou até mesmo de terceira dimensão. Essa discussão não tem cabimento aqui para o desate da questão posta a exame. Primeiro, porque independentemente da classificação, como consignado na Constituição, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a participação do idoso na comunidade. Segundo, porque essa participação demanda, salvo em casos específicos, a possibilidade de os idosos se locomoverem. Terceiro, porque a dignidade e o bem-estar dos idosos estão fortemente relacionados com a sua integração na comunidade para que se possa dar a sua participação na vida da sociedade.

Não é aboletado e aquietado em razão de sua carência para pagar transportes por meio dos quais possam se locomover que se estará garantindo ao idoso o direito que a Constituição lhe assegura.

6. O transporte gratuito, especialmente para os idosos que sobrevivem de aposentadorias insuficientes para o suprimento de suas necessidades básicas, apresentasse como verdadeiro suporte para que possam exercer, com menores dificuldades, seu direito de ir e vir.

8. A gratuidade do transporte coletivo representa uma condição mínima de mobilidade, a favorecer a participação dos idosos na comunidade, assim como viabiliza a concretização de sua dignidade e de seu bem-estar, não se compadece com condicionamento posto pelo princípio da reserva do possível. Aquele princípio haverá de se compatibilizar com a garantia do mínimo existencial, sobre o qual disse, em outra ocasião, ser “o conjunto das condições primárias sócio-políticas, materiais e psicológicas sem as quais não se dotam de conteúdo próprio os direitos assegurados constitucionalmente, em especial aqueles que se referem aos fundamentais individuais e sociais (...) que garantem que o princípio da dignidade humana dota-se de conteúdo determinável (conquanto não determinado abstratamente na norma constitucional que o expressa), de vinculabilidade em relação aos poderes públicos, que não podem atuar no sentido de lhe negar a existência ou de não lhe assegurar a efetivação, de densidade que lhe concede conteúdo específico sem o qual não se pode afastar o Estado”. (grifo nosso)

Ao votar com a Relatora, o então Ministro Carlo Ayres Britto alegou o advento de um “Constitucionalismo Fraternal”, pois “não se trata de um direito social, mas de um direito fraternal para amainar direitos tradicionalmente negligenciados”.

Quando julgou o acesso a medicamentos e tratamento (STA 223-AgR, julgamento em 14 de abril de 2008), a Corte Suprema decidiu que no caso de um acidente que resultou em um estudante tetraplégico o custeio das cirurgias e da implantação de marcapasso caberiam ao Estado de Pernambuco, pois a omissão de segurança se mostrou latente. Nas palavras do Ministro Celso de Mello, a observância da segurança são “medidas que muitas vezes os responsáveis pela segurança pública nos estados desconhecem ou fazem de conta que não sabem”. E ainda alerta que “Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executa-la com o propósito subalterno de torna-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos”.

Já na ADPF 186-2/DF, a discussão se pautava na instituição do sistema de cotas na Universidade de Brasília. Apreciando a medida cautelar requerida pelo autor da ação, o Min. Gilmar Mendes destacou a importância do valor fraternidade no constitucionalismo contemporâneo:

“Liberdade e igualdade constituem os valores sobre os quais está fundado o Estado constitucional. A história do constitucionalismo se confunde com a historia da afirmação desses dois fundamentos da ordem jurídica. Não há como negar, portanto, a simbiose existente entre liberdade e igualdade e o Estado Democrático de Direito. Isso é algo que a ninguém soa estranho – pelo menos em sociedades construídas sobre valores democráticos – e, neste momento, deixo claro que pretendo rememorar ou reexaminar o tema sob esse prisma.

Não posso deixar de levar em conta, no contexto dessa temática, as assertivas do Mestre e amigo Professor Peter Haberle, o qual muito bem constatou que, na dogmática constitucional, muito já se tratou e muito já se falou sobre liberdade e igualdade, mas pouca coisa se encontra sobre o terceiro valor fundamental da Revolução Francesa de 1789; a fraternidade (HABERLE, Peter.Liberdad, igualdad, fraternidade. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Madrid: Trotta; 1998). E é dessa perspectiva que parto para as analises que faço a seguir. No limiar deste século XXI, liberdade e igualdade devem ser (re)pensadas segundo o valor fundamental da fraternidade. Com isso quero dizer que a fraternidade pode constituir a chave por meio da qual podemos abrir várias portas para a solução dos principais problemas hoje vividos pela Humanidade em tema de liberdade e igualdade.

