De Aristóteles a Kant, a felicidade na Constituição Brasileira

15/08/2015 às 20:43
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Sendo a busca pela felicidade decorre do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assim não há como se ignorar a necessidade de sua proteção.

INTRODUÇÃO

Em 1989, o filósofo Julián Marías Aguilera (em seu livro "A felicidade Humana"[1]) ressaltou que a ausência da reflexão filosófica sobre a felicidade no mundo contemporâneo talvez seja um sintoma de como esse mesmo mundo está infeliz. E possivelmente o é.

A realidade, de infelicidade generalizada, contribuiu para o surgimento de uma nova linha de investigação: a felicidade como direito fundamental do ser humano e qual o papel da felicidade na atual ordem jurídica?

E nesse vértice, emana a obra de Immanuel Kant, pois, embora o filosofo alemão disponha que a felicidade se coloca no âmbito do prazer e do desejo, motivo pelo qual não está compreendida na ética e, consequentemente, não é um tema que interesse à investigação filosófica. Ao mesmo tempo, Kant lança o ideal de proteção a dignidade da pessoa humana.

Ocorre que a dignidade da pessoa humana na visão do Supremo Tribunal Federal inclui a busca pela felicidade, que decorre, de forma implícita, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais.


FELICIDADE?

Aristóteles, em seu livro “Ética a Nicômaco” consagrou, em meio a ebulição cultural da Grécia clássica a ética do “meio-termo”, sendo condenáveis os extremos (tidos como causadores dos excessos e dos vícios). Para o filosofo, a atitude deve estar está entre os vícios e as virtudes, a fim de equilibrar a conduta do homem. Portanto, sendo o homem um ser racional, a felicidade deve ser incluir com o total desenvolvimento da racionalidade.

É importante lembrar que as qualidades do caráter podem ser dispostas de modo que identifiquemos os extremos e a justa medida. Por exemplo, entre a covardia e a audácia está a coragem; entre a preguiça e a ganância está a ambição. 

Antes de Aristóteles, Sócrates e Platão colocam o homem como senhor soberano de si mesmo, dotado de autocontrole e mestre dos seus desejos, nunca escravos destes[2]. O homem feliz é o homem autossuficiente. Sublinhe-se ainda que Aristóteles considera a política como uma extensão da ética e, nesse sentido, para ele também é uma função do Estado criar condições para o cidadão ser feliz.

Ocorre que, com o advento da Idade Média, a felicidade desapareceu do horizonte da filosofia, ressurgindo como “prazer duradouro” nos séculos 17 e 18.

Posteriormente, Immanuel Kant definiu a felicidade como “a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e vontade”, motivo pelo qual a felicidade – que como prazer e desejo – não interessa à investigação filosófica. Assim, a felicidade desaparece da filosofia novamente.

A DIGNIDADE HUMANA DE KANT

É na obra de Kant que surge, a depender do ponte de vista, a base do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois Kant foi o primeiro teórico a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor – assim entendido como preço.

A problemática central do livro “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, de Immanuel Kant, refere-se à seguinte questão: como devo agir para que a minha ação seja boa?

Nessa sorte, Kant preocupou-se em demonstrar como os princípios morais, ditados pela razão, devem ser valorizados ao ponto em que possam assumir o papel de leis universais. Sublinhe-se no entanto que sua obra, datada de 1785, é impregnada de ideais de liberdade e de valorização do ser humano contra os excessos das monarquias absolutistas.

Ao mesmo tempo, Kant valorizou a vida humana e evidenciou que o ser humano deve ser considerado como fim sem si mesmo, e jamais como instrumento de submissão a outrem. Nessa linha, o filosofo alemão destacou: 

Agora eu afirmo: o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser  racional –  existe  como fim  em  si  mesmo,  e  não apenas  como  meio  para  uso arbitrário  desta  ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim[3].       

Em seguida, Kant enunciou o imperativo prático como sendo:

(...) age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio[4].

A verdade é que à luz do pensamento de Kant a conservação da vida humana é fundamental, eis que o homem deve ser considerado como um fim em si mesmo, pois, o homem não é uma coisa, não é, portanto, um objeto que pode ser utilizado como simples meio, mas, pelo contrário, deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo. 

Todos os seres racionais estão, pois, submetidos a essa lei que ordena que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si[5].

Observa-se assim que o ser humano é um fim em si mesmo justamente porque não é instrumento e portanto não tem preço.

No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por  isso  não  admite  qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (...) o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso  não  tem simplesmente  valor  relativo  ou  preço,  mas  um  valor  interno,  e  isso  quer  dizer,  dignidade[6]

Dessa forma, embora singela sua definição, observa-se que a dignidade é o valor e que se reveste tudo aquilo que não tem preço. Dessa forma, a dignidade é uma qualidade inerente aos seres humanos enquanto entes morais:  na medida em  que  exercem  de  forma  autônoma  a sua razão prática, os seres  humanos  constroem distintas personalidades humanas, cada uma delas absolutamente  individual e insubstituível. 

