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A autonomia financeira do Ministério Público

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31/10/2003 às 00:00
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V. A autonomia financeira na execução da lei orçamentária

Aprovada a lei orçamentária, resta assegurada ao Ministério Público a garantia de perceber, em forma de duodécimos, as dotações que lhe são próprias. Neste sentido, é expresso o art. 168 da Constituição da República, verbis:

"Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º." [25][26]

Trata-se de preceito dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata, sendo obrigação do Executivo, que exerce a função de receptor das receitas estatais, efetuar tal repasse aos demais. O repasse das dotações orçamentárias deve ser impreterivelmente realizado no prazo estipulado no texto constitucional [27], o que evitará que seja embaraçada ou mesmo desarticulada a atividade dos demais Poderes e do Ministério Público [28]. Com isto, buscou o Constituinte originário contornar os incontáveis meandros burocráticos que em muito dificultavam as atividades dos demais Poderes e do Ministério Público, o que foi obtido retirando-se do Executivo a possibilidade de manejar as dotações orçamentárias em conformidade com as suas conveniências [29].

Dotação orçamentária, por evidente, múltiplos órgãos e instituições possuem. Todo plexo de competências existente em um ente estatal, regra geral, necessita de recursos financeiros para bem desempenhar o seu mister. Os Departamentos Penitenciários, os Departamentos de Conservação de Estradas, as múltiplas Secretarias, enfim, todos os órgãos do Poder Executivo são contemplados com dotações orçamentárias. Aqui começa e termina a similitude com o Ministério Público e com os demais Poderes. A justificativa, por sua vez, é tão simples quanto a conclusão que dela resulta: as dotações dos referidos órgãos derivam de proposta orçamentária elaborada pelo Poder Executivo e são por ele geridas, sendo comum a existência de autorização legislativa específica para o remanejamento de tais dotações de um órgão para outro, sempre ao alvedrio do governante. As dotações orçamentárias do Ministério Público e dos demais Poderes, ao revés, resultam de proposta orçamentária por eles elaborada e somente eles, por seus respectivos Chefes [30], podem movimentá-las, o que é conseqüência direta de sua autonomia financeira.

Essa conclusão, aliás, deriva da própria regra constitucional de repasse dos duodécimos, pois, em sendo permitido ao Executivo remanejar a dotação consignada em favor de tais órgãos independentes, não mais haveria que se falar na forma de repasse consagrada no art. 168 da Constituição, pois a dotação originária seria paulatinamente reduzida, o que, ao ser dividida em doze partes, importaria na transferência de montante inferior àquele que resultaria da operação realizada com a dotação integral, culminando em nítida afronta ao texto constitucional.

Sendo as dotações orçamentárias imprescindíveis à própria existência do Ministério Público e dos demais Poderes, evitando que sejam inferiorizados ou mesmo absorvidos pelo Poder Executivo, a conduta do governante que venha a remanejar indevidamente as dotações orçamentárias de tais entes poderá configurar o crime de responsabilidade previsto no art. 85, VI, da Constituição ("São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) VI - a lei orçamentária) e no art. 10, 2, da Lei nº 1.079/50 ("São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária: (...) 2) exceder ou transportar, sem autorização legal, as verbas do orçamento"), preceito este extensivo aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal por força do art. 74 da Lei nº 1.079/50 ("Constituem crimes de responsabilidade dos governadores dos Estados ou dos seus secretários, quando por eles praticados, os atos definidos como crime nesta Lei").


VI. A autonomia financeira e a Lei de Responsabilidade Fiscal

Em que pese a obviedade, pois é evidente que todo aquele que administra valores alheios deve ter seriedade e retidão em sua conduta, há muito é constatada a absoluta irresponsabilidade dos administradores públicos, sendo freqüentes o despautério, a insensatez e a má-fé na administração do patrimônio público. Objetivando coibir esse quadro, que lamentavelmente já se incorporara à rotina dos poderes constituídos, foi editada a Lei Complementar nº 101/00 [31], também denominada Lei de Responsabilidade Fiscal, que é parte integrante de um conjunto de medidas que compõem o denominado Plano de Estabilização Fiscal (PEF), tendo estabelecido mecanismos de gestão responsável dos recursos públicos, com o objetivo de conter o deficit e estabilizar a dívida pública, possibilitando a manutenção do equilíbrio que deve existir entre despesas e receitas públicas [32].