[...]

Pensar a igualdade segundo o valor da fraternidade significa ter em mente as diferenças e as particularidades humanas em todos os seus aspectos. A tolerância em tema de igualdade, nesse sentido, impõe a igual consideração do outro em suas peculiaridades e idiossincrasias. Numa sociedade marcada pelo pluralismo, a igualdade só pode ser igualdade com igual respeito às diferenças. Enfim, no Estado democrático, a conjugação dos valores da igualdade e da fraternidade expressa uma normatividade constitucional no sentido de reconhecimento e proteção das minorias”.

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Observa-se as inovações jurídicas pautadas no “Constitucionalismo Fraternal”, onde a administração pública serve aos cidadãos. É interessante observar o espaço que o princípio da fraternidade ocupa ou pode ocupar no Direito Administrativo. Na Europa, onde se tem uma zona comunitária e, por isso, pode haver conflito entre o Direito interno e o Direito internacional, Nino Gentile[26] apresenta uma base de gestão do interesse público: “[...] podem se colocar em evidência e realizar na sua maior extensão, quantitativa e qualitativa, algumas funções específicas próprias das administrações públicas, como, por exemplo:

- dar às famílias a “casa”, revitalizando as entidades e os organismos de financiamento e a realização do bem social da habitação;

- assegurar o “trabalho”, incrementando o sistema de formação profissional, de iniciação ao trabalho, de assistência nos períodos de desemprego;

- garantir, a “quem quer estudar”, acesso a “escolas” e “livros”, fomentando uma administração escolar aberta a todos, colocando e desenvolvendo um conjunto de intervenções e estruturas para tornar efetivo e em condições de igualdade o direito ao estudo;

- projetar e realizar obras e infra-estruturas, como “estradas e ferrovias”, consentindo e facilitando os transportes e as relações econômicas e sociais;

- garantir a “possibilidade de se cuidar adequadamente da própria saúde”, por meio de um sistema de saúde eficiente e acessível a todos;

São indicações que exemplificam o papel e as funções da administração, a qual, orientando justamente a própria ação no sinal da fraternidade, pode atuar melhor sua finalidade mais elevada, que é “recolher na unidade de um projeto comum a riqueza das pessoas e dos grupos, consentindo a cada um realizar livremente a própria vocação, fazendo com que colaborem entre si, promovendo encontros entre as necessidades e os recursos, as demandas e as respostas, influindo em todos a confiança um dos outros”.

Nessa perspectiva, o Direito público e as administrações públicas podem encontrar nas inter-relações o contributo para a realização do autêntico “bem comum”.

Quando se fala em Direito, ciência que institui regras para as relações entre indivíduos, e o princípio da fraternidade, pensa-se de imediato no Direito de Família, uma vez que na família estas relações se apresentam mais próximas e onde se vive em comunidade. Mas o fato de existirem regras e comandos jurídicos que regulamentam a relação familiar, evidencia que nem sempre a vida familiar é tranquila e segura. O advogado dominicano Angel Cano[27]aponta as dificuldades do sistema jurídico da República Dominicana no que tange às leis da família:

“O nosso sistema jurídico, de tradição francesa, trouxe consigo traços dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Todavia, a estrutura judiciária não facilita sua aplicação eficaz. De fato, a mulher, os menores e a família, como instituição, não eram tutelados por uma legislação apropriada.

A redação de um novo código, em 2003, para a proteção das crianças e dos adolescentes, introduziu no novo sistema uma regulamentação na qual o respeito e o afeto encontram espaço como critérios de interpretação na qual o respeito e o afeto encontram espaço como critérios de interpretação e aplicação da lei para os casos relativos aos menores.

Uma das disposições mais importantes é o Artigo 61, que declara a igualdade nos direitos dos filhos e das filhas, independentemente do fato de terem nascido no matrimônio, fora do matrimônio ou serem adotados. Essa igualdade aplica-se principalmente no campo das sucessões hereditárias, onde antes vigorava um sistema discriminatório, e introduz a proibição do uso de termos que impliquem diferenciações entre os filhos.

