Princípios contratuais no Estado Democrático de Direito

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3. OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS

3.1. Princípios Clássicos

Analisando o contrato sob o paradigma do Estado Liberal, tem-se um instrumento através do qual se realiza o intercâmbio econômico entre indivíduos, traduzindo-se a autonomia da vontade como princípio supremo dos contratos, determinando os efeitos e o alcance das convenções realizadas entre os particulares.

Realçando a teoria do Estado mínimo, este paradigma tinha como base a menor intervenção estatal possível nas relações privadas. O Estado seria, nessa visão, um mal necessário com atuação restrita à garantia da ordem pública, cujo objetivo era tão-somente manter a paz e a justiça.

Em virtude desse fato, surgiram as liberdades e garantias individuais, chamados direitos de primeira geração, para proteger o indivíduo da atuação danosa do Estado, sendo oponíveis a ele.

O Estado Liberal deveria evitar a perturbação da ordem, assegurando o livre exercício das liberdades, colocando-se como poder de equilíbrio para prevenir e corrigir conflitos individuais, não poderia interferir na esfera privada de cada um, sob pena de praticar atos ilegais, cabendo resposta dos indivíduos através de remédios processuais criados para este fim.

Era o Estado árbitro, não intervencionista na vida econômica e social, ou seja, possuía uma atuação negativa, proporcionando a existência de relações jurídicas fundadas numa igualdade formal e na lógica individualista.

Assim, como afirma Teresa Negreiros (2006), a modernidade foi marcada por um movimento que tornava absoluta a vontade individual, em contraposição à vontade do Estado, e, portanto, projetando aspectos antagônicos do princípio da legalidade no direito privado (tudo o que não é proibido por lei é permitido) e no direito público (tudo o que não for permitido por lei é proibido).

Segundo a teoria liberal, a propriedade privada é fundamento e símbolo da liberdade, bem como sua circulação se dá pelo livre exercício da autonomia negocial. Daí a importância fundamental do contrato para aquela sociedade, pois é através dele que circulam as riquezas e promove-se o crescimento dos Estados.

Em virtude dessa valorização da vontade individual, vista como elemento que garantia o equilíbrio econômico e a prosperidade, os princípios clássicos contratuais na teoria liberal eram assim concebidos: 1) autonomia da vontade, 2) obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda), 3) relatividade dos efeitos contratuais.

De acordo com esta doutrina liberal, a satisfação dos interesses individuais tem como conseqüência certa a satisfação do interesse geral, de toda a sociedade, numa concepção de que este último seria a soma dos primeiros.

Como afirma Humberto Theodoro Júnior, “sob o predomínio do Estado Liberal, o contrato pode ser visto como fonte criadora de direito, ad instar da própria lei (pacta sunt servanda), como v.g., afirmava Kelsen em sua noção positivista do fenômeno negocial.” (THEODORO JÚNIOR, 2004, p. 34).

3.1.1. A Liberdade contratual e a autonomia privada

A liberdade contratual consiste no poder que as partes têm de estipular livremente, da forma que melhor lhes aprouver, a disciplina de seus interesses. Este princípio manifesta-se no poder de escolher contratar ou não, de escolher com quem contratar e ainda sobre o que contratar, fixando o conteúdo do negócio.

Existe diferença entre liberdade contratual e autonomia privada, segundo Cláudia Lima Marques (2002). A autonomia privada era a pedra angular do Direito, sendo que a concepção de liame contratual estava centrada na idéia do valor da vontade como elemento principal e única fonte do contrato, conferindo legitimidade para a criação de direitos e obrigações oriundas da relação jurídica contratual.

Sob a ótica do Estado Liberal, superado o Estado Absoluto, surgiu o indivíduo absoluto. Desta forma, não era aceitável que o Estado interviesse na esfera particular. Qualquer tentativa neste sentido seria considerada arbitrária. “[...] a proteção à liberdade incluiria, numa visão assim extremada, até mesmo a liberdade de não ser livre.” (NEGREIROS, 2006, p. 16).

O Código Civil de 1916, por exemplo, tinha uma feição nitidamente individualista, sendo que justiça significava o exato cumprimento das cláusulas contratuais, que as partes de livre e espontânea vontade pactuaram.

Na concepção clássica, as regras contratuais compunham um quadro de normas supletivas, interpretativas, para permitir assim como assegurar a plena autonomia de vontade dos indivíduos, e a liberdade contratual.

A autonomia da vontade é intimamente ligada à livre iniciativa, princípio consagrado do capitalismo, importantes para o desenvolvimento das relações econômicas. Não poderiam ser obstaculizadas pelo Estado.