Trata-se de lei complementar editada com amparo em diversos dispositivos do Capítulo II do Título VI da Constituição da República, em especial nos arts. 163, 165, § 9º, e 169, tendo estatuído normas gerais de direito financeiro e de finanças públicas com o fim precípuo de: dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual; estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos; e impor limites para os gastos com pessoal, obrigando o Ministério Público e todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluindo suas respectivas administrações diretas, fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes, a se enquadrarem na sistemática instituída [33].

Sob a epígrafe das finanças públicas podem ser englobadas todas as operações financeiras do Estado, destinadas à captação, repartição e aplicação dos recursos necessários à satisfação do interesse social. Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, busca-se sedimentar um regime de gestão fiscal responsável [34], cercando referidas operações de mecanismos legais de controle, notadamente preventivos, que possibilitarão a contenção do endividamento público e a transparência da atividade financeira do Estado.

Não obstante os seus louváveis propósitos, o legislador terminou por exceder o espaço de conformação que lhe fora deixado pelo texto constitucional, investindo contra a autonomia financeira outorgada ao Ministério Público e aos Poderes Legislativo e Judiciário. Esta conclusão deflui da redação do art. 9º, § 3º, da Lei Complementar nº 101/00, in verbis:

"Art. 9º. Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos 30 (trinta) dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.

(...)

§ 3º. No caso de os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público não promoverem a limitação no prazo estabelecido no caput, é o Poder Executivo autorizado a limitar os valores financeiros segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias".

O Supremo Tribunal Federal, em sede de cognição sumária, ao examinar a ADIn nº 2.238-5, sendo relator o Ministro Ilmar Galvão, por unanimidade, entendeu ser ilegítima a prevalência outorgada ao Executivo na prática de medidas de contingenciamento de dotações orçamentárias, conforme expressamente dispunha o art. 9º, § 3º, da Lei Complementar nº 101/00. Em que pese reconhecer a existência de limites específicos à realização da despesa pública, quer no âmbito constitucional, quer na esfera da Lei de Responsabilidade Fiscal, entendeu o Tribunal que somente o Ministério Público e os demais Poderes poderiam contingenciar as dotações orçamentárias que receberam, não o Executivo.

A autonomia do Ministério Público na gestão dos recursos alocados em prol da Instituição é fartamente encampada pela Lei de Responsabilidade Fiscal: a) o Ministério Público é tratado como órgão da União ou do Estado, estando no mesmo patamar dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (art. 1º, § 3º); b) verificada a retração na realização das receitas, caberá ao Ministério Público (e não ao Executivo!) promover, "por ato próprio e nos montantes necessários", a limitação de empenho e movimentação financeira (art. 9º, caput); c) o Poder Executivo deve disponibilizar ao Ministério Público, no mínimo trinta dias antes do encaminhamento de sua proposta orçamentária, os estudos e as estimativas de receitas para o exercício subseqüente (art. 12, § 3º); d) os Ministérios Públicos dos Estados e da União têm limites próprios para a realização de despesas com pessoal, os quais não se confundem com os do Executivo (art. 20, I, d e II, d); e) é expressamente prevista a sujeição do Ministério Público às normas de controle da despesa total com pessoal (arts. 21, parágrafo único; 22, parágrafo único; e 23, caput e § 4º, todos combinados com art. 20, § 2º, I); f) o Ministério Público está sujeito às normas de contenção dos restos a pagar (art. 42 combinado com art. 20, § 2º, I); g) o Ministério Público, a exemplo dos demais Poderes, deve emitir relatório resumido da execução orçamentária (art. 52) e da gestão fiscal (art. 54, IV); h) o Ministério Público deve prestar contas ao Tribunal de Contas (art. 56); i) o Ministério Público deve manter sistema de controle interno de suas contas, estando, igualmente, sujeito à fiscalização do Poder Legislativo com o auxílio do Tribunal de Contas (art. 59); j) o conselho de gestão fiscal, responsável pela avaliação da política e da operacionalidade da gestão fiscal, será integrado por representantes de todos os Poderes, do Ministério Público e da sociedade civil (art. 67); l) a partir da entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, deve o Ministério Público adequar a sua despesa total com pessoal e com serviços de terceiros aos limites previstos em lei (arts. 71 e 72).