O Artigo 59 sanciona o direito do menor de ser educado numa família e proíbe que seja afastado dela por motivos econômicos. Estabelece-se também a igualdade entre as autoridades do pai e da mãe em relação aos filhos menores e a tutela especial pelos menores e pela mulher, por serem a parte mais frágil da relação”.

A comissão que instituiu o novo código se preocupou não só com a participação do Estado nas relações familiares, mas com o dever dos indivíduos na formação destas relações[28]:

“[...] Assim também se destaca o direito dos pais na formação dos próprios filhos e filhas, correspondente aos valores humanos (em que acreditam) e à sua participação no processo de ensino, garantindo o acesso dos membros pelo menos a cursos de educação profissional, que permitam aos jovens encontrar trabalho e, assim, evitar a emigração e a desagregação familiar.

Previmos, também, em favor das famílias dos imigrantes, os mesmos direitos de que gozam as outras, o respeito pela sua cultura, a sustentação e a assistência para a integração na comunidade para a qual trabalham, a proteção do Estado contra a exploração e as intimidações de traficantes e organizações criminosas”.

O exemplo dominicano mostra que, imbuídos do respeito à dignidade humana e do princípio da fraternidade, a mentalidade jurídica pode mudar e administrar e aplicar a lei de maneira mais justa.

Para muitos é difícil perceber a fraternidade como um regulador das relações entre as pessoas. No Direito Empresarial, onde o lucro e a valorização das ações são os itens mais importantes, é difícil nota-la. Mas toda norma que tenta impedir a lesão de direitos alheios, tem um foco de fraternidade. Princípios como o da boa-fé e da equidade são exemplos disso. Salvador Morillas Gómez[29], advogado espanhol elenca pontos que ajudam a gerir a empresa à luz do princípio da fraternidade:

“[...] Uma empresa bem administrada deve mirar a tutelar os interesses dos sócios, já que é racional que o capital frutifique convenientemente. No entanto, isso não deve contrapor a exigência de pagar justo salário aos trabalhadores, prestar serviços que respeitem o princípio do equilíbrio das trocas, garantir a equidade em relacionamentos com os clientes e fornecedores e o respeito das normas fiscais e administrativas.

Isso pode acarretar a redução do lucro econômico imediato dos sócios. No entanto, permite aumentar aquele social que, ao longo do tempo, favorece o bom desempenho da empresa. Uma gestão inspirada na fraternidade deve levar em conta todos esses elementos, para visar ao bem de todos, harmonizando os vários direitos e interesses.

[...]

Podemos ler na perspectiva da fraternidade e a regulamentação da livre concorrência, que busca estabelecer condições favoráveis de mercado, e a lei que veda a concorrência desleal (Lei 3/1991, de 10 de janeiro, sobre a concorrência desleal). A normativa sobre a publicidade (Lei Geral de Publicidade 34/1988, de 11 de novembro) proíbe o prejuízo aos produtos concorrentes e obriga a dar uma informação leal aos consumidores, impedindo a propaganda enganosa.

[...]

Também as relações de Direito público têm a ver com a vida da empresa. Basta pensar, por exemplo, em todas as normas a respeito da ecologia, orientadas a preservar um ambiente propício ao interesse da coletividade; nas normas fiscais, com que se estabelece um dever jurídico igualmente baseado no princípio de solidariedade”.

Essas diferentes relações jurídicas dentro de uma empresa dão pistas de como o princípio da fraternidade pode influenciar nas relações privadas.

É importante ressaltar que falar em fraternidade não significa deixar de atentar para os interesses egoístas da sociedade, afinal, são o egoísmo e a maldade humana que geram os conflitos a serem regulados pelo Direito, que busca a prevenção e a solução destes conflitos, na tentativa de direcionar à unidade dos componentes do grupo.

