Os limites da aplicação da boa fé objetiva e dos deveres anexos de conduta aos contratos empresariais

10/08/2015 às 14:11
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Este artigo aborda a aplicação da boa fé objetiva e dos deveres anexos de conduta nos contratos empresariais; ofertando, ao final, critérios de mitigação dos deveres de conduta decorrentes do princípio da boa-fé objetiva.


SUMÁRIO: 1. A unificação do Direito Privado pelo Código Civil de 2002 e a interpretação dos contratos empresarias 2. A função interpretativa da boa fé objetiva 3.Os deveres anexos de conduta 4  Aplicação da boa fé objetiva no direito comercial 5. Conclusão.


RESUMO: Este artigo aborda a aplicação da boa fé objetiva e dos deveres anexos de conduta nos contratos empresariais; demonstrando, ao final, que sua aplicação depende de uma interpretação levando em conta as características peculiares destes contratos.
Para tanto será feito breve delinear da unificação do Direito Privado pelo Código Civil de 2002 o qual manteve a autonomia do Direito Empresarial e estudo de algumas  características dos contratos empresariais que ofertará critérios de mitigação dos deveres de conduta decorrentes do princípio da boa-fé objetiva.
  
1) A unificação do Direito Privado pelo Código Civil de 2002 e a Interpretação dos contratos empresariais

A unificação do Direito Privado pelo Código Civil de 2002 proporcionou a junção do direito obrigacional sem entretanto, extinguir a autonomia do Direito Empresarial. Neste sentido, Maria Helena Diniz:
O novo Código Civil é, tão somente, uma lei que contém a base e não a normatização integral do direito privado, que não foi unificado. Não se deu, no nosso entendimento, uma comercialização do direito civil, nem um civilismo do direito comercial. O Código Civil é a lei básica e não global do direito privado.1

Ainda neste sentido de  ausência de unificação do Direito Privado como um todo :
Ao contrário do que se fez na Itália em 1.942, nunca foi intenção do legislador brasileiro a unificação do Direito Privado como um todo. Este intuito fica claro quando foram excluídas do âmbito do novo diploma de 2002 matérias " que reclamam disciplina especial autônoma, tais como as de falência, letras de câmbio e outras que a pesquisa doutrinária ou os imperativos da política legislativa assim o exijam. Ficou assim mantida a disciplina do Direito Empresarial, sendo certo que o Código Civil de 2002 deve ser entendido como uma lei básica, vez que adotou regras jurídicas gerais. 2

O entendimento de Maria Eugênia Finkelstein é que os contratos empresariais são categorias autônomas. Desta forma, há sim, necessidade de sistematização de uma teoria dos contratos empresariais, mesmo em face do vasto número de contratos empresariais que surgem na legislação extravagante, entre os quais factoring, leasing, franchising, swap e hedge, somente para citar os que apresentam nomenclatura na língua inglesa. 3
Neste ponto é válido o entendimento de que o estudo dos contratos empresariais deve e será feito de forma autônoma aos demais contratos, sendo certo que competirá ao aplicador averiguar em que pontos as normas comerciais extravagantes conflitam, ou não, com o Código Civil, deixando de aplicá-las, no todo ou em parte, ou, então, efetuando as adaptações que forem necessárias. 4


            Por força do Código Civil de 2002, contratos civis e contratos empresariais passaram a ser tratados indistintamente no mesmo corpo legal, e a problemática do tema se revela quanto a aplicação dos tradicionais princípios do Direito Contratual, tais como a autonomia da vontade, a supremacia da ordem pública, o consensualismo, a força obrigatória dos contratos, a onerosidade excessiva, função social do contrato, relatividade dos contratos e a boa fé.
Ainda que a disciplina dos contratos se dê de forma unificada, não há como admitir que as peculiaridades envolvendo contratos empresariais tenham desaparecido, ao contrário estas devem ser consideradas quando da sua interpretação.
Neste ponto será considerado contrato empresarial como aquele realizado por empresários como instrumentos facilitadores do exercício de sua prática profissional.