O grande legado do pensamento kantiano para a filosofia dos direitos humanos, contudo, é a igualdade na atribuição da dignidade. Na medida em que a liberdade no exercício da razão prática é o único requisito para a existência da dignidade, e que todos os  seres  humanos  gozam  dessa  liberdade,  tem-se  que  a  condição humana  é  o  suporte  fático  necessário  e  suficiente  à  dignidade,  independentemente  de  qualquer  tipo  de reconhecimento social.

KANT E A FELICIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO

O princípio da dignidade da pessoa humana não é visto como um direito, já que antecede o próprio Ordenamento Jurídico, mas sim um atributo inerente a todo ser humano. Assim, o princípio se apresenta como o um núcleo em torno do gravitam todos os direitos alocados sob a epígrafe “fundamentais”, que se encontram agasalhados no artigo 5º da Constituição federal. A dignidade é uma qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, na obrigação de garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos[7].

Nesse vértice, conforme se tem colhido em atuais entendimentos jurisprudenciais, notadamente os consolidados pelo Supremo Tribunal Federal, a busca pela felicidade é um valor jurídico de natureza constitucional em razão de constituir núcleo do princípio da dignidade humana. Observa-se na brilhante decisão do Supremo Tribunal Federal:

Ementa: União Civil entre pessoas do mesmo sexo - Alta relevância social e jurídico-constitucional da questão pertinente às uniões homoafetivas - Legitimidade Constitucional do reconhecimento e qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar: Posição consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF) - […] A dimensão constitucional do afeto como um dos fundamentos da família moderna. - O reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família. Doutrina. Dignidade da Pessoa Humana e Busca pela Felicidade - O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. - O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. - Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado [...][8]

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Inclusive, o direito à busca da felicidade tem raízes na própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 04 de julho de 1776, na qual o primeiro artigo estampa ser a felicidade um objetivo essencial do Ser Humano: 

“Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança (grifei)[9]”.

Nessa estreita, surge o grande questionamento: o estado deve prover a felicidade?

Para se buscar a resposta é imperiosos, inicialmente, observar que o homem tem sua atuação motivada pelo interesse próprio, no qual está inserida a busca pela felicidade. No entanto, é pressuposto basilar a existência da sociedade a obrigação desta, enquanto construção social destinada a proteger cada indivíduo, viabilizar a busca pela satisfação pessoal de forma benéfica à coletividade.

Ademais, o reconhecimento da busca pela felicidade, enquanto valor abrangido a todos os indivíduos da sociedade, suplantando qualquer distinção, deve ser protegido pelo estado em razão dele estar promovendo o princípio da dignidade da pessoa humana. Imprescindível sublinhar que, se por dignidade da Pessoa Humana pode se entender o substrato ético reconhecidos por uma sociedade, não se faz necessário, por isto, que o princípio seja levado às minúcias pelo texto constitucional para se seja dotado de aplicabilidade. 

Através do direito a busca pela felicidade se elege o vetor que se quer priorizar nesse momento de, como exposto incialmente, infelicidade generalizada, este direito remonta o pensamento clássico grego, presente na lição de Aristóteles: “a felicidade é o fim do homem”[10]


CONCLUSÃO

Sendo a busca pela felicidade - que decorre do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana - o objetivo basilar de todo Ser Humano, e reconhecendo-se que todo Ser Humano é dotado de dignidade, não há como se ignorar a necessidade de sua proteção. Tendo isto assente, não há como se pensar um direito que não se volte para o homem, assim como não há como se reconhecer um direito que não tenha sua base na Pessoa Humana.

A Dignidade da Pessoa Humana não está compreendida no aspecto patrimonial, é algo maior. Esta suposição se faz clara na lição de Kant. 

Desta forma, insta firmar que insere-se como dever do Estado o fomento, como missão positiva, políticas que vão ao encontro da realização da felicidade.


[1] http://www.acegpb.com.br/index.php?p=post&id=136, acesso em 09/08/2015.

[2] REALE, Giovanni. Aristóteles. História da filosofia grega e romana. Tradução de Henrique C. L. Vaz e Marcelo Perine. Nova edição corrigida. São Paulo: Loyola, 2007. vol. IV.

[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004

[4] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004

[5] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.

[6] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.

[7] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 62

[8] Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ RE 477554 AgR/ Relator Ministro Celso de Mello/ Julgado em 16.08.2011/ Publicado no DJe-164/ Divulgado em 25.08.2011/ Publicado em 26.08.2011.

[9] Disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/teoria/declaracao_vport.html, acesso: 10/08/2015.

[10] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

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Sobre o autor
Eduardo Borges

Delegado de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina. Professor da UnC - Universidade do Contestado Bacharel em Direito e bacharelando em Administração de Empresas. Especialista em Segurança Publica e em Direito Processual Civil. Mestrando em Administração.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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