A juíza de Direito, Elena Massucco[30] relata a sua vivência da fraternidade na aplicação das normas jurídicas:

“Um dia, durante um processo rápido, deparo-me no julgamento com uma pessoa que havia confessado abertamente o crime cometido (um pequeno furto). Por causa de seus antecedentes penais e de sua situação pessoal (toxicodependência – por isso tinha sido afastada da residência dos pais), essa pessoa não podia ser posta em liberdade. Havia sérios motivos que levavam a supor que ela recairia na conduta criminosa, e a prisão domiciliar não era aplicável, pelos motivos citados. Tratava-se, porém, de um sujeito necessitado de tratamento por causa de grave forma de depressão. Certamente ele não poderia usufruir disso na prisão, o que agravaria mais tarde sua doença.

No entanto, com o Ministério Público e o defensor tínhamos combinado que, tão logo aparecesse uma vaga numa clínica psiquiátrica, eu concederia a prisão hospitalar.

Terminada a audiência, com uma condenação razoavelmente leve (que considerou também seus problemas de saúde), eu sabia ter feito, como juíza, tudo o que profissionalmente se esperava de mim, ou seja, “administrar a justiça”.

Naquele instante, porém, dei-me conta de que aquele homem por trás das grades era meu irmão, e senti enorme compaixão dele. Então compreendi que viver aquela fraternidade que o Evangelho requer pedia algo mais do que o “profissionalmente correto”. Assim – sensibilizando o defensor do réu, que, em seu ofício, pensava no início ter esgotado suficientemente o seu mandato – dispus-me a convencer os familiares do acusado (já cansados de sofrer humilhações por ele) a acolhê-lo em casa até o momento da internação numa clínica, a fim de permitir que ele ao menos pudesse continuar o tratamento medicamentoso.

Desse modo, dado o primeiro passo, estabeleceu-se uma verdadeira “competição de amor” com o Ministério Público e o defensor, a fim de que tudo pudesse caminhar na direção certa e o mais rápido possível, com grande vantagem para toda a administração da justiça. Sem, porém, efetuar qualquer violência processual, mas simplesmente adotando, como critério de aplicação da norma penal... a fraternidade!

De fato, o compromisso de viver os ensinamentos da fraternidade no meu trabalho faz com que muitas vezes, durante o desenvolvimento normal das audiências, eu me esforce de “ir para além” da minha função (sem, contudo, prejudicar o exercício da profissão), a fim de poder dividir momentos de fraternidade com o réu que estou julgando. Coloco-me numa atitude, manifestada por gestos reais de amor, que “contagia” também os demais integrantes do processo (defensor, Ministério Público, agentes carcerários etc.). Por exemplo, escuto com atenção o acusado, procurando satisfazer alguma pequena, mas legítima, exigência ou expectativa dele, explicando bem as fases do processo, o motivo da condenação, a natureza da pena etc.

Fazendo assim, não é raro o réu, mesmo sem ter usufruído de benefícios especiais em prêmios, mas consciente do próprio erro, ao sair da sala para retornar ao cárcere, exprimir sentimentos de sincera gratidão com a juíza que pronunciou sua condenação.

Desde grandes gestos até os mais simples, o princípio da fraternidade se apresenta capaz de mudar relacionamentos entre os membros que compõem a justiça. O Juiz do Trabalho Carlos Eduardo E. B. dos Santos[31] exemplifica:

“Durante uma audiência, fui advertido pelo servidor de que havia um advogado na porta do fórum trajando apenas bermudas, mas que precisava participar de uma audiência ou fazer constar seu nome na ata.

Quando saí, deparei com um advogado já conhecido, a quem eu tinha algumas restrições pela sua forma de trabalho, que prejudicava seus clientes e o andamento dos processos. Ouvi atentamente sua explicação: sairá da Capital, e sua esposa tinha colocado o terno sobre a mala, mas ele não conferira. Viajara apenas de bermudas, para se trocar ao chegar á cidade. Ocorreu na capa viera apenas o blazer, e agora não teria como participar da audiência, embora precisasse apresentar junto à empresa que representava o comprovante de sua presença. Eu não poderia registrar algo que não tinha acontecido – a presença dele na sala de audiência -, mas rapidamente tirei a toga que estava usando e lha emprestei, de modo que poderia entrar no fórum e participar da audiência. Em que pese a simplicidade do gesto, percebi uma mudança de postura no causídico durante a audiência e o novo relacionamento criado a partir de uma atitude de acolhimento”.