            O conceito de empresário previsto no Código Civil brasileiro em seu artigo 966, é aquele que exerce de forma profissional atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens e serviços.
O Direito Empresarial tem natureza própria, como um todo, teve sua origem ligada aos usos e costumes comerciais, que culminaram no nascimento deste ramo autônomo do Direito.

E por este motivo estes usos e costumes que embasaram a criação desse ramo do Direito não podem ser esquecidos quando da interpretação  dos contratos empresariais, e por isso torna-se importante a questão relativa à forma diferenciada de sua interpretação.


            Acerca das regras de interpretação incluídas em corpos normativos, trazemos a lição de Carlos Maximiliano: As regras de Hermenêutica incluídas em um Código têm a mesma força compulsória que os outros preceitos ali consolidados, isto é, variável segundo a evolução; porquanto devem ser interpretadas também de acordo com as condições sociais. Obrigatórias em teoria, sofrem alterações sutis e sua aplicabilidade, à medida das necessidade e conjunturas imprevistas e multímodas da prática e conforme a índole dos dispositivos em cuja exegese se empregam.5


            A evolução das regras de interpretação contratual seguiu uma estrada, no Brasil, que vai da sistematização de Pothier - editada em 1761 e traduzida para a língua portuguesa em 1835 por CORRÊA TELLES - passando por Cairu, pelo Código de Napoleão e desembocando no Código Comercial de 1850, especialmente em seu artigo 131. 6

Nas palavras de Paula Forgioni as disposições do artigo 131 revogados da primeira parte do Código Comercial ainda sobrevivem, e oferta hoje a possibilidade de ser um valioso instrumento de interpretação, vejamos:

 Apenas lembramos que as modificações não alteraram a principal função do direito comercial, motivo mesmo de sua gênese: dar condições para a atividade dos mercadores, diminuindo os custos de transação e eliminando efeitos autodestrutíveis decorrentes do funcionamento do próprio sistema. Especialmente quando se cuida da interpretação contratual, muitas dessas antigas direções atendem ao escopo de azeitar as relações de mercado, aumentando o grau de segurança e previsibilidade a partir do momento em que impõe o respeito à boa fé, à confiança, à proteção da legítima expectativa da contraparte (enfim, consideram uma racionalidade jurídica).7

Segundo a autora o artigo 131 do Código Comercial traz pontos centrais que refletem a tradição que existe nas entranhas do Direito mercantil vejamos: i)respeito à boa fé objetiva (e não subjetiva),ii)força normativa dos usos e costumes;iii) vontade objetiva e desprezo pela intenção individual de cada um dos contratantes - note-se que o texto legal faz referência expressa ao "espírito do contrato" e à natureza do contrato" e não a intenção de cada uma das partes, individualmente considerada;iv)comportamento das partes como forma de chegar à vontade comum, ao espírito do contrato;v)interpretação a favor do devedor;vi) respeito à autonomia privada. 8

Nesta mesma linha de raciocínio e pugnando pela consagração e  aplicação dos usos e costumes, ainda que ausente do Código Civil de 2002 Maria Eugênia Finkelstein em suas palavras:
Firmamos, assim, nosso entendimento de que, uma vez identificado um contrato empresarial, tanto por sua finalidade quanto em face de suas partes, é necessário que eles sejam interpretados não só pelas leis, mas também pelos usos e costumes comerciais, prática esta constante do Código Comercial de 1.850, mas lamentavelmente ausente do Código Civil de 2002. 9

 Para Maria Eugênia inobstante a ausência de previsão legislativa no corpo do Código Civil de 2002 quanto a utilização dos usos e costumes há menção expressa desta na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro em seu artigo 4º:

Art 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.:

Cumpre lembrar, no entanto , que, apesar da falta de previsão de usos e costumes comerciais no corpo do Código Civil de 2002, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 4º, traz a precisão da utilização dos usos e costumes.10


 Art 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Paula Forgioni em sua obra trata das peculiaridades do direito empresarial e da interpretação dos contratos empresariais e alerta que apurada a existência de um direito regido por "princípios peculiares", que disciplina as relações dos empresários no mercado, cumpre analisarmos as conseqüências relevantes para a interpretação dos negócios empresariais. Sabemos que interpretar um contrato entre fornecedor e distribuidor é diferente de interpretar uma doação do pai para a filha que vai se casar. Ou ainda que o método de exegese de um testamento diverge daquele dos contratos que corporificam uma grande fusão.

