Lei orgânica do Município, competências municipais e os efeitos práticos e econômicos

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08/09/2015 às 10:13
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Estudo sobre os efeitos econômicos das competências municipais

RESUMO: Desde a criação da hodierna divisão constitucional de competências em 1988, é visível uma significativa modificação no rol de competências elencado aos municípios da federação, assim como em outros países analisados no presente artigo, que foi enormemente ampliada, gerando vantagens e problemas. O presente estudo foca bastante na lei orgânica do município e em seu processo de elaboração, demonstrando alguns problemas do atual modelo. Posteriormente, uma análise econômica breve é efetuada sobre os efeitos de tal distribuição de competências, com comparações históricas e hodiernas. A pesquisa objetiva compor o panorama geral das municipalidades, que seguem parâmetros de eficácia e eficiência das administrações dos mais diversos, buscando determinar, especialmente, se é as distribuições de competências e a distribuição correta de recursos necessários os fatores preponderantes a determinar o resultado final da qualidade governamental municipal como um todo. A metodologia utilizada foi a ampla pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, com enfoque na literatura estrangeira e no direito comparado. A conclusão foi que ainda existem inúmeras falhas e dificuldades no processo legislativo municipal, em especial pela incapacidade material e técnica da maioria das municipalidades.

PALAVRAS-CHAVE: LEI. ORGÂNICA. ELABORAÇÃO. COMPETÊNCIAS. MUNICIPAL. EFEITOS.

ABSTRACT: Since the creation of the modern constitutional division of competencies in 1988, it’s visible a significative modification in the list of competencies given to cities of the federation, as in other countries analyzed in this article , which was amplified enormously, resulting in advantages and problems. The present study focus a lot on the organic law of the city and its process of elaboration, demonstrating some of the issues of the current model. Posteriously, a brief economic analysis on the effects of the division of competencies cited above, with historic and modern competencies related analysis. The research searches to compose the general panorama of municipalities, which happen to follow parameters of efficacies and efficiencies of administration as diverse as possible, aiming to determine, especially, if the distribution of competencies and the proper distribution of necessary assets are the most preponderant facts to determine the end result of municipal governmental quality as a whole. The method utilized was a broad bibliographic and sentences research, focusing on the foreign  literature and compared law. The conclusion achieved was that exist still countless flaws and difficulties at the municipal legislative process, specially due to the technical and material incapacity of most municipalities.

KEYWORDS: LAW. ORGANIC. ELABORATION. COMPETENCIES. MUNICIPAL. EFFECTS.

INTRODUÇÃO

                        O presente estudo busca determinar como que são elaboradas as peças legislativas dentro do ordenamento jurídico criado pela nova Constituição Federal e seus efeitos no caso concreto. Um problema já visualizado antes do início do mesmo são as frequentes e inúmeras falhas tanto nas peças legislativas quanto na execução das mesmas, levando a crer que o sistema hodierno de repartição de competência talvez seja menos do que ideal. É visível a diferença na prática entre o executivo das distintas esferas governamentais, tendendo a ser pior quanto menos for o aporte de recursos, sendo, destarte, o primeiro dos diversos contratempos encontrados pela administração municipal.

                        Diversos problemas são encontrados no processo de elaboração das leis orgânicas dos municípios brasileiros, sendo notória a vacância legislativa na Constituição Federa sobre tal procedimento. Diversas lacunas se mostram presentes para serem exploradas por aqueles que pretendem violar a simetria constitucional do pacto federativo, conforme será exposto adiante.

                        Fora o exposto acima, é também notável a problemática da proximidade da administração com seus administrados. Tal aproximação é benéfica em diversas matérias, entretanto, pode ser extremamente prejudicial, em especial quando as medidas necessárias são impopulares por serem aparentemente incorretas, sendo notáveis aquelas cuja decisão correta requer conhecimentos técnicos avançados que não são detidos pela maioria da população. O resultado é que os políticos tendem a seguir a vontade da população, mesmo sabendo que seja incorreta, pois a alternativa seria cometer suicídio político ao ver a população revoltada contra a decisão. A política em conjunto com as regras inexoráveis da economia, se movida pelos anseios daqueles que não conseguem compreender apropriadamente os efeitos das decisões, pode ter resultados extremamente desastrosos.

                        Por fim, temos que o presente estudo busca dar pinceladas em diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros, com o intuito de verificar se existem soluções inteligentes e evitar reiterar os mesmos erros cometidos anteriormente. É visível a insatisfação generalizada com os serviços das municipalidades, sendo as reclamações de longa data bastante modernas ainda. Por fim, temos uma breve análise histórica dos efeitos práticos em alguns casos históricos do excesso de competências municipais e um resultado teórico sobre quais seriam as competências ideais pertinentes aos municípios.

            A metodologia utilizada foi a ampla pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, com enfoque na literatura estrangeira e no direito comparado.

  1. O processo atual de elaboração da lei orgânica

                        O processo de elaboração de toda Lei Orgânica de todo e qualquer município brasileiro deve seguir o padrão de elaboração formal determinado pela Constituição Federal de 1988, no seu artigo 29, caput, in verbis:

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

         

                        Interessante notar que quem promulga é a própria Câmara em um processo independente do Poder Executivo. Apesar de ausente previsão legal contrária Hely Lopes Meirelles[1] determina ser impossível se valer de tal falha legal para contornar a competência do chefe do Poder Executivo Municipal, sob pena de ser violado o sistema dos freios e contrapesos e da separação dos poderes, conforme discorre o saudoso mestre em sua obra:

Anote-se, finalmente, que o Poder Legislativo Municipal não pode, a pretexto de elaborar a lei orgânica – processo legislativo excepcional destinado a dar estrutura e organização ao Município -, dispor sobre matéria de lei ordinária, com o intuito de arredar a participação do Executivo, subtraindo-lhe o direito de vetar, sancionar e promulgar atos normativos dessa natureza.

