Overbooking e o dever de indenizar qualificado

27/08/2015 às 11:40
Leia nesta página:

A prática do overbooking no mercado aeroviário e os fundamentos para a reparação do dano extrapatrimonial aos passageiros.

OVERBOOKING E O DEVER DE INDENIZAR QUALIFICADO

1. RESPONSABILIDADE CIVIL

                        A responsabilidade civil tem sua gênese etimológica no vocábulo latino spondeo, que corresponderia atualmente ao que se entende por encargo ou obrigação, derivada de alguma prática que contrarie o direito ou que produza danos a alguém.[1]

                        Segundo doutrina Carlos Roberto Gonçalves, “responsabilidade exprime ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de dano”[2].

                        Conforme o art. 186 do Código Civil, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O art. 927, por sua vez, trata das consequências do ato ilícito, que gera a obrigação de indenizar o dano, prevendo que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

                        Ao abordar a conceituação contemporânea sobre a responsabilidade civil, Sérgio Cavalieri Filho assim leciona:

Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa ideia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário .

                        Pelo que se observa, o autor supracitado define que a responsabilidade civil é precedida pela transgressão de um dever jurídico, que resulta em um dano, independentemente dessa ação ser culposa ou dolosa.

                        A contrário sensu, Arnaldo Rizzardo busca diferenciar as responsabilidades civil objetiva e subjetiva, senão vejamos:

Em ambas as dimensões desrespeita-se a ordem legal estabelecida pelo direito positivo. Pelos prejuízos ou danos que decorrem das condutas acima, a pessoa responde, isto é, torna-se responsável, ou deve arcar com os resultados ou as consequências. A ação humana eivada de tais máculas, isto é, de culpa no sentido estrito ou lato, denomina-se ‘ato ilícito’, porque afronta a ordem jurídica, ou desrespeita o que está implantado pela lei.[3]

                        Pelo que se extrai do citado doutrinador, o descumprimento do dever jurídico originário, pela prática de uma conduta que causa prejuízo, culmina no dever jurídico secundário, que é o de reparação do prejuízo resultante, havendo a sucessividade da obrigação de indenizar. Tal obrigação deriva tanto de culpa (subjetiva), quanto do mero resultado (objetiva).

                        Apesar de concebida como tendo uma ligação estreita com o conceito de culpa, a responsabilidade civil sofreu diversas adaptações, no intuito de dar uma proteção cada vez eficiente aos direitos das vítimas. Assim, o dever de provar, que, na responsabilidade com culpa, recaía sobre o ofendido, passou a recair sobre o ofensor, que agora deve comprovar que não foi responsável pelo dano causado.

1.2  CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E A RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA

                        Em virtude da posição de debilidade do consumidor na relação de consumo, entendeu-se necessário o desenvolvimento de um arcabouço legislativo que propiciasse um desequilíbrio formal entre os agentes das relações obrigacionais, a fim de proporcionar igualdade material às partes nas relações de consumo.

                        Uma das formas encontradas pelo legislador para causar esse desequilíbrio formal foi a adoção da responsabilidade civil objetiva como regra geral para esses negócios jurídicos. Assim, o fornecedor tem o dever de arcar com eventuais danos, patrimoniais ou extrapatrimoniais, que o consumidor venha a sofrer em razão da relação de consumo existente entre eles, conforme arts. 12 e 14 do CDC:

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

 

                        Pelo que se observa, a regra nas relações de consumo é a responsabilidade objetiva, sendo desnecessária a comprovação de culpa por parte do fornecedor. O dever do fornecedor em ressarcir os danos sofridos pelo consumidor deriva do nexo de causalidade do agir danoso e a consequência dele resultante.

                        Para que haja reparação, no entanto, incumbe ao consumidor lesado comprovar o dano sofrido, a utilização do produto ou serviço, bem como o nexo de causalidade entre ambos.

2. OVERBOOKING

                        O overbooking é uma prática de sobrerreservas adotada por empresas aéreas, que consiste em ofertar uma quantidade de assentos superior a disponibilidade física das aeronaves, a fim de minimizar perdas geradas pela capacidade ociosa nos voos, decorrente principalmente de cancelamentos tardios, bem como de passageiros no show, que simplesmente não comparecem ao embarque.

                        O overbooking é, portanto, uma estratégia que visa controlar os níveis de ociosidade dos aviões, mas, não raras as vezes, passageiros são impedidos de embarcar pela falta de assentos disponíveis, o que é tecnicamente conhecido como denied boarding.

2.1 COMO ACONTECE O OVERBOOKING

                        O mercado da aviação civil brasileiro não possui regulação de tarifas, o que significa dizer que a precificação das passagens é uma liberalidade das Companhias Aéreas.