Como se constata, em nenhum momento o sistema concebe o Ministério Público como mero apêndice de outro Poder, mas, sim, como uma Instituição dotada de individualidade própria e sujeita às mesmas obrigações dos demais órgãos independentes. Consagra-se, assim, a garantia do self-government, detendo o Ministério Público total autonomia para a gestão das dotações consignadas na lei orçamentária, arcando com o ônus daí decorrente. A Constituição da República, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e a Lei de Responsabilidade Fiscal apresentam um nítido encadeamento lógico, garantindo e operacionalizando a autonomia financeira do Ministério Público.


VII. Síntese conclusiva

A Constituição de 1988 outorgou ao Ministério Público garantias condizentes com a relevância de suas atividades finalísticas, logrando dissociá-lo de qualquer dos três Poderes estatais, isto para utilizarmos a divisão tripartite consagrada por Montesquieu. Para a sedimentação dessa independência institucional, que termina por vincular o Ministério Público unicamente ao organismo social, do qual é legítimo protetor, foi-lhe assegurada autonomia funcional, administrativa e financeira.

A autonomia financeira importa em plena liberdade para a formulação de sua proposta orçamentária, a qual deve ser tão-somente encaminhada pelo Executivo ao Poder competente para avaliá-la, o Legislativo. Aprovada a lei orçamentária, é o Ministério Público o senhor absoluto de suas dotações orçamentárias, sendo defeso a qualquer outro Poder suprimi-las ou remanejá-las. A gestão financeira, aliás, foi pormenorizadamente descrita na Lei de Responsabilidade Fiscal, diploma que visualiza o Ministério Público como instituição dotada de individualidade existencial própria, sendo o destinatário final de inúmeros comandos normativos que em nada se confundem com aqueles endereçados aos demais Poderes.

Não é admissível, nos dias atuais, que ao Ministério Público seja dispensado tratamento semelhante aos dos agentes do rei do Ancien Régime, o que terminaria por situar a Instituição como mero departamento do Poder Executivo, em nítida afronta à lei e à razão. Espera-se, ao final, que os prosélitos da interpretação involutiva não terminem por sustentar a plena vigência das conhecidas assertivas do Presidente Getúlio Vargas, o qual via o Ministério Público como "órgão de cooperação na atividade governamental" e que era "expressão da confiança direta do Governo". [35]


Notas

01. Filosofia do Direito, 2º volume, 6ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1972, pp. 437 e ss.

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02. Na lição de Mauro Cappelletti e J. A. Jolowicz (in Studies in a Comparative Law - Public Interest Parties and the Cative Role of the Judge in Civil Litigation, New York: Oceana Publications Inc., 1975, p. 28), "Like de judges, they were (and are) member of the magistrature, although called ''magistrats debut'' (standing judges) rather tham ''magistrats assis'' or ''magistrats du siège'' (''sitting judges'' to indicate that they made (and make) their arguments ''standing'' before the ''sitting'' court). Likewise, they were (and are) also called Parquet, to indicate that, when arguing in court, they did (and do) not sit in the bench but rather, like the normal attorneys, stand on the floor parquet". Apesar de serem considerados magistrados (Magistrature Debout ou Magistrature du Parquet), estando sujeitos ao mesmo processo de seleção dos demais magistrados (Magistrature du Siège), os membros do Ministério Público não exercem função jurisdicional.