                       

                        As emendas também devem seguir a mesma regra do processo de elaboração, mesmo na vacância de disposição expressa na Constituição, pois deve ser seguido o princípio da simetria. Nesse sentido, temos Nelso Nery Costa[2]:

A principal competência do Plenário é deliberar sobre as matérias de interesse local, através dos diferentes instrumentos legais, postos à disposição dos agentes políticos locais. A disposição mais importante trata-se, sem sombras de dúvidas, da Lei Orgânica do Município, que a partir da Constituição de 1988, passou a ser votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos vereadores. Por conseguinte, as emendas às Leis Orgânicas também necessitam do processo acima descrito, para serem promulgadas pelo Presidente da Câmara e, depois, publicadas. (grifos nossos)

                       

                        Apesar de ser obrigatório o procedimento constitucional de votação, a iniciativa pode sim ser de forma diversa. A Lei Orgânica de Fortaleza, prevê em seu artigo 56, inciso III, a possibilidade de iniciativa popular de emenda a Lei Orgânica mediante subscrição de 5% do eleitorado, o que não é possível de ser feito para a Constituição Federal. Interessante também notar que foi seguida a simetria na iniciativa aqui que pode ser feita por 1/3 dos membros do Legislativo ou o chefe do Executivo, no mesmo molde das Emendas Constitucionais Federais.                   

                        Notemos também que apesar de ausente do texto constitucional, também pelo princípio da simetria deve ser o Presidente da Câmara que promulga o texto aprovado. Nesse sentido, temos Hely Lopes Meirelles:

A promulgação de leis, decretos legislativos e resoluções constitui, igualmente, atribuição do presidente. Quanto às leis, cabe originariamente ao prefeito sancioná-las, promulgá-las e publicá-las, mas as que não o forem pelo chefe do Executivo,(...) deverão ser promulgadas e enviadas para a publicação pelo Presidente...

Nem sempre, todavia tiveram todos os Municípios a competência constitucional de criar sua Lei Orgânica, sendo, na verdade, recente inovação trazida pela hodierna Constituição. É o que veremos a seguir.

  1. O processo antigamente

                        O processo atual é inédito assim como sua presença na Constituição. Analisando as Constituições passadas recentes, não vemos na de 1967 nem na sua emenda de 1969 (que muitos consideram ser uma nova Constituição) sequer menção à Lei Orgânica. Já a de 1946 cita a Lei Orgânica, apenas para determinar que enquanto estas não forem promulgadas continua a administração da forma anterior.  A de 1937 apenas cita a existência da Lei Orgânica para o Distrito Federal, e a de 34 apenas faz menção a do DF e na parte das Disposições Transitórias. A de 1891 apenas tem um artigo dizendo que o estados devem se organizar de forma a garantir a autonomia dos municípios em tudo que seja de seu peculiar interesse. A de 1824 sequer usa o termo município.

                        Na égide da Constituição de 1967, o Estado podia editar a Lei Orgânica dos municípios. Vejamos o que diz Crittela[3]:

No Brasil, os Estados-membros da Federação podem editar leis institucionais, que traçam os princípios genéricos e básicos da organização, da estruturação e do funcionamento dos órgãos municipais. São as denominadas leis orgânicas dos Municípios, porque disciplinam os diversos órgãos da administração municipal.

                                Mas nem sempre o Estado optava por editar as Leis Orgânicas. Anteriormente, era possível um sistema duplo. Além do anterior podia ser utilizado o sistema das Cartas Próprias, similar ao Home Rule Charter dos Estados Unidos, em que o Estado delegava a competência para editar a Lei Orgânica. Nesse sentido, temos Hely Lopes Meirelles[4]:

Outro sistema, igualmente admitido entre nós, é o das chamadas Cartas Próprias, tirado do Home Rule Charter norte-americano, segundo o qual cabe ao Município o direito de promulgar a lei básica de sua organização. Mas, em qualquer dos sistemas, é sempre o Estado-membro que dita, em primeiro lugar, os princípios gerais da organização municipal, com só a diferença de que, no regime das Leis Orgânicas, ele desce a minúcias, numa consolidação de todos os preceitos que deseja seguidos no seu território; e, no das Cartas Próprias, defere essa tarefa a cada Município.

                       

                        Na égide da Constituição antiga, a maioria dos Estados adotava o sistema que lhes concedia mais poder, com a exceção notória do Rio Grande do Sul que adotava o sistema da Carta Própria desde sua primeira Constituição, assim como o Estado de Goiás. Outros, como a Bahia e o Paraná concediam tal prerrogativa apenas para suas capitais.

                        É evidente, portanto, o avanço da organização do município e o aumento de sua importância na hodierna Constituição, que sofreu profunda grande transformação, garantindo o status de integrante da federação brasileira, podendo compor sua própria lei maior.

