INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo principal pautar linhas mínimas de conhecimento sobre a Reclamação constitucional e seu uso pelos Estados-membros da federação.
Um dos pontos em que mais surgiram dúvidas e discordância jurisprudencial foi a adoção do instituto da Reclamação constitucional por Estados da Federação com amparo na teoria dos poderes implícitos. O desenvolvimento deste instituto, porém, ocorreu de forma gradativa, com a mudança das decisões do Supremo Tribunal Federal até a sua efetiva alteração pelo Novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), fato que mudará totalmente o emprego dessa regra no ordenamento jurídico.
RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL E FEDERALISMO NO BRASIL
O Federalismo surge primeiramente nos Estados Unidos, por uma necessidade de se ter um governo forte e efetivo em um território extenso, mas que não tirasse, ao mesmo tempo, a autonomia dos estados-membros.[1]
Ao Estado Federal é atribuída, então, a soberania e aos estados-membros a autonomia, para que haja, indispensavelmente, a descentralização do poder, não apenas administrativa, mas também política.[2] O que implica não só na execução de leis pelos estados, mas também a própria elaboração destas, levando ao entendimento de que existe no Estado Federal uma esfera dual[3] de poder em um mesmo território.
A autonomia dos estados-membros ganha mais destaque por possuir também a possibilidade de autoconstituição. A cada estado-membro é assegurado o direito de se conceber uma Constituição, embora submetida aos limites e diretrizes impostos pela Constituição Federal, pelo fato de o estado-membro não ser soberano.
O princípio dos poderes implícitos, ou decorrentes, ou complementares, alicerça o estudo da Reclamação, com base na análise dos princípios setoriais existentes na ordem constitucional federativa e exame crítico de uma dogmática “monoprincipiológica”, não se considerando apenas os princípios da simetria e da proporcionalidade.
Com fundamento no artigo 5º, §2º, da Constituição Federal – “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”[4] -, o princípio dos poderes implícitos decorre em poder se conceber como existentes ou autorizados qualquer poder ou até mesmo competência, que não estejam previstos na Constituição, necessários para se desempenhar função expressa.
Desta maneira, surgiu a Reclamação Constitucional no Brasil, pois o Supremo Tribunal Federal entendeu que, para desempenhar alguns de seus poderes e competências, precisaria de um instrumento que pudesse garantir a aplicação de suas decisões e súmulas.
Assim, em 1957, a Reclamação foi incluída no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e, algum tempo depois, foi positivada na Constituição Federal de 1988, instituindo para o Supremo Tribunal Federal e para o Superior Tribunal de Justiça a competência originária de processar e julgar a Reclamação para assegurar a autoridade de suas decisões e resguardar as competências, ex vi do disposto nos arts. 102, inciso I, alínea "l" e 105, inciso I, alínea "f".
Nesse sentido, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu:
“A competência não expressa dos Tribunais Federais pode ser ampliada por construção constitucional. Vão seria o poder outorgado ao STF de julgar recurso extraordinário as causas decididas por outros tribunais se lhe não fora possível fazer prevalecer os seus próprios pronunciamentos, acaso desatendidos pelas Justiças locais. A criação de um remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel das suas sentenças está na vocação do STF e na amplitude constitucional e natural de seus poderes. Necessária e legítima é assim a admissão do processo de reclamação, como o Supremo tem feito. É de ser julgada procedente a reclamação quando a justiça local deixa de atender a decisão do STF.” (STF, Recl. 141/52, Rel. Min. Rocha Lagoa, Tribunal Pleno. Dj. 25.01.1952).[5]
Apoiados nessa medida e no art. 125, caput e §1º da CF/88[6], vários Estados-membros atribuíram ao órgão de cúpula do judiciário local essa mesma competência (competência para processar e julgar originariamente reclamação para preservação de suas atribuições e garantia da autoridade de seus julgados).
Surgiram de imediato ações contrárias a essa conduta, algumas delas foram levadas até o STF em forma de Ação Direta de Inconstitucionalidade, sob dois argumentos: i) o constituinte originário reservou a reclamação apenas para o STF e STJ por serem órgãos máximos do judiciário brasileiro. ii) tratar da reclamação seria usurpação da competência privativa da União para legislar sobre processo civil, como dispõe o art. 22, inciso I, da Constituição Federal.
O principal argumento para não se admitir que os Estados-membros tratem da reclamação em suas Constituições Estaduais é o fato de a reclamação fazer parte do processo civil sendo proibido ao legislador estadual tratar sobre este conteúdo, pelo motivo de invadir a divisão de competências tratada na Carta Federal no campo reservado privativamente à União.[7]
Nesse sentido, Marcelo Navarro Ribeiro Dantas afirma que “a Reclamação, na forma como prevista na Carta Política, longe de constituir mero procedimento, constitui-se num processo especial – e, mais que isso, uma ação -, de modo que, embora autorizados a legislar sobre competência, os Estados-Membros não poderiam estatuir sobre processo, em face da expressa disposição do art. 22, I, da Lex Legem.”