03. Le Ministère Public entre son Passé et son Avenir, Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1967, p. 36.

04. A Constituição da Bélgica, de 7 de fevereiro de 1831, em seu art. 101, dispõe que "Le Roi nomme et révoque les officiers du ministère public près des cours et des tribunaux". A Lei Constitucional nº 93.952, de 27 de julho de 1993, estatuiu que "o Conselho Superior da Magistratura compreende duas formações, uma com competência em relação a magistrados de carreira, e outra para membros do Ministério Público." (...) "A formação do Conselho Superior da Magistratura competente em relação a membros do Ministério Público dá seu parecer sobre as nomeações concernentes aos membros do Ministério Público, à exceção dos cargos providos em Conselho de Ministros. Ela dá seu parecer sobre as sanções disciplinares em relação aos membros do Ministério Público. Ela é presidida pelo Procurador-Geral junto à Corte de Cassação".

05. Op. cit., pp. 247/248.

06. Cf. Aury Lopes JR., Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001, p. 218

07. Somente a partir da Lei de Organização Judiciária de 1941 é que se logrou êxito em dissociar do Ministério Público do princípio de representação do Executivo. Assim, as funções de pubblico ministero e de avvocatura dello Stato passaram a ser autônomas, o que, a um só tempo, mais aproximou o Ministério Público da satisfação dos interesses sociais e o afastou da perseguição do interesse primário da Administração (Cf. Mario Vellani, Il pubblico ministero nel processo, vol. I, profilo storico, Bolonha: Nicola Zanichelli Editore, 1965, pp. 444 e ss. ).

08. Na lição de Hely Lopes Meirelles (in Direito Administrativo Brasileiro, 16ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, pp. 61/62), "órgãos independentes são os originários da Constituição e representativos dos Poderes de Estado - Legislativo, Executivo e Judiciário - colocados no ápice da pirâmide governamental, sem qualquer subordinação hierárquica ou funcional, e só sujeitos aos controles constitucionais de um Poder pelo outro. Por isso, são também chamados órgãos primários do Estado. Esses órgãos detêm e exercem precipuamente as funções políticas, judiciais e quase judiciais outorgadas diretamente pela Constituição, para serem desempenhadas pessoalmente por seus membros (agentes políticos, distintos de seus servidores que são agentes administrativos), segundo normas especiais e regimentais". Adiante conclui que "é de se incluir, ainda, nesta classe, o Ministério Público federal e estadual, e os Tribunais de Contas da União, dos Estados-membros e Municípios, os quais, embora não sejam órgãos representativos dos Poderes a que pertencem, são funcionalmente independentes e seus membros integram a categoria dos agentes políticos, inconfundíveis com os funcionários das respectivas instituições".

09. No mesmo sentido: Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 6ª ed., São Paulo: Editora Atlas, 1999, p. 465.

10. Direito Público: estudos e pareceres, 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 1996, p. 70.

11. O Ministério Público na Constituição de 1988, São Paulo: Editora Saraiva, 1989, p. 61 e Regime Jurídico do Ministério Público, 2ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1995, pp. 94/95.

12. Cours de Science des Fincances et de Législation Financière Française, Theorie Générale du Budget, 6ª ed., Paris, Marcel Giard Libraire Éditeur, 1922, pp. 14/20.

13. Como observou Alberto Deodato (in Manual de Ciência das Finanças, 20ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1984, p. 305), "se é o Executivo que elabora a proposta orçamentária, compete ao Legislativo discuti-la e votá-la. Em todos os Estados democráticos é assim e, mesmo, não há democracia onde o orçamento não é debatido pelo Congresso".

14. Segundo o art. 84 da Constituição da República, "compete privativamente ao Presidente da República: (...) XXIII - enviar ao Congresso Nacional o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e as propostas de orçamento previstas nesta Constituição". O art. 165, por sua vez, dispõe que "leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: I- o plano plurianual; II - as diretrizes orçamentárias; III - os orçamentos anuais." Sendo o Brasil uma Federação, os demais entes federativos haverão de observar idêntica sistemática.