É mesmo evidente que os mercados mercantis merecem tratamento interpretativo diverso daquele reservado às relações entre fornecedores e consumidores, porque estas últimas obedecem a princípios que não podem ser aplicados aos vínculos entre empresários, sob pena de introduzirmos no corpo do direito comercial um inadequado "consumerismo" fadado à rejeição. 11


2) A função interpretativa da boa fé objetiva

O artigo 113 do Código Civil 2002 dispõe que: os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa fé e os usos do lugar de sua celebração". 12
É inegável que o Direito empresarial da pós modernidade vislumbra a boa fé objetiva como regra fundamental de interpretação de toda e qualquer atividade negocial.
O princípio da boa-fé objetiva representa um “modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade,probidade’.”13

Os autores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald sustentam que  os  três paradigmas do novo Código Civil são: a eticidade, a socialidade e a operabilidade. A boa fé é a maior demonstração de eticidade da obra conduzida por Miguel Reale. A ética é uma ciência que racionalmente objetiva conduzir o comportamento do homem à realização do bem comum, que é a finalidade do homem. O neologismo eticidade relaciona-se de forma mais próxima com uma noção de moralidade, que pode ser conceituada como uma forma de comportamento suportável, aceitável em determinado tempo e lugar.

Destarte, a boa fé servirá como um parâmetro objetivo para orientar o julgador na eleição das condutas que guardem adequação com o acordado pelas partes, com correlação objetiva entre meios e fins. O juiz terá que se portar como um "homem de seu meio e tempo" para buscar o agir de uma pessoa de bem como forma de valoração das relações sociais.14

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 Neste ponto Judith Martins Costa entende que a boa- fé funciona como modelo capaz de nortear o teor geral da colaboração intersubjetiva, devendo o princípio ser articulado de forma coordenada às outras normas integrantes do ordenamento, a fim de lograr adequada concreção. Assim, surge uma profícua sistematização da boa-fé, mediante a divisão em três setores operativos: i)como função de otimização do comportamento contratual;ii)relativo à função de limite no exercício de direitos subjetivos; iii) correspondente à função de reequilíbrio do contrato. 15

A boa fé exerce múltiplas funções, sendo três áreas de operatividade da boa- fé no Código Civil de 2002: desempenha papel de paradigma interpretativo na teoria dos negócios jurídicos (art.113 do CC 2002); assume caráter de controle (limitação), impedindo o abuso do direito subjetivo, qualificando o como ato ilícito (art 187 do CC 2002); e, finalmente, desempenha atribuição integrativa, pois dela emanam deveres que serão catalogados pela reiteração de precedentes jurisprudenciais (art 422 do CC 2002) 16

A função interpretativa da boa-fé objetiva indica a forma como o intérprete irá pautar-se para buscar o sentido adequado de examinar-se o conteúdo contratual fundado na observância da boa-fé nas relações jurídicas contratuais. O magistrado verificará, a vontade objetiva do contrato, ou seja, a vontade aparente do negócio jurídico, de acordo com o que pessoas honestas e leais - do mesmo meio cultural dos contratantes entenderiam a respeito do significado das cláusulas postas em divergência. 17

Nas palavras de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves afasta-se a teoria da vontade (em que predominava a vontade interna das partes sobre a declaração) e a teoria da declaração (pela qual prevalecia o texto do contrato, ignorando o aspecto psíquico das partes). A interpretação pela boa-fé reforça o dispositivo que lhe antecede e prestigia a teoria da confiança. 18