3 .As críticas doutrinárias

                         Fortes são as críticas ao sistema atual, existindo os argumentos dos que são contra e dos que são a favor. Um dos mais forte opositores é Hely Lopes Meirelles[5]:

Entre os dois sistemas – lei orgânica estadual e lei orgânica municipal -, continuamos a entender mais vantajoso aquele sobre este, porque o das Cartas Próprias Municipais confere um exagerado poder de auto-organização, para o exercício da qual a maioria dos Municípios Brasileiros não está preparada. E, além disso, a multifária legislação municipal que se estabelece com o regime com o regime fracionário das Cartas Próprias se nos afigura inútil, e até mesmo prejudicial, pois a diversidade de legislação municipal dificulta o conhecimento da lei local – e o fato é tão freqüente entre nós que o próprio legislador federal já o sentia, a ponto de dispensar os juízes do conhecimento obrigatório da legislação local, autorizando-os a exigir, da parte que os invoca, a prova de seu teor e vigência (CPC, art. 337). No mesmo sentido, v. Georges Ripert, ao comentar a multiplicidade de leis das mais de 30 mil Comunas Francesas, com legislação própria...

                        Uma crítica também comum é relativa a capacidade que os vereadores possuem de construir uma peça legislativa da complexidade que é uma Lei Orgânica. Nesse sentido, temos Wolgran Junqueira Ferreira[6]:

Por exemplo, no Estado de São Paulo, quase todos os municípios seguiram a Minuta de Anteprojeto da Lei Orgânica, contido no excelente trabalho do jurista José Afonso da Silva. Entretanto, na realidade, tais leis orgânicas não foram elaboradas pelos vereadores, e sim, por um grande jurista. Ainda bem. Mas, e nos outros Estados-federados.

E foi exatamente por esta razão que fomos contra a elaboração pelos próprios municípios de suas leis orgânicas. À simplicidade de nossos vereadores não se pode cometer tal função.

                        Mas existem também vozes que são a favor da possibilidade do município compor sua própria lei orgânica. Um deste é Pinto Ferreira[7], que base da premissa da diferença entre os municípios:

Contudo, nem sempre uma lei orgânica única pode atender às necessidades locais dos Estados com muitos municípios, oferecendo padrões para quinhentos e setenta e um municípios, como é o caso de São Paulo, ou cento e sessenta e sete, no caso de Pernambuco, neste último com as suas peculiaridades locais da zona da mata, canaviais, agreste e sertão.

Notemos, portanto, que as vozes a favor se baseiam na diferença entre os municípios para justificar a necessidade de que cada município determine sua própria Lei Orgânica. Ocorre que, a Lei Orgânica, apesar de não ser uma Constituição strictu sensu possui conteúdo de natureza constitucional, cuja base originária é a distribuição de competências dos poderes e determinação das garantias contra os poderes. Difícil é determinar quanto que influi a estrutura única de cada município no resultado prático, e as complicações práticas oriundas da divergência enorme de ordenamento apenas amplia a insegurança jurídica sem trazer grandes benefícios, pois dificilmente terão os vereadores, exceto nas cidades grandes, capacidade de analisar e determinar qual o melhor sistema para a conjuntura social, econômica e política da região. O resultado é um grande número de Leis Orgânicas similares copiadas quase que integralmente de alguma cidade, o exemplo notório é a minuta feita pelo José Afonso da Silva, bastante copiada pelos municípios paulistas. Um sistema melhor seria aquele em que o Estado estabelecia regras gerais forte, e apenas naqueles municípios que existisse a comprovada necessidade de um sistema especial fosse o sistema modificado apenas naquilo que fosse estritamente necessário, devendo ser feita uma compilação para facilitar o conhecimento à legislação. Indo ainda mais longe, tal competência poderia ser da União, ficando os municípios uniformizados naqueles que fossem comuns, e diferentes apenas aqueles que necessitassem bastante. Tal seria, claro apenas para os quesito que são basilarmente constitucionais, sendo a divisão dos fatores eminentemente locais do município, mas de forma a minimizar as enormes disparidades entre os diversos sistemas existentes em nosso ordenamento jurídico que causam graves dificuldades. Um país que se vale de um regime similar é a Espanha, em que existe a Ley de Bases de Régimen Local, criada pelo Estado para regular os municípios, conforme a explicação de José  Luis Rivero Ysern[8]:

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La Ley de Bases de Régimen Local se incorpora al ordenamiento jurídico afirmando, em su proprio Preámbulo, uns especial posición que le otorga una vis específica, no obstante su condición formal de ley ordinaria. La Ley de Bases de Régimen Local surge como la norma institucional de los Entes locales y, como su propio  Preámbulo  nos explica, ello implica dos consecuencias de primeira importancia.

Tradução livre: A lei de bases do regime local se incorpora ao ordenamento jurídico afirmando, em seu próprio Preâmbulo, uma posição especial lhe dando um fim específico, não obstante sua condição formal de lei ordinária. A lei de bases do regime local surge como a norma institucional dos entes locais e, como seu próprio Preâmbulo nos explica, isso resulta em duas consequências de primeira importância.

                                Temos como consequências de tal lei a uniformização dos procedimentos em âmbito nacional um artigo notório é o treze, que determina o procedimento de criação dos municípios uniformizado com os requisitos mínimos para todos o país. Comentando nesse sentido, temos Francisco Sosa Wagner[9]:     

Este precepto incorpora a la legislación de desarrollo de la Constituición la trascendente innovación que supone la atribución a la legislación autonómica de la competencia para regular la supresión y creación de nuevos municipues, de la plena disponibilidad para el legislador autonómico, que sólo se encuentra vinculado por los criterios materiales, mínimos como veremos, contenidos en el artículo 13, y por los trámites procedimentales consignados igualmente em dicho precepto.