                        Dentro desse contexto, as passagens aéreas podem ser divididas basicamente em dois grandes grupos, quais sejam, as full-fare, que são tarifas de maior valor e com uma série de benefícios e vantagens ao passageiro, e, as low-fare, que são tarifas mais econômicas ou promocionais, com pouco ou nenhum benefício extra ao passageiro.

                        Os passageiros que detém bilhetes da classe tarifária full-fare possuem maior flexibilidade, o que significa dizer que os mesmos podem solicitar restituição, geralmente parcial, no caso de desistência, bem como alterar a data da viagem sem perder a validade do bilhete, o que na prática acaba gerando muitas ocorrências de no shows e cancelamentos tardios.

                        Os detentores de bilhetes da classe tarifária full-fare, em muitos casos, possuem um guichê diferenciado para a realização de check-in, o que lhes assegura prioridade na confirmação de embarque e, consequentemente, evita a ocorrência de denied boarding para esses usuários.

                        Por outro lado, os passageiros detentores de passagens com tarifas low-fare correm o risco de terem seu embarque negado, caso a companhia aérea tenha comercializado bilhetes além da capacidade física da aeronave e a estimativa de cancelamentos e de passageiros no shows seja acima da projetada.

                        A prática do overbooking acaba sendo estimulada pelas próprias empresas, pois é o resultado da flexibilidade dos bilhetes de classe tarifária full-fare, que outorgam benefícios extras aos usuários, sendo um deles a própria possibilidade de no show, com o direito de restituição ou substituição da passagem.

3. DANO EXTRAPATRIMONIAL E O DEVER DE INDENIZAR QUALIFICADO

                        O dano extrapatrimonial é aquele caracterizado por lesão a um direito da personalidade, e que necessariamente não atinge o patrimônio da pessoa.

                        A compreensão do direito a personalidade está diretamente ligado ao conceito de dignidade da pessoa humana, que nada mais é do que um conceito filosófico, que, na visão de Kant[4], é um valor íntimo do homem, que “existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.”

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                        Ou seja, se toda pessoa é um fim em si mesma, então caso esta seja tratada como meio, ou como mero instrumento, por terceiro que pretenda dela utilizar-se para a realização de seus propósitos, isto é, toda vez que o sujeito de direitos for tratado como objeto, sua dignidade terá sido maculada.

                        No caso da prática de overbooking, fica clara a opção das empresas em assumir o risco de eventualmente não suprir a demanda de seus clientes como uma estratégia empresarial.

                        No entanto, essa prática relega os consumidores a um status de objeto. Há, portanto, uma “coisificação” do indivíduo, o que por si só faz nascer um direito extrapatrimonial plenamente indenizável.

                        A Constituição Federal autoriza expressamente a “indenização por dano moral” no art. 5º, V[5] e X[6]. O Código Civil, em seus arts. 186[7] e 927[8], por sua vez, considera haver ato ilícito e, consequentemente, dever de reparação de dano, toda vez que alguém, “por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral”.

                        No caso, vale referir que o tema do overbooking é tratado especificamente na Resolução nº 141/2010 da ANAC, que prevê alguns mecanismos de compensação e a reparação tabelada de prejuízos aos passageiros.

                        A Resolução nº 141/2010 teve como inspiração tanto o Oversales Act dos EUA, como a Regulation (EC) 261/2004 da União Europeia, que regulamentam o tema. No entanto, no Brasil, a referida Resolução não tem sido capaz de coibir essa prática por parte das companhias aéreas, o que tem frustrado cada vez mais os passageiros.

                        Pelo observado, por ser o overbooking uma estratégia comercial adotada por companhias aéreas para a maximização de seus resultados operacionais, que leva ao descumprimento de obrigações contraídas com os passageiros, a nosso ver, o dever de reparação nesses casos passa a ser qualificado, o que consequentemente deve refletir-se na majoração dos parâmetros indenizatórios adotados pelo Poder Judiciário.

 

 


[1] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 02.

[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. v. 4. 7.ed. São Paulo: Saraiva,  2012, p

[3] RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil: Lei 10.406, de 10.01.2002. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 28

[4] Kant, I. Fundamentação da metafísica dos cosntumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edição 70, 2001. P. 68.

[5] CF. Art. 5º. (...).V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[6] CF. Art. 5º. (...).X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[7] CC. Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

[8] Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

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Sobre o autor
Jan Felipe Silveira

Advogado formado pela PUCRS, OAB/RS 65.743, Mestre em Direito pela UNISINOS; Técnico Contabilista formado pela UFRGS (CRC/RS 82.443); Pós-Graduado em Direito Tributário pela PUCRS; MBA em Gestão Financeira, Controladoria e Auditoria pela FGV. É membro da Fundação Escola Superior de Direito Tributário (FESDT). www.felipesilveira.adv.br

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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