A função de controle da boa-fé objetiva impõe limites ao exercício abusivo do direito subjetivo dos contratantes, para determinar até onde o mesmo é legítimo ou não, e, desta forma, obter o merecimento do ordenamento jurídico.
Nesse escopo, a referida função implica em limitação de direitos subjetivos das partes as quais devem, necessariamente, observar os preceitos estabelecidos pela boa-fé objetiva no entabulamento dos negócios jurídicos, no intuito de que o contrato possa cumprir sua função social.19

Clóvis de Couto adverte sobre a possibilidade de confusão entre a incidência da boa fé objetiva com a aplicação da interpretação integradora, vejamos:

Com efeito, a distinção avulta, pois a interpretação concerne ao conteúdo da declaração da vontade, já a integração refere-se aos respectivos efeitos que não foram objeto de qualquer previsão no corpo da declaração. É o processo pelo qual se preenchem as lacunas existentes no negócio jurídico através de uma solução justa e equilibrada. Ou seja, quando os intérpretes (juiz, partes, terceiros interessados) não encontram no negócio jurídico a norma adequada à solução da controvérsia, configura-se a lacuna. Daí, sobreleva promover-se a integração do negócio jurídico com a aplicação de fontes externas, heterônomas que solucionarão àquelas conseqüências de um negócio jurídico já interpretado. 20

A função integrativa da boa-fé objetiva é fonte criadora de novos deveres especiais de conduta a serem observados pelas partes durante o vínculo obrigacional. São os chamados deveres anexos, instrumentais ou colaterais de conduta, que passam a ser observados em toda e qualquer relação jurídica obrigacional.21

Assim, o contrato não envolve, tão somente, a obrigação de prestar, mas, também, uma obrigação de conduta dos contratantes visando a garantir o adimplemento da obrigação. 22

Trata-se da função mais importante do princípio da boa-fé objetiva, pois os referidos deveres que se originam deste passam, obrigatoriamente, a integrar qualquer relação obrigacional, como obrigação secundária, para que essa seja equilibrada, e permita não frustrar a confiança mútua e a legítima expectativa dos contratantes.

O princípio em comento gerou profundas transformações no Direito Contratual, causadas pela relativização da autonomia privada dos contratantes, a qual passa a ser mitigada pela observância a novos deveres (anexos) inseridos na relação jurídica, que dele afluem na forma de obrigação secundária, bem como pela prevalência de funções intrínsecas ao mesmo, que visam a nortear a conduta (comportamento) dos contratantes ao adimplemento contratual.23

Conclui-se que  o Direito Obrigacional, e em especial os contratos, irão nortear-se pela autonomia privada acrescida pelos deveres anexos de conduta da boa-fé objetiva, no intuito de garantir o efetivo adimplemento contratual.

3- Os deveres anexos de conduta

A partir do princípio da boa-fé objetiva surgem os chamados deveres anexos de conduta, por ora denominados como laterais, instrumentais, colaterais, dentre outros, os quais agem na relação jurídica obrigacional, no intuito de instrumentalizar o correto cumprimento da obrigação principal e a satisfação dos interesses envolvidos no contrato.
Estes deveres de conduta que acompanham as relações contratuais vão ser denominados de deveres anexos (Nebenpflichten), deveres que nasceram da observação da jurisprudência alemã ao visualizar que o contrato, por ser fonte imanente de conflitos de interesses, deveria ser guiado e, mais ainda, guiar a atuação dos contraentes conforme o princípio da boa-fé nas relações. 24

 Os deveres anexos podem ser compreendidos como deveres positivos e negativos, os quais através da sua inserção na relação jurídica, relativizam a autonomia privada, ao estabelecer deveres de comportamento, os quais nortearão a conduta dos contratantes, nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual.25

Devido à importância concretizada pelos deveres anexos de conduta nas relações jurídicas obrigacionais, a doutrina firmou entendimento no sentido de que, quando se descumpre os deveres anexos de conduta, surge a chamada violação positiva do contrato ou adimplemento ruim, pois a obrigação principal é cumprida, porém, tem-se o descumprimento dos deveres anexos (obrigação secundária). 26