Tradução livre: Este preceito incorpora à legislação de desenvolvimento da Constituição a transcendente inovação que supõe a atribuição à legislação autonômica a competência para regular a supressão e criação de novos municípios de pela disponibilidade do legislador autonômico, que somente se encontra vinculado pelos critérios materiais mínimos como veremos, contidos no artigo 13, e pelos trâmites procedimentais consignados igualmente no supracitado preceito.

  1. Comparação com outros países

                        O sistema municipal brasileiro é bastante assemelhado com o americano. Nos Estados Unidos da América, os municípios se formam pelo reconhecimento do Estado-Membro do cumprimento de certos requisitos que devem ser obrigatoriamente preenchidos pelo núcleo urbano, especialmente um mínimo de população. A autonomia se manifesta através da Carta Própria, denominada de Charter em inglês. O processo é completamente infraconstitucional, já que a Constituição Norte-Americana seque menciona os Municípios, que lá são denominados usualmente de County, mas também existe o conceito de City, que é uma área urbana inferior em extensão ao County, e Township, cujo conceito varia bastante, mas é bastante aproximado com o de County. Varia, portanto, de Estado para Estado.

                        Interessante notar que as mesmas críticas feitas aqui em nosso país, também são efetuadas nos Estados Unidos, pela incapacidade do município de gerir sua administração, seja pela falta de recursos, incompetência ou corrupção. Nesse sentido, temos Beaton[10]:

No department of government in the United States is so inadequate, none has been the subject of so much dissatisfaction and solicitude on the part of their people, and none has been so severely criticised (sic) by candid writers from abroad, as that which relates to municipalities. The larger the city or village, the more unsatisfactory, as a rule, has been its government, and the greater its administrative abuses; so that, from the smallest, each can see in those of a larger population the greater evils it may soon have to encounter.

Tradução livre: Nenhum departamento do governo nos Estados Unidos é tão inadequado, nem é sujeito de tamanha insatisfação e preocupação pelas pessoas, nem é tão severamente criticado pelos escritores estrangeiros como aqueles relativos as municipalidades. Quanto maior a cidade ou vila, mais insatisfatório, como regra geral, é o governo, e maiores são os abusos administrativos, de tal forma que, desde o mais pequenos, todos da população possam ver o grande mal que logo irão encontrar.

                        Na Inglaterra temos os Burgos, cuja autonomia também é concedida pela Coroa, denominada lá de self-government. O conjunto de Burgos forma o Condado. Nesse país, o Parlamento que delimita a extensão das franquias de cada Burgo, ao lhe conceder a emancipação e a prerrogativa do self-government. Entretanto, regem-se os Burgos também por Carta Própria e possuem ampla liberdade política, administrativa e financeira, sujeitos apenas ao controle do Local Government Board em alguns determinados atos. Da mesma forma que o americano, varia o equivalente à Lei Orgânica a depender do grau de autonomia concedido pelo Parlamento.

                        O sistema da Alemanha, no que é pertinente a autonomia para se auto-compor é idêntico ao americano, sendo que é competência dos Estados determinar a autonomia de seus municípios. 

                        No sistema Francês, a autonomia municipal para compor sua própria Lei Orgânica é extremamente limitada, de tal forma que o Presidente Francês pode por simples decreto motivado dissolver o Conselho, a quem compete a administração da Comuna. Se trata muito mais de uma repartição do governo central do que efetivamente um ente autônomo.

  1. Conteúdo das nacionais

                        Existe um rol de preceitos que é obrigatório de estar contido em todas as Leis Orgânicas, presente nos incisos do artigo 29 da Constituição Federal de 1988. A autonomia do município é, portanto, limitada à obediência àqueles preceitos. Todavia, apesar de não pode contrariá-los poderá ter ampla liberdade naquilo que não for contrário. O rol não é taxativo podendo ser aposto outros direitos aos poderes do município. A Lei Orgânica do Município de Fortaleza, por exemplo, em seu artigo 76, inciso VI, confere ao Prefeito a faculdade de expedir decretos. Tal faculdade foi confirmada pelo TJ-CE[11]:

A Constituição vigente alude aos decretos no artigo 84, IV, como forma pela qual o Presidente da República dá curso à fiel execução das leis. A Constituição Estadual no seu artigo 88, IV, confere ao Governador expedir decretos para a fiel execução da lei, o mesmo ocorrendo com relação ao Prefeito por força da Lei Orgânica do Município.

                        Não existe vedação que a lei orgânica determine competências legislativas ao Prefeito, sendo até ideal em obediência à simetria constitucional. Nesse sentido temos Nelso Nery Costa[12]:

 A Constituição Federal, no seu art. 59, prevê duas modalidades de legislação, leis delegadas e medidas provisórias que, em geral, não se aplicam ao Município, ainda que não haja vedação para tanto. Não existe uniformidade nas Leis Orgânicas Municipais, tanto que estão previstas a lei delegada e a medida provisória, nas de Campo Grande (MS), art. 35, IV e V, de Rio Branco (AC), art. 33, III e IV, enquanto está prevista apenas a medida provisória na de Campinas (SP), art. 38, V, ou a lei delegada, na do Rio de Janeiro (RJ), art. 67, IV. Por outro lado, estes dois instrumentos legais não foram previstos nas Leis Orgânicas de Teresina (PI), art. 50, de Florianópolis (SC), art. 53, e de Vitória (ES), art. 78.