15. Nas palavras de Michel Temer (in Elementos de Direito Constitucional, 10ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 132), "o que a Constituição confere ao reservar iniciativa é a definição do momento em que se deva legislar sobre determinada matéria. O proponente do projeto é o senhor da oportunidade. O mais se passa no interior do Poder Legislativo, no exercício constitucional de sua atividade inovadora da ordem jurídica em nível imediatamente infraconstitucional".

16. De acordo com esse princípio, todas as rendas e despesas dos Poderes, do Ministério Público e dos demais entes estatais devem ser globalmente incluídos no orçamento anual.

17. Em sua origem, o princípio da unidade orçamentária significava que o orçamento deveria ser uno, constando todas as contas orçamentárias em um único documento e em um único caixa. Com a evolução da atividade estatal, foi inevitável o surgimento de múltiplos entes dotados de autonomia, além de inúmeras especificidades no seio do próprio orçamento, o que inviabilizou a manutenção de um orçamento unidocumental. Discorrendo sobre o tema, afirma José Afonso da Silva: "conclui-se, pois, que o princípio da unidade orçamentária, na concepção do orçamento-programa, não se preocupa com a unidade documental; ao contrário, desdenhando-a, postula que tais documentos orçamentários se subordinem a uma unidade de orientação política, numa hierarquização unitária dos objetivos a serem atingidos e na uniformidade de estrutura do sistema integrado" (in Curso de Direito Constitucional Positivo, 7ª ed., São Paulo: Revista dos, 1991, p. 619). Na síntese de Ricardo Lobo Torres, "o orçamento é uno. O princípio da unidade não significa a existência de um único documento, mas a integração finalística e a harmonização entre os diversos orçamentos" (in Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, vol. V, 2ª ed., Rio: Renovar, 2000, p. 78).

18. É relevante observar que a técnica de aglutinar informações no âmbito do Poder Executivo não é utilizada unicamente no âmbito das leis orçamentárias. Também a Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal), ao disciplinar as prestações de contas, é expressa ao dispor, em seu art. 56, que "as contas prestadas pelos Chefes do Poder Executivo incluirão, além das suas próprias, as dos Presidentes dos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Chefe do Ministério Público, referidos no art. 20, as quais receberão parecer prévio, separadamente, do respectivo Tribunal de Contas." Aqui, por certo, nenhuma voz sustentará que o Chefe do Executivo pode refazer as prestações de contas que lhe foram encaminhadas. No entanto, a sistemática é idêntica à utilizada na elaboração da lei orçamentária.

19. Esse entendimento é corroborado por Hugo Nigro Mazzilli (in Regime Jurídico do Ministério Público, 2ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1995, p. 95), o qual afirma que "elaborada a proposta orçamentária pelo Ministério Público, ele a encaminhará ao Poder Executivo, que não pode reduzir a proposta, tarefa que cabe apenas ao Poder Legislativo. Acrescenta o jurista, em nota de rodapé, que "para impedir a redução de sua proposta orçamentária pelo Poder Executivo, em dezembro de 1993 o Ministério Público da União ajuizou mandado de segurança junto ao STF em defesa das garantias institucionais, tendo obtido liminar expedida pelo Min. Carlos Velloso". Referido writ foi tombado no STF sob o nº 21.855-0, tendo sido ulteriormente extinto, após requerimento do impetrante, em razão da perda de objeto. Ao deferir a liminar, o Min. Carlos Velloso ressaltou que "a Constituição confere ao Ministério Público autonomia funcional e administrativa (CF, art. 129, § 2º) e estabelece que ''o Ministério Público elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias''. Isto quer dizer que ao Poder Executivo não é facultado, de forma unilateral, fazer cortes na proposta orçamentária do Ministério Público, desde que esta haja sido elaborada, tal como ocorre com os Tribunais, ''dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias'' (CF, art. 99, § 1º; art. 127, § 3º). O Supremo Tribunal Federal, aliás, na sessão administrativa de 2.8.89, interpretando os dispositivos constitucionais referentes à autonomia financeira do Poder Judiciário, prerrogativa estendida ao MP, entendeu que incumbe aos Tribunais inscritos no § 2º do art. 99, da Constituição, aprovar o respectivo orçamento, que será remetido, pelo Presidente da Corte, ao Chefe do Poder Executivo, a fim de ser incorporado, nos próprios termos que aprovado, ao projeto de lei orçamentária de iniciativa do Presidente da República. No caso, o impetrante dá notícia de que, por ordem do Chefe do Poder Executivo, a proposta orçamentária do MP sofreu drástica redução, ''que compromete a realização das atividades essenciais do Ministério Público da União'', por isso mesmo ''ofensiva à sua autonomia administrativa, funcional e financeira, enunciada no art. 127, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal'', além de atentar ''contra a própria sobrevivência da instituição, essencial à Justiça''. Tenho como ocorrentes, portanto, no caso, os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora. Por tal razão, defiro a medida liminar, para que não seja efetuada a redução, pelo Executivo, de forma unilateral, da programação orçamentária do Ministério Público da União. Poderá o Chefe do Poder Executivo Federal solicitar ao Congresso a redução pretendida, ficando o Congresso como árbitro da questão. Com esta decisão, o Supremo Tribunal não está contrário ao Plano Econômico formulado pelo Governo. Está, sim, cumprindo a Constituição, devendo o Congresso Nacional dar a última palavra" (DJ de 1º.02.94, p. 420).