Portanto, não basta que as partes cumpram apenas a obrigação principal. Os contratantes devem cooperar entre si, agir com lealdade, para que o negócio jurídico obtenha êxito, ou seja, "colaborar durante a execução do contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva", através do respeito aos deveres anexos, visando ao correto adimplemento da obrigação.27

Da consagração da boa-fé objetiva nas relações contratuais decorrem principalmente os deveres de informação, de colaboração e cuidado, somatória que realiza a insofismável verdade de que, em sede contratual, se lida com algo bem maior que o simples sinalagma: lida-se com pressupostos imprescindíveis e socialmente recomendáveis, como a fidelidade, a honestidade, a lealdade, o zelo e a colaboração. Enfim, está presente, também na ambiência contratual, o sentido ético, a tendência socializante e a garantia de dignidade que são, por assim dizer, as marcas ou marcos deste direito que, perpassando os séculos, se apresenta modificado aos primórdios do milênio novo.

Desta forma, é imprescindível que as partes atuem nas relações jurídicas obrigacionais firmadas, com observância aos deveres anexos de conduta, os quais impõem para além da obrigação jurídica principal, deveres fiduciários (obrigação complexa), os quais objetivam resguardar a legítima expectativa e a confiança mútua existente entre as partes.
Por fim, assevera-se que a boa-fé objetiva materializa-se através dos deveres anexos de proteção (ou cuidado), cooperação (ou lealdade) e de informação (ou esclarecimento), dentre outros, pois, sua enumeração não pode ser considerada taxativa.28

4) Aplicação da boa fé objetiva no direito empresarial

Quanto a aplicação da boa fé no direito comercial é necessário deixar vincado que esta não  desempenha apenas uma função moral, desconectada da realidade dos negócios e fundada em valores outros que não a busca do melhor funcionamento do mercado. Ao contrário, reforça as possibilidades de confiança dos agentes econômicos no sistema, diminuindo o risco. 29

O apontamento que merece ser feito é que problemas podem derivar da aplicação da boa-fé como parâmetro de interpretação contratual, por se tratar de um "conceito vago e amplo" ensejando riscos.
A boa-fé vem relacionada ao uso e ao costume da praça, ou seja, ela é objetiva e não extraída do íntimo dos participantes do conflito e essa visão faz que a boa-fé dispa-se de tantos aspectos morais que a revestem em outros contextos, exsurgindo objetivada, ou seja, segundo os padrões de comportamento normalmente aceitos em determinado mercado (ou em determinada praça). 30

A situação certamente se torna delicada no momento em que a boa fé objetiva é utilizada como amparo para criar novos direitos inexistentes, conforme assevera Ricardo Lupion:
Nos contratos empresariais, é preciso cautela para evitar que a boa-fé objetiva seja argüida para "reescrever o contrato" ou para "criar direitos ou deveres que não decorram da relação contratual existente, a fim de evitar a transformação da boa fé objetiva como o "ultimo refugio das partes para recuperar perdas decorrentes do próprio fracasso". 31

O preenchimento de normas contratuais baseadas em deveres impostos por cláusulas gerais deve ser apartado da mera atribuição de poder a terceiro, que em nome da manutenção do contrato estabelece seus termos futuros.  Na realidade prática, esse obstáculo não é demarcado de forma clara e os julgadores acabam muitas vezes utilizando a boa-fé como palavra "elemento curinga" para justificar decisões que , na verdade, implicam em configurado abuso da legítima liberdade de contratar.