                        A Lei Orgânica de Fortaleza não concede ao Prefeito a competência para editar medidas provisórias, mas concede o poder de editar leis delegadas, conforme no art. 54:

Art. 54 - As leis delegadas serão elaboradas pelo Prefeito, que deverá solicitar a delegação à Câmara Municipal.

                       

                        Muito importante também é a consideração de que o conteúdo da Lei Orgânica é hierarquicamente superior as leis ordinárias, apesar de não existir disposição na Constituição de 1988 nesse sentido e não ser uma Constituição strictu sensu, comprovada pela ausência de uma corte constitucional. Confirmando, temos a seguinte jurisprudência do TJ-PR[13] que analisa o conflito entre a Lei Orgânica e uma Lei Ordinária do Município de Bandeirantes:

Do cotejo dessas duas normas, com conteúdo diverso e conflitante, impõe que prevaleça aquela prevista na Lei Orgânica do Município, que traduz a forma de auto-organização do Município, aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal e com status constitucional. 

A realização de eventual redução só poderia ocorrer mediante a alteração da lei Orgânica Municipal, o que não ocorreu no caso em análise. 

                        Igualmente, temos também jurisprudência do STF na ADI 980[14], que determina o caráter constitucional e hierarquicamente superior da Lei Orgânica dos municípios:

4. A Lei Orgânica tem força e autoridade equivalentes a um verdadeiro estatuto constitucional, podendo ser equiparada às Constituições promulgadas pelos Estados-Membros, como assentado no julgamento que deferiu a medida cautelar nesta ação direta.

  1. Natureza jurídica e comparação com outros ordenamentos

                         A natureza jurídica da norma na Lei Orgânica no Brasil é sui generis. Em outros países o valor é similar, como, por exemplo, na Espanha, onde a doutrina também diverge fortemente no caráter que possui tal norma. Nesse sentido temos Alfredo Gálan[15]:

Resulta innegable que estamos en presencia de una disposición de carácter general: tiene naturaleza normativa, o sea, es una verdadera norma jurídica. En concreto, estamos en presencia de una norma reglamentaria, aunque, como ya veremos, una de las cuestiones más debatidas es, precisamente, la determinación del tipo normativo en el que deba subsumirse y de la posición que ocupa en el sistema de fuentes del Derecho.

Tradução livre: É inegável que estamos na presença de uma disposição de caráter geral: tem natureza normativa, ou seja, é uma verdadeira norma jurídica. Em contrato, estamos na presença de uma norma regulamentadora, embora, como veremos, uma das questões mais debatidas é, precisamente, a determinação do tipo normativo em que deve ser subsumido e a posição que ocupa no sistema de fontes do Direito.

                                Essa natureza estranha do conteúdo da Lei Orgânica não é, portanto, exclusiva do Brasil e sim bastante usual em outros países, provavelmente devido à justificada relutância de conceder excessivos poderes aos Municípios, em especial os de pequeno porte, pois a complexidade de manter o sistema governamental inteiro funcionando em pequena escala dentro de um município, além dos custos faria tais poderes se tornarem inúteis se não exercidos e potencialmente danosos se exercidos. Tal sistema fragmentário que permite o conteúdo da Lei Orgânica ser amplo só ocorre em países que sejam extremamente fragmentados. Um exemplo desse país é a Bolívia, em que os Municípios possuem amplos poderes, podendo juntos conseguir autonomia determinando suas próprias competências, conforme visível no artículo 280,III:

La región podrá constituirse en autonomía regional, a iniciativa de los municipios que la integran, vía referendo en sus jurisdicciones. Sus competencias deben ser conferidas por dos tercios de votos del total de los miembros del órgano deliberativo departamental.

Tradução livre: A região pode constituir-se em autonomia regional, através da iniciativa dos municípios que a integram, através de referendos em suas jurisdições. Suas competências devem ser concedidas por 2/ dos votos de todos os membros do órgão deliberativo departamental.

                        Além disso, pode o Município exclusivamente criar novos impostos e taxas (art. 302, 19 e 20 da constitución boliviana de 2009), podem se associar com outros municípios à vontade mediante convênio (art. 302, 34), criar suas próprias políticas de defesa do consumidor (art. 302, 37). Nas competências comuns, pode ainda muito mais, como regulamentar seu regime eleitoral (art. 299, I, 1). É visível, portanto que a repartição de competências forneceu muitos poderes aos Municípios, ficando restada a questão pendente de visualização prática ainda, devido à recente transição constitucional, dos efeitos de tal escolha política.

                        Tais competências fornecidas aos municípios bolivianos são deveras exacerbadas para uma esfera de poder facilmente manipulada por sua proximidade com os elementos que desejam controlá-la. O exemplo da competência de regulamentar o próprio regime eleitoral é bastante óbvio que é altamente manipulável, mas visualizamos também a forte possibilidade de manipulação da defesa do consumidor, que pode facilmente ser controlada pelos detentores de empreendimentos voltados às relações consumeristas que possuem interesse em uma proteção mínima ao consumidor com o intuito de maximizar seus lucros, enquanto o consumidor individual, mesma quando organizado em associações dificilmente deterá a mesma capacidade e incentivo para influenciar concretamente tais políticas públicas.

