Sabe-se tramitar no Congresso Nacional, neste momento, Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que pretende reduzir a maioridade penal em nosso país.
Trata-se referida PEC, da de nº. 171 de 1993, de autoria do deputado federal Benedito Domingos PP - DF, que pretende reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos.
Por meio destas breves linhas, pretendemos fomentar não haver dúvidas de que a criminalidade cada vez mais crescente tem atingido crianças e adolescente e se tornado, especialmente, por essa razão, algo extremamente alarmante, mas que não vemos com bons olhos a diminuição, no Brasil, atualmente, da maioridade penal.
Para corroborar nosso ponto de vista, poderíamos arguir limitações explícitas e implícitas ao poder de reforma da Constituição, mas o foco é outro.
Conforme trabalhamos, junto ao estimado Professor Mestre Alessandro da Silva Leite, no texto Ethos capitalista e criminalidade: sujeito desviante ou (in) efetividade dos direitos humanos?, publicado na Revista Jurídica Direito & Paz, do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL, defende-se, na literatura pátria, invariavelmente, que este aumento da criminalidade, e, pode-se dizer, correlatamente, o atingimento de crianças e adolescentes, deve-se a pobreza, a miséria, a descrença na seriedade da polícia e do judiciário, ao enfraquecimento dos laços familiares, da força da igreja, da imensa desigualdade social aqui instalada e, até mesmo, que o Brasil é um país de “malandros” e de bandidos.
Entretanto, continuamos pensando que essa realidade seja um resultado da inefetividade da Constituição, principalmente, no que toca à consecução dos direitos humanos fundamentais, bem como ao momentâneo estágio do capitalismo, em que há uma intensificação no sentido de reduzir a vida (Misse, 2011) à economia, à competição, ao individualismo e ao materialismo, traduzindo a lógica das elites na subordinação, na massificação e na alienação, em detrimento de valores como honestidade, generosidade, solidariedade, respeito e tolerância.
Como cediço, a Constituição Federal de 1988 foi denominada de “Constituição cidadã” por resultar de uma ampla participação popular, clamorosa pela consecução de direitos, tendo revelado aquele movimento, conforme Daniel Sarmento (2010), um profundo compromisso com os direitos humanos fundamentais, resultando o nosso documento normativo máximo, em virtude disso, no que talvez seja o mais amplo elenco de direitos desta natureza do constitucionalismo mundano.
Simultaneamente, porém, as análises da realidade socioeconômica têm constatado que nem todos os grupos sociais gozam efetivamente deste generoso rol de direitos constitucionalmente consagrados, vivenciando o Brasil uma das maiores, senão a maior proporcionalmente falando, desigualdades sociais de todo o mundo, em que inúmeras pessoas são reduzidas a uma condição subcidadã.
Isso porque grande parte dos brasileiros conhece esses direitos (e olhe lá) em âmbito estritamente formal, sendo a evidência, ao que tudo indica, correlata aos interesses dos “senhores do capital”. Noutros termos, os “donos do capital” transformaram o ethos consumerista numa verdadeira “religião”, como enfatiza Giorgio Agamben:
O capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas - assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gera a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo (AGAMBEN, 2012, p. [S.N.]).
O mundo dos fatos demonstra, realmente, que o capitalismo prega a busca pela mansão, pelo carrão caro e potente, pelo telefone celular que faz de tudo, pela maior e mais fina televisão na versão 3D, pelos melhores ultrabooks, notebooks, ipod’s, iphone’s, iped’s, tablet’s, pelas roupas de grife com preços astronômicos e inacreditáveis etc.
Por outro lado, a comuna do consumo em sua dimensão de culto ao corpo e busca pela aparência “perfeita” apregoa que o homem ideal deve ser alto, forte e bem vestido. O estereótipo feminino reivindica que a mulher tenha cabelos lisos, seja bem vestida, magérrima ou “sarada” e cheia de curvas voluptuosas, na melhor versão panicat. Dessa forma, “o discurso “narcísico-consumista” da sociedade atual produz “ídolos fortemente sexualizados em imagens do dever ser homem e dever ser mulher”” (VAZ, 2004, p. 127).