Neste sentido Paula A.Forgioni em suas palavras:

É preciso precaver-se contra o risco de se utilizar a boa fé como remédio para todos os males, empregando-a em nome de amorfa busca da "justiça social". Especificamente no que toca ao direito comercial, mesmo nos contratos colaborativos, a boa- fé não pode ser aplicada de maneira a despir o agente econômico da sagacidade que lhe é peculiar. Tampouco deve ser aplicada como justificativa para o inadimplemento da parte ou desculpa para comportamentos imprudentes ou desconformes ao parâmetro de mercado.32

Corroborando tal premissa colaciona-se a dicção de Larenz:
O juiz não deve impor seus próprios módulos às partes, que determinam por si o conteúdo do contrato no âmbito de sua autonomia privada, mas apenas levar a termo ponderação das valorações em que elas se basearam.33

Para Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, " a boa fé objetiva não pode ser aplicada da mesma forma às relações de consumo e às relações mercantis ou societárias pela simples razão de que os standards de comportamentos distintos:

Assim, enquanto no exemplo de compra e venda de um automóvel exige-se que o vendedor forneça ao comprador toda a informação relevante acerca do veículo e qualquer outro dado relacionado à função social e econômica, a aquisição de controle de uma determinada sociedade, por outro lado, envolve normalmente uma avaliação dos riscos e passivos da sociedade (due diligence) pela própria  empresa adquirente, o que, se não isenta  o alienante do seu dever de informação, reduz evidentemente sua intensidade. 34

Outro grande inconveniente apontado por José de Oliveira Ascensão quanto a boa-fé objetiva é sua excessiva extensão: "Se se aplica a todos os setores do direito e em todas as circunstâncias, perde a compreensão. Por isso dizemos que a boa-fé, se é tudo, passa a ser nada. Passa a ser um rótulo com pouca explicatividade. 35

Outro ponto a ser considerado é que algumas características dos contratos empresariais levam ao caminho da mitigação dos deveres de conduta decorrentes da boa fé objetiva nesses contratos, devendo tal leitura ser apropriada ao ambiente dos negócios empresariais.

A empresa reúne os seguintes elementos: exercício da atividade econômica, organização dos fatores da produção e comportamento profissional voltado à obtenção de lucros, mediante a assunção de riscos a ela inerentes. 36

Por sua própria natureza, os contratos empresariais contam com partes que atuam no mercado de forma profissional, e justamente por esta atuação há uma implicação direta de absorção de riscos em troca de um resultado, ainda que existam meios de minimizá-los não há como isolar a atividade econômica empresarial do risco de forma absoluta.
Além do risco outra característica dos contratos empresariais são celebrados por empresas dirigidas por administradores sujeitos ao dever de diligência que significa cuidado, atenção e zelo que o administrador das sociedades devem ter.

Para Ricardo Lupion, para as empresas contratantes resulta um ônus próprio de agir durante a relação contratual decorrente do dever de diligência que atenua os deveres de conduta das empresas contratantes, pois, do contrário, seria possível admitir que o insucesso da parte contratante (no caso, da empresa) na avaliação adequada das condições contratuais poderia ser compensado pela incidência dos deveres de conduta decorrentes da boa fé objetiva que seriam impostos à contraparte (no caso, à outra empresa -contratante) com a mesma intensidade e alcance que ocorre, por exemplo nas relações consumeristas.37

Ainda sobre o assunto comenta o autor que a empresa deve observar os padrões comercialmente reconhecidos de lisura e lealdade a condução dos negócios, para alcançar um conceito de boa-fé objetiva próprio dos negócios empresariais, visando, inclusive proteção das legítimas expectativas das partes criadas em contratos validamente constituídos entre empresas.38

Para alcançar os objetivos a empresa precisa de preparação ou organização mínima, nessa perspectiva os contratos empresariais assumem a função de "planificar, antecipar o futuro e, mesmo, de certo modo, trocar o presente pelo futuro, ou vice-versa, assumir uma desvantagem presente em troca de uma vantagem futura. 39

Os contratos costumam ser precedidos de um período em que as partes discutem, trocam idéias, projetam, examinam cláusulas, cada uma delas procurando obter da outra condições mais favoráveis.40
Outro fator a ser avaliado são os efeitos e o alcance do dever de cooperação nos contratos empresariais não devem ser examinados sob a mesma ótica do dever de cooperação nos contratos de consumo.

