IV) CONCLUSÃO
:Apesar de não estar claro na peça, pode-se dizer, a partir do que aqui foi exposto, que Shakespeare acabou resolvendo, mesmo que de modo indireto, a questão imposta no início da peça.
O autor da peça trabalhou a questão da aplicabilidade da norma em desuso até cerca da metade da trama, passando então a trabalhar a questão do abuso do poder e da corrupção de Ângelo. A trama termina com um final feliz, no qual o leitor tem a sensação de que foi feita justiça e até esquece a discussão da lei. Afinal, o costume da luxúria fez ou não com que a lei fosse derrogada?
A verdade é que essa pergunta não é respondida no texto. A questão que se propõe na peça está além do direito, ela diz respeito ao Poder e à Moral.
Mesmo se portando como o que se poderia denominar um "liberal", Ângelo se utiliza do poder para realizar o seu desejo – e não teria como realizá-lo se não estivesse no lugar do Duque. Para isso, ignora a lei que ele próprio invocou para condenar Cláudio. E, ainda, se utiliza da lei para atuar da forma como ele pensa ser justo e correto, ignorando a opinião contrária de todos os segmentos da sociedade de Viena.
E não se diga que a postura de Ângelo não pode ser comparada à de um liberal por não se encontrarem presentes na peça os valores da liberdade e da propriedade. O valor da liberdade está presente na prisão injusta de Cláudio, como também está presente o direito à vida, ameaçado por uma sanção desmedida. Quanto ao direito de propriedade, Locke diz, em seu "Segundo Tratado Sobre o Governo", que fazem parte do conjunto de propriedades do cidadão a vida e a liberdade, devendo ser protegidas pelo Estado contra todo aquele que pretender violá-los. E estes direitos foram violados justamente pela aplicação literal da lei.
No entanto, o Duque, apesar de agir "por debaixo dos panos" portando-se como um rei absoluto, termina a história aplicando castigos com justiça para cada castigado sem recorrer a lei alguma e nem por isso se deixa de ter o sentimento de que houve justiça. Sua conduta, ao aplicar as punições, baseou-se no que seria moralmente correto. Deixou-se guiar pela razão e pela ética ao invés de guiar-se por uma lei cuja aplicação seria injusta.
Quanto à questão da lei, talvez ela não tenha sido resolvida por ser, a princípio, insolúvel na época. Ângelo pensava ser aplicável, a sociedade discordava e o Duque tinha dúvidas. Dependendo da forma de raciocínio, da situação, do período histórico e da crença de cada um, a questão seria resolvida de forma diferente. Contudo, a Justiça se realizou da mesma forma.
Não seria incorreto afirmar que a moral da história é: mais vale um Estado com rei absoluto justo e correto que um Estado limitado por leis mas com governantes corruptos e canalhas no poder (porque, neste caso, a lei só serve de justificativa para as injustiças).
NOTAS
01. Enciclopédia Barsa, v. 14, Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., Rio de Janeiro – São Paulo, 1987, p. 263.
02. É interessante notar que no teatro shakespeariano os nobres e as pessoas com melhor educação falam em verso e as demais em prosa.
03. SHAKESPEARE, William. Medida Por Medida. Trad. Para o português de Barbara Heliodora, editora Nova Fronteira, sem data, p. 47.
04. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 61.
05. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 77.
06. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 81.
07. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 87.
08. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 61.
09. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 87.
10. Para usar uma expressão contratualista. Fique claro que esta visão contratualista não está expressa no texto da peça.
11. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 63.
12. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 87.
13. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 51.
14. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 131/133.
15. É a idéia contratualista de John Locke apresentada no Segundo Tratado Sobre o Governo e que pressupõe um estado de natureza (anterior à formação da sociedade pelos indivíduos através de um contrato social) em que todos os indivíduos possuem liberdade plena para fazer tudo o que desejam sendo limitados apenas pela sua postura moral ou pela ação de uma força externa maior que a sua. Ver nota n. 10.
16. Esta fórmula é proposta por Cesare Beccaria na obra Dos Delitos e Das Penas.
17. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 57.
18. Ver citação n. 12.
19. SHAKESPEARE, William. ob. cit., p. 87/89.
20. Segundo Norberto Bobbio, na sua obra Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 4. ed., Brasília, editora UnB, 1997, a lei seria a limitação externa ao exercício do poder soberano.
21. HOOKER, Richard. As Leis da Política Eclesiástica. Livro I, sec. 10; apud LOCKE, John, Segundo Tratado Sobre o Governo. In: Os Pensadores: Locke, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 70.
22. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. op.cit., p. 12/13.