                        Do exposto, visualizamos que o Município no Brasil, apesar de não existir formalmente hierarquia entre os entes, ainda é extremamente vinculado à União, devendo seguir os preceitos constitucionais à risca, sob pena de violar o pacto federativo, especialmente em um país que formou a federação por desagregação, o que acaba retendo maior quantidade de poder com o ente central. Tal fica particularmente visível quando comparado com Países em que, devido ao caráter fragmentário interno, possuem maiores poderes os entes inferiores quando efetuado uma comparação utilizando tais como paradigma.

                        Entretanto, o Brasil, apesar de suas divergências regionais, é um país cujo nível de diferenças não faz ideal o uso do sistema de Cartas Próprias sendo possível e desejável maior unificação nos ordenamentos jurídicos para aumentar a segurança jurídica de todos, pois possibilita à todos o domínio das leis, ao contrário de um sistema em que existem 5.561 ordenamentos diversos na presente data. Se já é difícil deter conhecimentos profundos de um ramo do direito o que dirá conhecer todos os ramos e milhares de ordenamentos distintos. O resultado disso é que as palavras do artigo 3º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro[16] perdem sentido na medida em que é impossível que alguém conheça todas as normas dada a enormidade do ordenamento pátrio, oriunda de pluralidade que é frequentemente desnecessária.

7. Dos efeitos econômicos das competências municipais

                        Como anteriormente foi citado, um grande problema dos atos municipais é a falta de compreensão dos efeitos resultantes, em especial quando uma legislação é extremamente popular e tendente a ampliar o capital político dos que a suportam, apesar de seus efeitos serem prejudiciais. Isso ocorre não apenas pela falta de entendimento dos efeitos, mas também pelo fato de que as pressões exercidas pela população são sentidas de forma bem maior devido à inevitável proximidade do governo com os mesmos, o que leva a inúmeras decisões prejudiciais. Os casos mais interessantes do ponto de vista econômico ocorrem quando o Governo do Município decide intervir diretamente na economia, com o uso de políticas populistas, como o controle de preços. Um exemplo histórico de uma decisão desastrosa ocorreu na Antuérpia, conforme trabalha Thomas Sowell[17]:

When a Spanish blockade in the sixteenth century tried to starve Spain's rebellious subjects in Antwerp into surrender, the resulting high prices of food within Antwerp caused others to smuggle food into the city, even through the blockade, enabling the inhabitants to continue to hold out.

However, the authorities within Antwerp decided to solve the problem of high food prices by laws fixing the maximum price to be allowed to be charged for given food items and providing severe penalties for anyone violating those laws. There followed the classic consequences of price controls, larger consumption of the artificially lower priced goods and a reduction in the supply of such goods, since people were less willing to run the risk of sending food through the blockade without the additional incentive of higher prices. Therefore, the net effect of the price controls were that "the city lived in high spirits until all at once provisions gave out" and Antwerp had to surrender to the Spaniards.

Tradução livre: Quando um bloqueio espanhol no século dezesseis tentou derrubar pela fome os rebeldes na Antuérpia, o preço alto da comida fez que esta fosse traficada para dentro da cidade através do bloqueio, habilitando seus habitantes a resistirem.

Entretanto, as autoridades na Antuérpia decidiram resolver o problema do alto preço dos alimentos através de leis que fixavam o preço máximo permitido de ser cobrado pelos diversos itens alimentícios, determinando penalidades severas para qualquer um que violasse aquelas leis. Então, seguiram as consequências clássicas do controle de preços, que foi o aumento do consumo dos bens cujo preço eram mantidos artificialmente baixos e uma redução no suprimento de tais itens, já que o risco de furar o bloqueio espanhol não compensava mais. Assim, o resultado foi que a cidade viveu em alta até o fim das provisões e a Antuérpia se rendeu aos Espanhóis.

                        Posteriormente, Sowell[18] compara duas crises de alimentos que ocorreram na Índia, deixando bastante evidente os efeitos das pressões populares no governo Na primeira o governo local de Bengala perseguiu os comerciantes e especuladores, impondo um controle no preço do arroz, o que resultou na disseminação de morte por fome. Entretanto, quando o mesmo ocorreu sob o controle britânico, que não era sujeito às pressões populares, que ao invés de tentar controlar os preços, reforçou o estímulo aos comerciantes para conduzirem seus estoques de arroz para a região, ao divulgar para todo o país a alta dos preços fez com que inúmeros comerciantes fossem para a região o que aumentou a oferta e trouxe de volta a concorrência, reduzindo os preços e retornando a economia local à normalidade. O problema é que essa medida, por ser demorada é impopular, já que seus efeitos são de médio prazo, pois existirá um prazo para que os comerciantes recebam a informação e se desloquem para a região. Já a medida controladora é popular, pois os efeitos benéficos a curto prazo são imediatos, e, apesar dos efeitos a longo prazo serem desastrosos, o povo usualmente não detém o conhecimento de economia necessários para tal discernimento. Como Sowell conclui, em uma era democrática onde a opinião pública é quem determina as políticas, para que a opção correta seja feita é preciso ou um político disposto a arriscar sua carreira (já que o povo dificilmente será capaz de associar a escolha feita ao benefício posterior devido à mora) ou que a população detenha conhecimentos razoáveis de como funciona a alocação de recursos escassos de usos alternativos através dos preços.