Assim, na teoria do direito, a concepção clássica de contrato está ligada diretamente à doutrina da autonomia da vontade e “ao seu reflexo mais importante, qual seja, o dogma da liberdade contratual.” (MARQUES, 2002, p. 42)

Portanto, a vontade das partes, declarada ou interna, é o elemento principal do contrato, representando não só a sua criação, mas também a legitimação sua própria e de seu poder vinculante e imperativo.

Segundo o princípio da autonomia da vontade, somente a vontade livre, isenta de vícios ou defeitos, pode dar origem a um contrato válido, fonte de obrigações e de direitos.

Nesse sentido, “a função da ciência do direito será a de proteger a vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas partes contratantes.” (MARQUES, 2002, p.42).

Conforme, ainda, a doutrina de Cláudia Lima Marques (2002), é no direito natural que se encontra a base do “dogma” da liberdade contratual, uma vez que a liberdade de contratar seria uma das liberdades naturais do homem, podendo ser restringida apenas pela vontade do próprio homem. Desta forma, as pessoas só podem se submeter às leis que elas mesmas se dão:

A idéia de autonomia da vontade está estreitamente ligada à idéia de uma vontade livre, dirigida pelo próprio indivíduo sem influências externas imperativas. A liberdade contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção do direito. (MARQUES, 2002, p. 48)

Teresa Negreiros (2006) cita uma interessante notícia veiculada no jornal Economist, edição de 13 de julho de 1850 na Inglaterra, cuja opinião era contrária ao movimento sanitário da época, apresentando forte reação à Lei que tornava compulsória a ligação das casas à rede de esgoto mediante o pagamento de tributo. O jornal alegou, acerca das precárias condições de moradia e altos índices de mortalidade, que:

[...] provêm de duas causas, as quais serão agravadas por estas novas leis. A primeira é a pobreza das massas que, se possível, será aumentada pela tributação imposta pelas novas leis. A segunda é que as pessoas nunca puderam cuidar de si mesmas. Elas sempre foram tratadas como servos ou crianças e tornaram-se imbecis principalmente com relação aos objetivos que o governo decidiu realizar por elas. [...] Há um mal pior que o tifo ou a cólera ou a água contaminada que é a imbecilidade mental. (OSER e BLACHFIELD apud NEGREIROS, 2006 P. 17)

Esta era a liberdade almejada pela época. Cada pessoa tem capacidade para cuidar de si mesma, sem necessidade de se submeter às ordens do Estado.

A idéia da liberdade contratual preencheu importantes funções à época do liberalismo. De um lado permitia que os indivíduos agissem de maneira autônoma e livre no mercado, valendo-se das potencialidades da economia, baseada em um mercado livre, o que acabou por criar a importante figura da livre concorrência, assim como do poder auto-regulador do mercado.

Por outro lado, nesta economia livre e descentralizada, deveria ser assegurada a cada indivíduo a maior independência possível para se “auto-obrigar” nos limites que desejasse, podendo defender-se contra a imputação de outras obrigações para as quais não tivesse manifestado sua vontade, principalmente das intervenções estatais.

Por isso ganhou importância o consenso, a vontade do indivíduo. Desta forma, o dogma da liberdade contratual “aparece intrinsecamente ligado à autonomia da vontade, pois é a vontade, que, na visão tradicional, legitima o contrato e é fonte das obrigações, sendo a liberdade um pressuposto dessa vontade criadora, uma exigência, [...] mais teórica do que prática.” (MARQUES, 2002, p. 49)

Enfim, nas palavras de João de Matos Antunes Varela, pode-se conceituar e diferenciar autonomia privada e liberdade contratual:

Uma coisa é, na verdade, a faculdade reconhecida aos particulares de fixarem livremente, segundo o seu critério, a disciplina vinculativa dos seus interesses, nas relações com as demais criaturas (autonomia privada). E outra coisa, embora estreitamente relacionada com essa, é o poder reconhecido às pessoas de estabelecerem, de comum acordo, as cláusulas reguladoras (no plano do Direito) dos seus interesses contrapostos (liberdade contratual), que mais convenham à sua vontade comum. (VARELA, 2000, p.226)

As necessidades sociais cresceram e viu-se que esta liberdade apenas formal não atendia aos anseios da sociedade. Era preciso limitá-la, ou antes conformá-la com a nova ordem social, pois “a liberdade contratual ilimitada concedida às concentrações de poder econômico possibilitadas por essa mesma economia [pós guerra] conduziria a uma situação na qual a liberdade dos mais fortes se transformaria na privação da liberdade dos mais fracos.” (WIEACKER, 2004, p. 631).