Lupion questiona: Seria possível impor às empresas- contratantes o dever de agir de modo solidário em cooperação com a contraparte? Sabe-se, desde logo,que as empresas são rivais e estão em permanente estado de disputa, tanto é exato que há lei específica (Lei 8.884-94) que regula as práticas anticoncorrencias, razão pela qual se entre as empresas há disputa, rivalidade e competição, entendemos que nesse ambiente, o conteúdo e o alcance das atitudes solidárias e de cooperação nos contratos empresariais precisam ser reavaliados e repensados.41

Por outro lado em situações de desigualdade das partes, da assimetria de informações ou da dependência econômica poderá resultar a vulnerabilidade de uma das partes, situação esta que justifica a prevalência do princípio da boa-fé objetiva e dos deveres anexos de conduta nos contratos empresariais diante da necessidade da proteção do equilíbrio e das forças contratuais, a despeito da existência de partes contratantes profissionais voltadas para a obtenção de lucros, já que os traços marcantes da atividade da empresa - profissionalismo, risco e lucros- deverão ser relativizados diante da vulnerabilidade, bem maior a ser protegido.42
Paulo Mota Pinto propõe a mitigação dos deveres de conduta decorrentes da boa-fé objetiva nos contratos empresariais entre iguais, porque esse controle externo não pode " retirar aos particulares a possibilidade de, através do exercício da autonomia privada, conformar as suas relações jurídicas como entenderem.

 A função plena desses deveres nos contratos entre desiguais, em razão da vulnerabilidade de uma das partes em decorrência do poderio econômico, da assimetria de informações e, finalmente, do elevado grau de dependência  econômica, sempre com a reiterada ressalva de que esses deveres de conduta não deverão ser "chamados a depor" para corrigir a frustração de lucros que uma empresa depositava no contrato. 43
5) Conclusão

Inobstante a unificação do Direito Privado pelo Código Civil de 2002 fica evidente que a junção do direito obrigacional não extinguiu a autonomia do Direito Empresarial que possui características peculiares que devem serem levadas em consideração quando da análise da interpretação dos contratos empresariais.

Com o advento do Código Civil de 2002, as relações contratuais tomam novos contornos, com a consolidação da principiologia contratual contemporânea no ordenamento jurídico brasileiro, com destaque para o princípio da boa-fé objetiva e os deveres anexos de conduta, que passa a relativizar a autonomia privada, apresentando novos contornos à liberdade contratual, no tocante ao estabelecimento do conteúdo do contrato.

 A releitura deste princípio é imprescindível dentro do contexto das características peculiares dos contratos empresariais a fim de evitar que contratos possam ser reescritos e criado direitos inexistentes.

Nessa esteira, as características dos contratos empresariais somada a forma de interpretação, delimitam os limites da aplicação do princípio da boa-fé objetiva que em alguns momentos deve ter sua atuação de forma mitigada.

Por outro lado quando houver desigualdade entre as partes, assimetria de informações ou dependência econômica, impõe a retomada da função plena dos deveres de conduta.