                        A conclusão que se obtém da análise dos fatos é que quanto mais influenciável pelas pressões populares for a esfera de poder competente para efetuar a decisão maior é a probabilidade que a mesma sucumba a estas e opte por decisões benéficas a curto prazo, mas possivelmente prejudiciais a longo prazo. Isso ocorre, primordialmente porque o nosso cérebro possui dificuldade em efetuar as ligações entre causa e consequência se o efeito se protrai no tempo. Além disso, nosso cérebro possui grande dificuldade em reconhecer os efeitos futuros, sendo extremamente tendente a focar nos efeitos à curto prazo, tendo, inclusive, dificuldade de reconhecer futuro você como sendo a mesma pessoa de hoje, que reconhece como sendo uma pessoa estranha, o que foi detectado através de exames de atividade cerebral.[19] Esse efeito  leva as pessoas a tomarem decisões prejudiciais para o futuro, e, combinado com a falta de compreensão dos efeitos de determinadas decisões, é uma receita para o desastre. Sem uma análise crítica e desprovida de fortes emoções e pressões as decisões a serem tomadas tendem a serem menos do que ideais.

                        Transportando tal contexto para o caso concreto brasileiro temos que conceder competências de alta importância e resultados significativos para as esferas de poder municipais detém grande potencial para efeitos desastrosos. Quando um especialista olha no papel que tal região está sofrendo de uma severa falta de alimentos a uma certa distância, o pensamento lógico tende a ponderar as diversas opções disponíveis e calcular qual delas irá produzir o melhor resultado possível. Entretanto, quando tal decisão é feita de perto, vendo o sofrimento e a dor dos seus semelhantes, frequentemente o pensamento emocional obscura o racional e resulta em decisões com graves consequências, como nos casos da Antuérpia e Bengala que foram citados acima.  Esse efeito combinado com a necessidade dos políticos de atender aos anseios dos seus constituintes resulta no alto grau de subjeção aos efeitos do pensamento imediatista em detrimento da lógica racional. Se nos casos analisados a decisão fosse mais econômica e racional ao invés de política e emocional teríamos resultados completamente diferentes dos que ocorreram. Se na Antuérpia soubessem os rebeldes que se suportassem os efeitos da alta nos alimentos provavelmente obteriam a liberdade do domínio Espanhol todos tenderiam a optar pela opção mais vantajosa, que é agüentar um pouco de dificuldade para posteriormente obter vastos benefícios. O mesmo exemplo temos na Bengala, que apresenta um excelente exemplo do ponto de vista científico, já que temos o grupo de controle, que é o que ocorre quando a pressão popular sem conhecimento técnico determina a política, e o grupo de experimento, que foram os efeitos da decisão técnica feita pelo dominador Inglês que não estava sujeitos aos anseios da comunidade local.

                        Entretanto, a conclusão não é que os anseios populares devem ser ignorados, mas sim que as pressões devem ser computadas de forma racional e não emocional. Ocorre que tal cálculo dificilmente será efetuado de forma correta pelo poder municipal, pela proximidade com os fatos geradores que acarreta grande sujeição ao fator emocional e pela falta de recursos materiais e intelectuais para determinar tal decisão. É deveras difícil para aqueles que sempre residiram em grandes cidades imaginar falta de conhecimento para tomar uma decisão, pois os políticos contam com a ajuda de inúmeros assessores. Ocorre que isso não é verdade para a maioria esmagadora dos Municípios, seja no Brasil, seja em outros países, que simplesmente não possuem condições de manter um rol de assessores qualificados para tomar as decisões. Assim, as decisões são frequentemente tomadas sem suporte técnico, o que aliado às pressões políticas e necessidade dos políticos de seguirem a opinião pública faz com que frequentemente escolhas péssimas sejam feitas.

                        Além disso, se levarmos em consideração o fator corrupção, que ainda é fortemente disseminada não apenas no Brasil, mas em virtualmente todas as sociedades, temos que o governo municipal é extremamente passível desta, em especial nas cidades menores em que inexistem mecanismos eficazes de controle.

            Diante do exposto é mister concluir que distribuir competências de alta força para a esfera de poder municipal é extremamente perigoso quando a mesma não detém capacidade de avaliar corretamente os resultados das decisões nem de resistir as pressões externas dos agente que indubitavelmente intentarão manipular tal competência em benefício próprio. É necessário, portanto, antes de distribuir a competência determinar se o governo local possui capacidade para atualmente exercê-la ao invés de simplesmente fornecer e esperar que seja feito o serviço. Existe um motivo pelo qual quando uma pessoa vai dirigir um veículo esta passa por diversos exames antes de receber sua habilitação ao invés de simplesmente entregar as chaves e mandar aprender só. Se realmente existe a necessidade de conceder competências críticas para a esfera mais fraca do Governo esta não pode ser simplesmente transferida de forma imediata como foi feito na Constituição de 1988 do Brasil e na nova Constituição Boliviana, mas sim de forma gradual para garantir que o poder será exercido da forma correta e da melhor maneira para todos e não apenas para agradar anseios políticos dos poderes municipais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            A conclusão que se obtém da análise dos fatos é que quanto mais influenciável pelas pressões populares for a esfera de poder competente para efetuar a decisão maior é a probabilidade que a mesma sucumba a estas e opte por decisões benéficas a curto prazo, mas possivelmente prejudiciais a longo prazo. Isso ocorre, primordialmente porque o nosso cérebro possui dificuldade em efetuar as ligações entre causa e consequência se o efeito se protrai no tempo. Além disso, nosso cérebro possui grande dificuldade em reconhecer os efeitos futuros, sendo extremamente tendente a focar nos efeitos à curto prazo, tendo, inclusive, dificuldade de reconhecer futuro você como sendo a mesma pessoa de hoje, que reconhece como sendo uma pessoa estranha, o que foi detectado através de exames de atividade cerebral.[20] Esse efeito  leva as pessoas a tomarem decisões prejudiciais para o futuro, e, combinado com a falta de compreensão dos efeitos de determinadas decisões, é uma receita para o desastre. Sem uma análise crítica e desprovida de fortes emoções e pressões as decisões a serem tomadas tendem a serem menos do que ideais.