20. A sistemática atual é em muito superior àquela prevista no art. 65 da EC nº 1/69, que conferia ao Poder Legislativo a simples tarefa de homologar o que já havia sido previamente assentado pelo Executivo, verbis: "Art. 65. É da competência do Poder Executivo a iniciativa das leis orçamentárias e das que abram créditos, fixem vencimentos e vantagens de servidores públicos, concedam subvenção ou auxílio ou, de qualquer modo, autorizem, criem ou aumentem a despesa pública. § 1º. Não será objeto de deliberação a emenda de que decorra aumento de despesa global ou de cada órgão, fundo, projeto ou programa, ou vise a modificar-lhe o montante, a natureza ou o objetivo".

21. Dispõe o art. 166, § 8º, da Constituição da República que "os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização legislativa".

22. Neste sentido, aliás, é claro o disposto no art. 12, § 3º, da Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal), verbis: "O Poder Executivo de cada ente colocará à disposição dos demais Poderes e do Ministério Público, no mínimo trinta dias antes do prazo final para o encaminhamento de suas propostas orçamentárias, os estudos e as estimativas das receitas para o exercício subseqüente, inclusive da corrente líquida, e as respectivas memórias de cálculo". Por evidente, acaso tivesse o Executivo o poder de refazer a proposta orçamentária encaminhada pelos demais Poderes e pelo Ministério Público, seria desnecessário que lhes disponibilizasse a estimativa de receitas para o exercício subseqüente com o fim de lhes possibilitar o dimensionamento das despesas.

23. Anotações à Constituição de 1988, Aspectos Fundamentais, 4ª ed., Rio: Editora Forense, 1993, p. 373.

24. Para Rudolf Laun (A Democracia, Ensaio Sociológico, Jurídico e de Philosofia Política, trad. de Albino Camargo, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 220), "a proposição que afirma que o parlamento representa o povo, pode perfeitamente não aparecer na carta constitucional de uma república democrática mediata. É o caso, por exemplo, da lei constitucional francesa de 1875. A competência do parlamento poderia ser designada como um ''direito'' do parlamento".

25. O art. 70 da Constituição de 1967 já impunha ao Executivo a obrigação de repassar, trimestralmente, em cotas correspondentes a três duodécimos, "o numerário correspondente às dotações constantes dos subanexos orçamentários da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e dos Tribunais Federais". Com o advento da EC nº 1/69, a sistemática foi parcialmente alterada, devendo o Executivo, a teor do art. 68, efetuar os repasses "em quotas estabelecidas na programação financeira do Tesouro Nacional, com a participação percentual nunca inferior à estabelecida pelo Poder Executivo para os seus próprios órgãos." Como se vê, o Ministério Público não foi expressamente contemplado no texto constitucional, o que era conseqüência de sua estrita vinculação com o Poder Executivo, não possuindo a Instituição uma individualidade própria - na pureza de sua concepção.