Esse também, aliado ao precedente consubstanciado no julgamento da Representação nº 1092-9/DF, foi o motivo para o STF deferir, em maio de 2000, o pleito cautelar formulado na MCADI 2212-CE, em que o Governador do Estado do Ceará alegava a inconstitucionalidade das normas da Constituição daquele Estado que admitiam e regulavam a apresentação de reclamação perante o TJ local.[8]
Confira-se a ementa correspondente, in verbis:
"Criação, por norma de Constituição Estadual ou Regimento Interno de Tribunal de Justiça, de reclamação destinada à preservação da competência deste, ou à garantia de suas decisões. Relevância Jurídica da Argüição que se lhe opõe, de invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (Constituição, art. 22, I)."[9]
O entendimento defendido, desde outubro de 2003, difere-se da jurisprudência trazida pela Corte Suprema até então, ao julgar o mérito da ADI 2212-1/CE oferecida pelo Governador do Estado do Ceará em face de procedimentos da Constituição Estadual que instituíram a Reclamação para proteção da autoridade das decisões do órgão de cúpula do Judiciário Estadual, da mesma forma que para preservação de sua competência, pronunciou a constitucionalidade das normas relacionadas.[10]
Fixou o Supremo Tribunal Federal a reclamatória no âmbito do direito constitucional de petição, retirando, deste modo, a alegação de invasão da competência reservada à União Federal para legislar sobre processo, como trata a decisão correspondente, assim ementada:
"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 108, INCISO VII, ALINEA I DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ E ART. 21, INCISO VI, LETRA J DO REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. PREVISÃO, NO ÂMBITO ESTADUAL, DO INSTITUTO DA RECLAMAÇÃO. INSTITUTO DE NATUREZA PROCESSUAL-CONSTITUCIONAL, SITUADO NO ÂMBITO DO DIREITO DE PETIÇÃO PREVISTO NO ARTIGO 5º, INCISO XXXIV, ALÍNEA A DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO ART. 22, INCISO I DA CARTA. 1. A natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação, nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal. Em conseqüência, a sua adoção pelo Estado-membro, pela via legislativa local, não implica em invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I, da CF). 2. A reclamação constitui instrumento que, aplicado no âmbito dos Estados-Membros, tem como objetivo evitar, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, o caminho tortuoso e demorado dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente inconvenientes quando já tem a parte uma decisão definitiva. Visa, também, à preservação da competência dos Tribunais de Justiça Estaduais, diante de eventual usurpação por parte de Juízo ou outro Tribunal local. 3. A adoção desse instrumento pelos Estados-Membros, além de estar em sintonia com o princípio da simetria, está em consonância com o princípio da efetividade das decisões judiciais. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade improcedente." (grifei)
Quando se concede, portanto, uma competência a um determinado órgão, concedem-se, do mesmo modo e ao mesmo tempo, todos os instrumentos necessários à prática das atividades a que corresponde tal competência. Dito isto, quando se dá ao órgão o dever de solucionar os conflitos que lhes são direcionados, também se transmite a eles o poder suficiente para realizar a solução no mundo fático. Afinal, lide cuja resolução não foi efetivada equivale à lide sem solução alguma.[11]
Se o STF precisou se resguardar com a reclamação, é certo que outros órgãos do Poder Judiciário também precisam se revestir de mecanismos para a defesa de suas competências e preservação de suas decisões. Implica-se, assim, que tal necessidade não se limita aos Tribunais Superiores, pois como cada órgão possui sua própria autoridade, não se pode impedir a adoção de medidas de reparação caso haja desrespeito a suas decisões ou usurpação de sua competência.
Deste modo, no decorrer do tempo, houve a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação ao uso ou não da Reclamação pelos Estados. Da negação de sua aplicação, passou-se a autorizar, então, o exercício do instituto pelos Estados-membros.
Tanto é que o Novo Código de Processo Civil trouxe a reclamação para os Estados-membros. Tratando do dispositivo não apenas em um artigo, mas em um capítulo inteiro, o que demostra a verdadeira importância deste instrumento.
O § 1º, do art. 988, do Novo Código de Processo Civil dispõe que “a reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir”.[12]
REFERÊNCIAS
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Rcl 141. 1952. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:supremo.tribunal.federal;plenario:acordao;rcl:1952-01-25;141->. Acesso em: 29 jul. 2015.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal nº 1, de 05 de outubro de 1988. Constituição da Republica Federativa do Brasil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em: 29 jul. 2015.
LAUREANO, Germana Galvão Cavalcanti. Constitucionalidade da instituição da reclamação jurisdicional no âmbito dos Estados-membros. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 567, 25 jan. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6214>. Acesso em: 22 jul. 2015.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 779.
[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 779.
[2] Idem.
[3] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 448.
[4] Art. 5º da CF de 1988. BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal nº 1, de 05 de outubro de 1988. Constituição da Republica Federativa do Brasil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 5-75.
[5] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Rcl 141. 1952. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:supremo.tribunal.federal;plenario:acordao;rcl:1952-01-25;141->. Acesso em: 29 jul. 2015.
[6] Art. 125, caput e §1º, da CF de 1988: “Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. § 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.”. BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal nº 1, de 05 de outubro de 1988. Constituição da Republica Federativa do Brasil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 5-75.
[7] LAUREANO, Germana Galvão Cavalcanti. Constitucionalidade da instituição da reclamação jurisdicional no âmbito dos Estados-membros. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 567, 25 jan. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6214>. Acesso em: 22 jul. 2015.
[8] LAUREANO, Germana Galvão Cavalcanti. Constitucionalidade da instituição da reclamação jurisdicional no âmbito dos Estados-membros. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 567, 25 jan. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6214>. Acesso em: 22 jul. 2015.
[9] Idem.
[10] Ibidem.
[11] LAUREANO, Germana Galvão Cavalcanti. Constitucionalidade da instituição da reclamação jurisdicional no âmbito dos Estados-membros. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 567, 25 jan. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6214>. Acesso em: 22 jul. 2015.
[12] Art. 988, § 1º, do Código de Processo Civil (CPC). BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em: 29 jul. 2015.