O ideal atribui, sobretudo, ao perfil e à posse dos bens acima delineados, o caminho para reconhecimento e sucesso; o pré-requisito por melhores empregos, muito dinheiro, glamour, grandes amigos, tratamento cordial e convites para os mais importantes, famosos e badalados eventos; a conquista de viagens inacreditáveis e momentos inesquecíveis, além de uma vida amorosa e sexual digna dos filmes de Hollywood. Enfim, que com esses atributos tudo se torna mais fácil, alcançando-se a felicidade plena por meio do possuir, o qual proporcionará tudo o que há de melhor.
Sem hipocrisia, a propaganda pode seduzir a qualquer um. Vale salientar, todavia, como trabalha Dalmo de Abreu Dallari (2011), na obra Direitos humanos e cidadania, a sociedade humana se perfaz por um conjunto de pessoas ligadas pela necessidade de se ajudarem umas às outras no plano material, bem como pela necessidade de comunicação intelectual, afetiva e espiritual, a fim de satisfazer seus interesses e desejos. Logo, é preciso considerar as necessidades de todos os membros de uma sociedade, não bastando que a vida social ofereça a satisfação das necessidades de algumas pessoas em detrimento das demais.
Mas no mundo dos fatos isso não tem ocorrido. O culto à forma “perfeita” e aos bens do consumo não visa à consecução da pessoa cidadã. Ao contrário, deixando de promover a realização dos direitos de cidadania de todos os grupos, privilegia as elites e macula o que se espera de um regime coletivo e solidário de convivência, pois poucos efetivam este ideal, enquanto a maioria luta dia a dia pela sobrevivência e para adequar-se ao “tipo ideal” propagado pela sociedade narcísica-consumista.
Sendo assim, acreditamos que o aumento da violência e da criminalidade, principalmente entre os jovens, tenha íntima relação com o ethos consumerista e com a inefetividade dos direitos humanos fundamentais. Com efeito, a divulgação dos bens de consumo e da promessa de gozo que oferecem, bem como a divulgação de um “corpo ideal”, poderão criar nos indivíduos uma falta, um desejo que deverá ser, a qualquer custo, satisfeito.
Nesse horizonte, a ausência dos direitos inerentes à cidadania a uma maioria esmagadora pode revelar muita coisa envolvendo as relações entre a “religião capital" e os discursos jurídicos, políticos e econômicos, nos quadros dos conceitos de cidadania ideal (aquela formalizada) e de cidadania de fato (substancial).
José Luiz Quadros de Magalhães (2010) já havia lembrado que a representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais e que representar é significar. Nessa perspectiva, quem tem poder domina os processos de construção dos significados dos significantes, possuindo a capacidade de construir o senso comum.
Assim, é preciso interrogar-nos se estariam os idealistas dos significantes do consumo construindo significados aptos a, adotando os dizeres de Bourdieu (2010), alocar na consciência coletiva símbolos a serviço da dominação, contribuindo para a integração real da classe dominante e uma integração fictícia da sociedade em seu conjunto, desmobilizando as classes dominadas.
Tome-se para exemplo da condição supracitada os “clientes” do sistema penal. Segundo Alessandro Nepomuceno (2004), dados do Censo Penitenciário brasileiro de 1994 revelam que 95% dos presos são pobres; 87% não concluíram o primeiro grau; 85% não possuem condições de contratar um advogado; e 96,31% são homens, tendo cometido crimes como roubo (33%), furto (18%), homicídio (17%), tráfico de drogas (10%), lesão corporal (3%), estupro (3%), estelionato (2%) e extorsão (1%).
Parece ser possível afirmar que, quatorze anos depois, a realidade praticamente não se alterou, pois os registros do Censo de 2008, oferecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão ligado ao Ministério da Justiça, apresentam, conforme Tamara Melo (2010), que os detentos são em sua grande maioria jovens, negros ou pardos e muito pobres; 8,15% dos presos são analfabetos; 14,35% são alfabetizados; 44,76% possuem o ensino fundamental incompleto; 12,02 % possuem o ensino fundamental completo; 9,36% o ensino médio incompleto; 6,81% o ensino médio completo; 0,9% o ensino superior incompleto; 0,43% o ensino superior completo; menos de 0,1% nível acima do superior completo; 31,87% dos presos têm entre 18 e 24 anos; 26,10% entre 25 e 29 anos; 17,50% entre 30 e 34 anos; 15,45% entre 35 e 45 anos; 6,16% entre 46 e 60 anos; 0,96% mais de 60 anos.
