Ted-2 e o Judiciário dos EUA

29/08/2015 às 18:43
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A propósito de discutir uma questão de alta indagação filosófica, o filme Ted-2 difunde o mito de que o Judiciário dos EUA é justo. Os fatos sugerem o oposto. O filme é engraçadinho, mas embeleza a imagem da Justiça norte-americana justamente no momento em que esta se torna cada vez mais rara naquele país.

O sucesso de bilheteria do filme Ted (2012) levou a produção da sequencia em que, além de fumar muita maconha e fazer piadas grotescas, o ursinho perde seus direitos civis. A “capitis diminutio” obriga o protagonista a entrar com um processo para recuperar sua cidadania. Ted-2 pode, portanto, ser classificado como uma obra heterodoxa com um tema tradicional: o funcionamento do Judiciário dos EUA. O resultado do processo é obvio, a justiça prevalece.

A questão de alta indagação levada a julgamento a pedido do ursinho sacana é a mesma que se está presente no livro “O homem bicentenário” de Isaac Asimov (1976). Esta questão pode ser formulada da seguinte maneira: O que define um ser humano? A solução depende da resposta. Se o que define humanidade é pertencer à raça humana, um robô ou um ursinho encantado não pode ter direitos civis, em razão de serem objetos manufaturados pelo homem. Mas se o que definir humanidade for a autoconsciência e a capacidade de ter e expressar sentimentos, a solução poderia ser outra.

A discussão proposta no filme Ted-2 e no livro “O homem bicentenário” é meramente filosófica. No estágio atual do desenvolvimento do Direito somente os seres humanos adquirem direitos civis. Ser um humano significa pertencer à raça humana. É exatamente isto que se pode deduzir da Declaração Universal dos Direitos do Homem:

“Artigo 2

I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

II) Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.”

A CF/88 é absolutamente clara ao atribuir direitos e garantias individuais apenas aos homens e mulheres:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”

A personalidade civil nasce com o homem, mas no Brasil a Lei também garante os direitos do nascituro. Esta regra estava presente no Código Civil de 1916 e também está presente no novo Código Civil:

“Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”

O Direito considera o feto um ser humano em potencial. Ele não é uma coisa sobre a qual se possa dispor livremente. Vem daí a proibição do aborto, salvo algumas exceções.

As coisas imóveis ou semoventes não podem ter direitos civis, nem são equiparados aos seres humanos pela legislação brasileira (nos EUA não deve ser muito diferente). O que não pertence a raça humana não pode ser considerado humano. Mesmo que estejam sujeitos à algum tipo de proteção jurídica (caso dos animais) ou não possam ser destruídos sem acarretar consequencias jurídicas (caso das coisas), é impossível atribuir a um animal e a uma coisa o mesmo status que a Lei atribui a um ser humano. Mas isto não quer dizer que a discussão proposta pelo filme Ted-2 e por Isaac Asimov não seja importante.

É impossível esquecer que houve um tempo em que seres humanos eram coisas. Até o final do século XIX os negros pertenciam à raça humana mas não tinham direitos civis. Eles eram caçados, reunidos e vendidos na África e depois transportados e comercializados no Brasil e nos EUA como se fossem coisas. A humanização dos negros foi uma conquista histórica, mas ainda hoje produz muita histeria entre os racistas. Prova disto é a resistência ridícula e indecente da elite branca paulista às cotas para negros na USP, na política e no serviço público em geral.

Resistir à desumanização do “outro” deveria ser mas não é um dever do ser humano. A outorga dos direitos civis não depende do homem rejeitar a opressão de outro homem. O ser humano tem direitos porque pertence ao gênero humano e não porque age com compaixão ou sadismo. A compaixão, contudo, dignifica a humanidade do homem que defende o oprimido assim como o sadismo rebaixa a condição do verdugo que instrumentaliza a opressão. Ser humanitário ou não é uma questão de escolha e de consciência.

O regime nazista alemão rebaixou os judeus à condição de coisas que podiam ser reunidas, transportadas e exterminadas. Israel tem feito algo semelhante com os palestinos. A PM paulista exterminou mais de 800 “bandidos” em 2014. A “boa sociedade” (que obviamente inclui os donos das empresas de comunicação e os seus leitores) aceita o banho de sangue como inevitável justamente porque o “bandido” não é considerado um ser humano com direito à vida. A CF/88 proíbe a pena de morte, mas isto se tornou letra morta porque a PM não mata “bandidos do colarinho branco”, nem  comete chacinas nos bairros nobres. Enquanto os soldados, mascarados ou não, continuarem matando pobres nas periferias a Lei da Selva será a única em vigor no Estado de São Paulo.

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As polícias norte-americanas também tem cometido milhares de homicídios por ano. Os policiais que cometem homicídio em serviço raramente são processados e quando o são quase sempre acabam sendo absolvidos. A política de encarceramento em massa é um fato notório nos EUA. A privatização do sistema carcerário criou a demanda e os Juízes daquele país mantém o negócio em funcionamento atribuindo sentenças cada vez mais severas até para crimes com menor potencial ofensivo. Há uma evidente desumanização dos pobres nos EUA.

Mas nada disto é objeto de crítica cinematográfica. Em Ted-2, por exemplo, o ursinho maconheiro conquista o direito de ser tratado como um ser humano. O direito que ele conseguiu, contudo, é algo que está se tornando cada vez mais raro de ser conseguido por seres humanos nos EUA. Os cidadãos de Ferguson tem sido sistematicamente molestados e até por policiais racistas e quando se manifestam são agredidos como se não tivessem quaisquer direitos humanos. A brutal repressão policial ao movimento Occupy Wall Streettambém não foi um dos melhores momentos da democracia norte-americana.

A propósito de discutir uma questão de alta indagação filosófica, o filme Ted-2 difunde o mito de que o Judiciário dos EUA é justo. Os fatos sugerem o oposto. O filme é engraçadinho, mas embeleza a imagem da Justiça norte-americana justamente no momento em que esta se torna cada vez mais rara naquele país. Como sempre, é mais fácil produzir e vender ideologia do que reformar um sistema apodrecido.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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