26. Ao julgar a ADIMC nº 732/RJ, o STF suspendeu a eficácia do parágrafo único do art. 209 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, o qual ressalvava dos repasses a serem realizados pelo Poder Executivo "os recursos para despesa de pessoal, incluindo subsídios e representações, que serão entregues em condições uniformes aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário". Este preceito importava em vinculação indevida dos Poderes, em nítida afronta à sua autonomia financeira. A ementa do acórdão tem o seguinte teor: "Ação direta de inconstitucionalidade - função jurídica - caráter não-satisfativo - providências materiais reclamadas - impossibilidade de sua adoção - despesas correntes de custeio - norma constitucional estadual que as exclui da incidência do art. 168 da Carta Federal (CE/RJ, art. 209, parágrafo único) - plausibilidade jurídica e "periculum in mora" configurados - cautelar deferida. (...) O comando emergente da norma inscrita no art. 168 da Constituição Federal tem por destinatário específico o poder executivo, que está juridicamente obrigado a entregar, em conseqüência desse encargo constitucional, até o dia 20 de cada mês, ao Legislativo, ao Judiciário e ao Ministério Público, os recursos orçamentários, inclusive aqueles correspondentes aos créditos adicionais, que foram afetados, mediante lei, a esses órgãos estatais. A prerrogativa deferida ao Legislativo, ao Judiciário e ao Ministério Público pela regra consubstanciada no art. 168 da Lei Fundamental da República objetiva assegurar-lhes, em grau necessário, o essencial coeficiente de autonomia institucional. A "ratio" subjacente a essa norma de garantia radica-se no compromisso assumido pelo legislador constituinte de conferir às instituições destinatárias do "favor constitutionis" o efetivo exercício do poder de autogoverno que irrecusavelmente lhes compete. Assume inquestionável plausibilidade jurídica a tese, deduzida em sede de controle normativo abstrato, que sustenta a impossibilidade de o Estado-membro restringir a eficácia do preceito consubstanciado no art. 168 da Constituição Federal. Essa norma constitucional impõe-se à observância compulsória das unidades políticas da federação e não parece admitir - para efeito de liberação mensal das quotas duodecimais - qualquer discriminação quanto à natureza dos recursos orçamentários, sejam estes referentes, ou não, às despesas correntes de custeio". (STF, Pleno, ADIMC nº 732/RJ, rel. Min. Celso de Mello, j. em 22.05.92, RTJ nº 143/57).

27. "Ação direta de inconstitucionalidade. Medida cautelar. Dotações orçamentárias destinadas ao Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Dispositivo de medida provisória que parece pretender contornar o art. 168 da Carta da República, visto que afasta o prazo de entrega das dotações orçamentárias ao Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Medida cautelar deferida". (STF, Pleno, ADIMC nº 37/DF, rel. Min. Francisco Rezek, j. em 12.04.89,DJ de 23.06.89). Na ocasião, restou assentado que "fixando o art. 168 da Constituição Federal, como data fatal o dia 20 de cada mês para a entrega dos recursos correspondentes às suas dotações orçamentárias, cabe aos órgãos dos Poderes Legislativo, Judiciário e Ministério Público, e somente a eles, administrarem-nos, realizando o pagamento dos vencimentos de seus servidores, dentre outras despesas, na conformidade de sua conveniência e observada a incidência da legislação aplicável, sem qualquer interferência do Poder Executivo".