Sendo o crime (Nepomuceno, 2004) uma construção sociocultural, visando à regulação daquelas condutas encaradas como criminosas, as informações ora anunciadas demonstram uma seletividade do sistema penal recaindo sobre setores vulneráveis da sociedade, geralmente, aqueles que se encontram alijados do acesso aos direitos sociais mais elementares à dignidade humana. Esse quadro pode levar-nos a interpretar, por vezes e erroneamente, que as classes mais abastadas não cometem delitos, enquanto o pobre, o miserável e aqueles desprovidos de educação e cultura estariam mais propensos ao comportamento social desviante. Trata-se, portanto, da criminalização da pobreza.
Apoiamos Alessandro Nepomuceno (2004) para quem a grande diferença para o fato reside também na natureza, bem como no tratamento dedicado às infrações e aos seus praticantes. Os crimes geralmente denunciados, processados e apenados são aqueles provenientes das classes mais vulneráveis da sociedade, enquanto os grandes delitos econômicos, políticos e ecológicos, com danos incomensuráveis à coletividade, não sofrem os mesmos rigores por parte do poder público.
Assim, conforme Alessandro Baratta (1997) pode-se afirmar que o cárcere tem representado a ponta do iceberg da ideologia dos grupos hegemônicos, ou seja, do sistema penal burguês, marcando o momento culminante de um processo de seleção que começa bem antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar.
Postas essas premissas, uma questão ganha relevo. O sistema penal é visto tradicionalmente como um controle formal das condutas encaradas como negativas à sociedade, as quais ofendem os bens jurídicos mais relevantes das pessoas de bem, enquanto o desvio é considerado um dano pela maioria dos juristas, sendo os desviantes, nesse episódio, vistos como um elemento negativo, um mal que lesa a ordem, a tranquilidade e a justiça social.
No entanto, os dados estatísticos do sistema penal aqui apresentados como signos da representação social da criminalidade e do sujeito do crime, parecem sugerir que muitos desses “desviantes” tenham o condão de evidenciar a alegação de Alessandro Baratta acima descrita e/ou a antecipação ou a necessidade de mudanças estruturais na sociedade, economia e sistema penal brasileiros, pois como sustenta Ana Lúcia Sabadell (2005), o crime tem um papel útil para a sociedade, seja quando contribui para o progresso social, criando impulsos para a mudança de algumas regras sociais, seja quando a sua ocorrência oferece a ocasião de afirmar (ou debater) a validade das regras a serem seguidas, mobilizando a sociedade em torno de valores coletivos.
A ponderação é das mais interessantes no sentido de ressignificar certos tipos de crimes cometidos demonstrando que nem sempre, os mesmos resultam de um ato do indivíduo mal, visando abalar a paz social e, logo, acabar com a tranquilidade e os ideais das pessoas de “bem”, mas que a sua causa pode estar associada a uma grande fraqueza do Estado, no que diz respeito o seu dever de cuidado da vida em coletividade, especialmente, na garantia da efetivação do mínimo existencial da pessoa humana.
Em tempos de escândalos relativos à corrupção, em que milhões e milhões de reais são usurpados dos cofres públicos; de carga tributária elevadíssima; de elevação abusiva do preço de bens e serviços essenciais como água, energia elétrica, alimentos em geral, e, pode-se aduzir, petróleo, já que o Brasil é desprovido de infraestrutura ferroviária; de políticas assistencialistas ao invés do fomento do trabalho; de vedação à reprovação em colégios públicos, não consigo pensar que discutir redução da maioridade seja uma infelicidade. Se não estiver errado, salta aos olhos, infelizmente, trata-se de um desvio de foco.
Enfim, é preciso ressignificar o esthos do conviver social, política, jurídica e economicamente falando, de modo que cuidemos melhor dos nossos idosos, adultos, adolescentes e crianças. É necessário, acima de tudo, que cumpramos a Constituição, principalmente, no que toca a plena efetividade dos direitos humanos fundamentais.
Referências
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