3.1.2. Obrigatoriedade do contrato

Este princípio determina que as estipulações feitas no contrato devam ser cumpridas fielmente, sob pena de execução judicial contra o inadimplente. Esta obrigatoriedade se explica segundo Maria Helena Diniz, porque “o contrato, uma vez concluído livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico, constituindo verdadeira norma de direito, autorizando, portanto, o contratante a pedir a intervenção estatal para assegurar a execução da obrigação não cumprida segundo a vontade que a constituiu.” (DINIZ, 2006, p. 29)

Como conseqüência da auto-regulamentação dos interesses das partes contratantes, surge a imperiosa necessidade de proteção da confiança que cada uma das partes depositou no negócio estipulado.

E ainda, traz a idéia de que o contrato é intangível e imutável, admitindo apenas algumas exceções como nos casos de caso fortuito ou força maior, ou ainda se as partes o rescindirem voluntariamente.

Neste sentido:

Se o homem é livre para manifestar sua vontade e para aceitar somente as obrigações que sua vontade cria; fica claro que, por trás da teoria da autonomia da vontade, está a idéia da superioridade da vontade sobre a lei. O direito deve moldar-se à vontade, deve protegê-la, interpretá-la e reconhecer sua força criadora. O contrato, como diz o art. 1.134. do Código Civil francês, será a lei entre as partes. A própria lei, oriunda do Estado, vai buscar o seu poder vinculante na idéia de um contrato entre todos os indivíduos desta sociedade. A vontade é, portanto, a força fundamental que vincula os indivíduos. (MARQUES, 2002, p. 50)

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Se o contrato foi realizado validamente, com a observância de todos os requisitos essenciais e formais, tem força obrigatória para as partes, não podendo ser alterados os termos nem mesmo judicialmente. Portanto, as partes não podiam furtar-se ao cumprimento das obrigações, mesmo em razão de desequilíbrio sofrido em conseqüência de fatos imprevisíveis nas relações contratuais e que acarretassem exploração de um sobre o outro.

A idéia da força obrigatória dos contratos significa que, uma vez manifestada sua vontade, as partes estarão ligadas por um contrato, que contém direitos e deveres dos quais não poderão se desvincular, exceto por outro acordo de vontades ou por motivo de caso fortuito e força maior.

Essa força seria reconhecida pelo direito e imposta ante a tutela jurisdicional, pois ao juiz não caberia modificar e adequar à equidade a vontade das partes, pelo contrário, nessa visão tradicional caber-lhe-ia respeitá-la e assegurar que fossem atingidos os efeitos almejados pelas partes.

A doutrina moderna já aceita que este princípio não é absoluto como se afirmava. Tudo conforme a interpretação cumulada com os princípios contemporâneos acerca da equivalência das prestações e do equilíbrio contratual.

Certo é que o Poder Judiciário já vinha aplicando a teoria da imprevisão há algum tempo, sob a justificativa de restabelecer o satus quo ante, ou seja, o equilíbrio entre as partes.

3.1.3. Relatividade dos efeitos contratuais

Segundo este princípio, o negócio jurídico avençado não beneficia nem prejudica terceiros, vinculando e gerando efeitos apenas para as partes contratantes: res inter alios acta allis neque nocere neque prodesse potest 4 . Logo, não tem eficácia em relação a terceiros e seu patrimônio, como ensina Maria Helena Diniz (2006).

O contrato nasce de um acordo de vontades, assim, ninguém pode se submeter à relação contratual se destarte não quiser ou se a lei não determinar. Como qualquer instituto de Direito, tem suas exceções, por exemplo, no caso dos herdeiros universais (DINIZ, 2006).

É coerente com o modelo clássico do contrato, pois confere a impressão de que objetiva exclusivamente a satisfação das necessidades individuais daqueles que o haviam celebrado.

O Código de 1916 previa em seu artigo 928 que: “A obrigação, não sendo personalíssima, opera assim entre as partes, como entre seus herdeiros.”

Como corolário da autonomia da vontade, a força obrigatória dos contratos fica limitada às pessoas que dele participaram, manifestando a sua vontade.

Assim, como a legitimidade do contrato era determinada pela vontade livre e isenta de vícios e defeitos, quem não exprimiu essa vontade não poderia sofrer os benefícios ou malefícios das determinações contratuais.