Referências
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  4. 4 - Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro.São Paulo:Saraiva,2008.v.8,p.4.
  5. 5 Maximiliano,Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16.ed.Rio de Janeiro:Forense,1996.p.98.
  6. 6  FORGIONI, Paula." Interpretação dos negócios empresariais" Contratos empresariais: Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. Wanderley Fernandes (coord.) São Paulo:Saraiva,2007,p.219-220.
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  8. 8- FORGIONI, Paula." Interpretação dos negócios empresariais" Contratos empresariais: Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. Wanderley Fernandes (coord.) São Paulo:Saraiva,2007,p.228-229.
  9. 9.  Finkelstein, Maria Eugênia.. Distinção entre Contrato não empresarial, contrato empresarial e relações jurídicas de consumo. In: Gilberto G. Bruschi; Monica B. Couto; Ruth M.J.A.P. e Silva; Thomaz H.J.A. Pereira. (Org.). Direito Processual     Empresarial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, v. , p. 571).
  10. 10- Finkelstein, Maria Eugênia.. Distinção entre Contrato não empresarial, contrato empresarial e relações jurídicas de consumo. In: Gilberto G. Bruschi; Monica B. Couto; Ruth M.J.A.P. e Silva; Thomaz H.J.A. Pereira. (Org.). Direito Processual     Empresarial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, v. , p. 571).
  11. 11 - FORGIONI, Paula." Interpretação dos negócios empresariais" Contratos empresariais: Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. Wanderley Fernandes (coord.) São Paulo:Saraiva,2007,p.218.
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  16. 16 - FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Lineamentos acerca da interpretação do negócio jurídico: perspectivas para a utilização da boa-fé objetiva como método hermenêutico. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v.18, p.8-32, dez./jan. 2008.
  17. 17- ALVES, José Carlos Moreira. A parte geral do projeto do Código Civil Brasileiro,2.ed.São Paulo: Saraiva,2003. p. 102.
  18. 18- FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Lineamentos acerca da interpretação do negócio jurídico: perspectivas para a utilização da boa-fé objetiva como método hermenêutico. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v.18, p19 , dez./jan. 200
  19. 19 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.pg.382.
  20. 20- Silva, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatski, 1976.
  21. 21 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,boa-fé e justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994.p.157.
  22. 22 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de defesa do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.p.218
  23. 23 SILVA, Michael César. A doença preexistente no contrato de seguro de vida: o princípio da boa-fé objetiva e o dever de informação. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: atualidades III - princípios jurídicos no direito privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.410 e 411.
  24. 24 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de defesa do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.p.219.
  25. 25 MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. A boa-fé como parâmetro da abusividade no direito contratual. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001a, p.316.
  26. 26 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de defesa do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.p.220.
  27. 27 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de defesa do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.p.233.
  28. 28 MARTINS-COSTA (2000, p.437-454);
  29. 29 - Gomes, Orlando, Introdução ao Direito Civil, pg, 244 .
  30. 30- Paula A. Forgioni - Teoria Geral dos Contratos Empresariais, 2ª edição revista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pg. 239
  31. 31 - Lupion, Ricardo, BOA FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS EMPRESARIAIS CONTORNOS DOGMÁTICOS DOS DEVERES DE CONDUTA, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p.154.
  32. 32 Paula A. Forgioni - Teoria Geral dos Contratos Empresariais, 2ª edição revista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pg. 214.
  33. 33 Larenz, Karl. Derecho civil: parte general Revista de Derecho Privado, 1978. pg.746.
  34. 34- Tepedino Gustavo; Schreiber Anderson. " A boa fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil". Obrigacões: estudos na perspectiva civil constitucional. Gustavo Tepedino (coord.) Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.43.
  35. 35 - Ascençao, José de Oliveira. " A desconstrução do abuso do direito" Novo Código Civil. Questões controvertidas.Série grandes temas de direito privado, vol. 4.Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves (coords.). São Paulo: Método, 2005, p.43.
  36. 36 Lupion, Ricardo, BOA FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS EMPRESARIAIs CONTORNOS DOGMÁTICOS DOS DEVERES DE CONDUTA, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p.141.
  37. 37 Lupion, Ricardo, BOA FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS EMPRESARIAIS CONTORNOS DOGMÁTICOS DOS DEVERES DE CONDUTA, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p.143.
  38. 38  Lupion, Ricardo, BOA FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS EMPRESARIAIS CONTORNOS DOGMÁTICOS DOS DEVERES DE CONDUTA, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p.147.
  39. 39- Miranda Jr, Darcy Arruda. Curso de Direito Comercial. 1º volume. Parte geral.São Paulo:Saraiva,p.100)
  40. 40  Fachin, Luiz Edson. "O aggiornamento do direito civil brasileiro e a confiança negocial" Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporaneo. Rio de Janeiro: Renovar,1998,p.115.
  41. 41 - Lupion, Ricardo, BOA FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS EMPRESARIAIS CONTORNOS DOGMÁTICOS DOS DEVERES DE CONDUTA, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p.150.
  42. 42 - Lupion, Ricardo, BOA FÉ OBJETIVA NOS CONTRATOS EMPRESARIAIS CONTORNOS DOGMÁTICOS DOS DEVERES DE CONDUTA, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p.176.





     
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