            Transportando tal contexto para o caso concreto brasileiro temos que conceder competências de alta importância e resultados significativos para as esferas de poder municipais detém grande potencial para efeitos desastrosos. Quando um especialista olha no papel que tal região está sofrendo de uma severa falta de alimentos a uma certa distância, o pensamento lógico tende a ponderar as diversas opções disponíveis e calcular qual delas irá produzir o melhor resultado possível. Entretanto, quando tal decisão é feita de perto, vendo o sofrimento e a dor dos seus semelhantes, frequentemente o pensamento emocional obscura o racional e resulta em decisões com graves consequências, como nos casos da Antuérpia e Bengala que foram citados acima.  Esse efeito combinado com a necessidade dos políticos de atender aos anseios dos seus constituintes resulta no alto grau de subjeção aos efeitos do pensamento imediatista em detrimento da lógica racional. Se nos casos analisados a decisão fosse mais econômica e racional ao invés de política e emocional teríamos resultados completamente diferentes dos que ocorreram. Se na Antuérpia soubessem os rebeldes que se suportassem os efeitos da alta nos alimentos provavelmente obteriam a liberdade do domínio Espanhol todos tenderiam a optar pela opção mais vantajosa, que é agüentar um pouco de dificuldade para posteriormente obter vastos benefícios. O mesmo exemplo temos na Bengala, que apresenta um excelente exemplo do ponto de vista científico, já que temos o grupo de controle, que é o que ocorre quando a pressão popular sem conhecimento técnico determina a política, e o grupo de experimento, que foram os efeitos da decisão técnica feita pelo dominador Inglês que não estava sujeitos aos anseios da comunidade local.

            Entretanto, a conclusão não é que os anseios populares devem ser ignorados, mas sim que as pressões devem ser computadas de forma racional e não emocional. Ocorre que tal cálculo dificilmente será efetuado de forma correta pelo poder municipal, pela proximidade com os fatos geradores que acarreta grande sujeição ao fator emocional e pela falta de recursos materiais e intelectuais para determinar tal decisão. É deveras difícil para aqueles que sempre residiram em grandes cidades imaginar falta de conhecimento para tomar uma decisão, pois os políticos contam com a ajuda de inúmeros assessores. Ocorre que isso não é verdade para a maioria esmagadora dos Municípios, seja no Brasil, seja em outros países, que simplesmente não possuem condições de manter um rol de assessores qualificados para tomar as decisões. Assim, as decisões são frequentemente tomadas sem suporte técnico, o que aliado às pressões políticas e necessidade dos políticos de seguirem a opinião pública faz com que frequentemente escolhas péssimas sejam feitas.

            Além disso, se levarmos em consideração o fator corrupção, que ainda é fortemente disseminada não apenas no Brasil, mas em virtualmente todas as sociedades, temos que o governo municipal é extremamente passível desta, em especial nas cidades menores em que inexistem mecanismos eficazes de controle.

Diante do exposto é mister concluir que distribuir competências de alta força para a esfera de poder municipal é extremamente perigoso quando a mesma não detém capacidade de avaliar corretamente os resultados das decisões nem de resistir as pressões externas dos agente que indubitavelmente intentarão manipular tal competência em benefício próprio. É necessário, portanto, antes de distribuir a competência determinar se o governo local possui capacidade para atualmente exercê-la ao invés de simplesmente fornecer e esperar que seja feito o serviço. Existe um motivo pelo qual quando uma pessoa vai dirigir um veículo esta passa por diversos exames antes de receber sua habilitação ao invés de simplesmente entregar as chaves e mandar aprender só. Se realmente existe a necessidade de conceder competências críticas para a esfera mais fraca do Governo esta não pode ser simplesmente transferida de forma imediata como foi feito na Constituição de 1988 do Brasil e na nova Constituição Boliviana, mas sim de forma gradual para garantir que o poder será exercido da forma correta e da melhor maneira para todos e não apenas para agradar anseios políticos dos poderes municipais.

Bibliografia

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COSTA, Nelso Nery. Direito Municipal Brasileiro. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006.

CRETELLA Júnior, José. Direito Administrativo Municipal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981.

FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira, 2º Volume. São Paulo: Saraiva, 1989.

FERREIRA, Wolgran Junqueira. O Município à luz da Constituição de 1988. 2ª Ed. Bauru: Edipro, 1995.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 14ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

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WAGNER, Francisco Sosa. Manual de Derecho Local. Pamplona: Editorial Arazandi, 1999.

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Sítios da internet

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http://cmfor.virtuaserver.com.br:8080/sapl/sapl_documentos/norma_juridica/556_texto_integral

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http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev4/files/JUS2/STF/IT/ADI_980_DF_1278994572473.pdf

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http://libros-revistas-derecho.vlex.es/vid/naturaleza-reglamento-organico-local-394975210

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http://www.nytimes.com/2012/02/25/business/another-theory-on-why-bad-habits-are-hard-to-break-shortcuts.html?pagewanted=all&_r=0.

Sobre o autor
Bruno Loiola Barbosa

Graduado em direito pela UFC. Mestrando em Direito Constitucional pela UFC.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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