Evidencia-se que em todos os níveis da relação jurídica, e por que não, das relações sociais, o princípio da fraternidade interfere de maneira positiva para a obtenção da paz social. Contudo, nenhum campo é mais fértil que a academia. É nela que estão indivíduos sedentos por conhecimento e por novas experiências. E a participação dos docentes é fundamental no processo de efetivação dos direitos fundamentais, respeito aos direitos humanos e mudança na prática forense, pois não basta a formação de técnicos habilitados a trabalhar com a dogmática jurídica. O mundo necessita de algo maior: provocadores de justiça. para isso, é necessário semear a criticidade, cultivar o raciocínio questionador, promovendo um mundo renovado e ético. A experiência das doutoras Olga Maria B. Aguiar de Oliveira e Josiane Rose Petry Veronese na criação do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina dá a certeza de que novos ventos sopram em favor de um mundo mais justo, solidário e dos bens em comum – um mundo fraterno.

Essa proposta da fraternidade ser inserida no espaço acadêmico teve início no Brasil em um Congresso Nacional sobre o tema, realizado em janeiro de 2008 na cidade de Vargem Grande Paulista, estado de São Paulo. Esse evento contou com a participação de centenas de pessoas do âmbito jurídico, além de vários estudantes e foi organizado por um movimento intitulado “Comunhão e Direito”.[32] Ficou constatado que essa “nova onda” teria como principal difusor a universidade, pelo motivos já apresentados acima.

Além do Congresso Nacional outros foram realizados Brasil a fora e até internacionalmente. Vale destacar o Congresso Regional realizado em 2008, na cidade de São Luís, estado do Maranhão; a I Jornada Sul-Brasileira de Direito e Fraternidade, realizado também em 2008, na cidade de Florianópolis, estado de Santa Catarina; o I Congresso Internacional para Estudantes e Jovens Profissionais “Jovens juristas em diálogo”.

Todos estes eventos analisaram o princípio da fraternidade sob o enfoque doutrinário e prático. O relato das doutoras Olga e Josiane sobre o evento internacional, do qual o autor deste trabalho também participou, merece destaque:[33]

“Desse encontro evidenciamos, além do mergulho em concepções muito distintas dos sistemas normativos de cada país ali representado, a possibilidade de conhecermos outras experiências, pois foram significativos os relatos de operadores do Direito, estudiosos e estudantes dos mais diversos países, com seus respectivos costumes e formas de pensar e atuar o Direito.

Enfim, também tivemos a oportunidade de construir um relacionamento baseado no respeito ao outro. Aí está a essência, algo vivo, dinâmico, experenciado, para além das barreiras do diferente, do desconhecido, do não usual, sobretudo em se tratando do Direito na concepção ocidental, tão distinta da oriental”.

Com o crescimento exponencial da fraternidade, em 5 de junho de 2009 foi instalado o Núcleo de Pesquisa da UFSC, já mencionado, que desenvolve vários colóquios e promove vários seminários sobre o tema. Isto já produziu diversos frutos, como a apresentação de trabalhos no Instituto Universitário Sophia, localizado na Itália.

A fraternidade é possível de ser “instalada” no meio jurídico, afinal, o ser humano é mutável, consegue se adaptar aos locais e ambientes mais adversos. E o mundo de hoje é praticamente um local inóspito para a fraternidade. Contudo, isso não é um problema, pois como bem assinala Laraia[34]:

“As diferenças existem entre homens, portanto não devem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com as suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais terrível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isso porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura”.

Como se pode observar, a fraternidade não só é possível como deve ser realçada no ambiente acadêmico, pois ela é imprescindível para a visão humanista do Direito, já que o acadêmico não pode ser mero leitor e reprodutor da norma jurídica, mas sensível à realidade na qual está envolvido.

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Sobre o autor
Jonathan Jefferson Miranda Messias

Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESSIAS, Jonathan Jefferson Miranda. Fraternidade:: um caminho jurídico para uma mudança social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4415, 3 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41274. Acesso em: 23 abr. 2024.

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