28. "Mandado de segurança coletivo - liberação de recursos orçamentários (CF, art. 168) - impetração por entidade de classe (Associação de Magistrados) - inadmissibilidade - prerrogativa de Poder - garantia instrumental da autonomia financeira do Poder Judiciário - writ coletivo - defesa de direitos e não de simples interesses - ilegitimidade ativa ad causam da Associação de Magistrados - extinção do processo sem julgamento de mérito. O autogoverno da Magistratura tem, na autonomia do Poder Judiciário, o seu fundamento essencial, que se revela verdadeira pedra angular, suporte imprescindível à asseguração da independência político-institucional dos Juízes e dos Tribunais. O legislador constituinte, dando conseqüência à sua clara opção política - verdadeira decisão fundamental concernente à independência da Magistratura - instituiu, no art. 168 de nossa Carta Política, uma típica garantia instrumental, assecuratória da autonomia financeira do Poder Judiciário. A norma inscrita no art. 168 da Constituição reveste-se de caráter cautelar, concebida que foi para impedir o Executivo de causar, em desfavor do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público, um estado de subordinação financeira que comprometesse, pela gestão arbitrária do orçamento - ou, até mesmo, pela injusta recusa de liberar os recursos nele consignados -, a própria independência político-jurídica daquelas Instituições". (STF, Pleno, MSAQO nº 21.291/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. em 12.04.91, DJ de 27.10.95, RTJ 159/454).

29. Por ocasião do julgamento do MS nº 21.450, em que se discutia o descumprimento da regra constitucional em relação ao Poder Judiciário, o Ministro Octávio Gallotti observou que "trata-se, aqui, de uma garantia essencial ao funcionamento e à independência Poder Judiciário, de uma ordem de distribuição prioritária (não somente eqüitativa, como supõe o governador), de verdadeira e efetiva primazia na destinação da receita para as dotações do Poder Judiciário, precisamente de modo a impedir o uso do alvedrio de que se julga investido o chefe do Poder Executivo" (STF, Pleno, j. em 08.04.92, DJ de 05.06.92, RTJ nº 140/818).

30. "Grave lesão à ordem pública e administrativa e às finanças estaduais, imputável a decisão liminar, em mandado de segurança, por meio do qual se atribuiu a disponibilidade das dotações orçamentárias do Ministério Público, por outrem, que não a legítima ocupante do cargo de Procurador-Geral de Justiça de Tocantins". (STF, Pleno, AGRSS nº 612/TO, rel. Min. Octávio Gallotti, j. em 09.03.94, DJ de 20.05.94).

31. Na elaboração da Lei de Responsabilidade Fiscal, o legislador encontrou inspiração no Fiscal Responsibility Act da Nova Zelândia, editado em 1994, tendo transplantado inúmeras disposições deste diploma para o Direito pátrio. Considerando que a Nova Zelândia é um Estado Unitário e parlamentarista, tem-se a justificativa para as inúmeras impropriedades da Lei de Responsabilidade Fiscal, que variam desde imprecisões terminológicas até frontais colidências com a forma de Estado encampada pelo Brasil, pois em inúmeros passos a Federação é relegada a plano secundário, não tendo a União se limitado à mera edição de normas gerais.

32. A Lei nº 4.320/64 permanece em vigor naquilo que não contrariar a LRF. Ademais, é importante observar que a LRF não carrega consigo a inovação própria das grandes descobertas, pois inúmeras de suas regras já haviam sido contempladas pela Lei nº 4.320/64 e pela própria Constituição da República. O que fez, em verdade, foi estabelecer reprimendas mais severas para aqueles que não agissem de forma responsável na gestão do dinheiro público e, primordialmente, conferiu maior transparência à gestão fiscal, incentivando o desenvolvimento da ideologia participativa.

33. Vide art. 1º, §§ 2º e 3º, art. 2º e art. 20 da LC nº 101/00.

34. Conforme a lição de Carlos Valder do Nascimento (in Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal, obra coletiva, 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 18, nº 4), "no plano jurídico, poder-se-iam eleger como princípios fundamentais da gestão fiscal: prevenção de deficits, prudência fiscal, segurança, planejamento e publicidade ou transparência".

35. Apud Roberto Lyra, Teoria e Prática da Promotoria Pública, 2ª ed., 1ª reimpressão, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2001, pp. 30/31.

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. A autonomia financeira do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 119, 31 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4282. Acesso em: 24 nov. 2024.

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