Esta visão vem sendo modificada, pois já se sabe que alguns contratos podem atingir terceiros, direta ou indiretamente, que não façam parte deles. Além disso, como ensina Carlos Roberto Gonçalves: “o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, embora ainda subsista, foi bastante atenuado pelo reconhecimento de que as cláusulas gerais, por conterem normas de ordem pública, não se destinam a proteger unicamente os direitos individuais das partes”. (GONÇALVES, 2007, p.27)

O contrato é coisa percebida por outras pessoas que dele não participaram, como explica Sílvio de Salvo Venosa (2007). Esse aspecto é bastante observado nos contratos de consumo.

Existem inúmeras exceções a este princípio da relatividade como as estipulações em favor de terceiro (artigos 436 a 438 do Código Civil), convenções coletivas de trabalho, etc.

Além disso, Sílvio de Salvo Venosa explica que “esse princípio da relatividade não se aplica tão somente em relação às partes, mas também em relação ao objeto.” (VENOSA, 2007, p. 345). Assim, o contrato sobre o bem que não pertence às partes não atinge terceiros. (Esta regra também comporta exceções).

Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira:

O legislador atentou aqui para a acepção mais moderna da função do contrato, que não é a de exclusivamente atender aos interesses das partes contratantes, como se ele tivesse existência autônoma, fora do mundo que o cerca. Hoje o contrato é visto como parte de uma realidade maior e como um dos fatores de alteração da realidade social. Essa constatação te como conseqüência, por exemplo, possibilitar que terceiros que não são propriamente partes do contrato possam nele influir, em razão de serem direta ou indiretamente por ele atingidos. (PEREIRA, 2006, p.13)

Segundo a teoria clássica, em regra, as obrigações não podem ser opostas a terceiros, nem por eles invocadas, como uma conseqüência lógica da necessária manifestação de vontade a legitimar um contrato, pois, sem o consentimento válido, não pode ter existência o ato jurídico e, por conseguinte, a obrigação em relação a essas pessoas que na formação contratual não intervierem, é como se não existisse.

Desta forma, segundo Teresa Negreiros (2006), pode-se falar em um nexo de causa e efeito estabelecido entre o princípio da autonomia da vontade e o princípio da relatividade dos efeitos do contrato.

3.2. Princípios Contemporâneos

Na concepção tradicional de contato, a relação contratual seria obra de dois indivíduos em posição de igualdade perante o direito e a sociedade, que discutiriam livremente e de forma individual as cláusulas de seu acordo de vontades.

A função social no modelo liberal “era implícita à própria idéia de liberdade individual que se expressava na plenitude da autonomia”. (RÜGER; RODRIGUES, 2007, p.18)

No entanto, a liberdade individual ilimitada, assim como a igualdade apenas formal converteu-se em arbitrariedade, entrando em colapso o sistema liberal.

Na sociedade de consumo estabelecida pela Revolução Industrial, pode-se dizer que o comércio jurídico se despersonalizou, pois a empresa e mesmo o Estado, pela sua posição econômica e atividades de produção e distribuição de bens e serviços, começaram a constituir uma série de contratos no mercado.

São contratos de conteúdo homogêneo, mas concluídos com uma série ainda indefinida de contratantes. Desta forma, por uma questão de economia e praticidade as empresas se propuseram a dispor antecipadamente de um esquema contratual, oferecido à simples adesão dos consumidores.

Nesse tipo de contratos não havia, e ainda não há, a liberdade contratual de definir conjuntamente os termos do contrato, podendo o consumidor apenas aceitá-lo ou recusá-lo.

A profunda renovação do Direito Contratual deve-se a fatos como, nas palavras de Cláudia Lima Marques, “o incremento da vida contratual, cada vez mais intensa e estandardizada, a mudança de uma economia agrária em economia industrial e capitalista, concentradora de riquezas e de poder, e a criação de uma sociedade de consumo.” (MARQUES, 2002, p. 222).

O processo acelerado de acumulação de capital, bem como o aumento da desigualdade social agravando os problemas sociais e a necessidade de proteção ao consumidor passaram a exigir a intervenção estatal, mormente no que tange à liberdade contratual, que já se encontrava limitada pelos contratos de adesão. Ao contrário do que se acreditava, o dogma da liberdade contratual tornou-se uma ficção: liberdade de uns e opressão dos outros, da mesma forma que a livre concorrência não foi suficiente para conduzir a economia a resultados aceitáveis.

Assim, ficou evidente que o fenômeno da industrialização, conforme ensina Cláudia Lima Marques (2002), e a massificação das relações contratuais, especialmente através da criação dos contratos de adesão provocaram novos questionamentos acerca da teoria contratual, pelos quais o conceito clássico de contrato não mais se adaptava à realidade socioeconômica do século XX.

Além disso, o processo de democratização do Estado teve como conseqüência a diversificação dos interesses públicos, sendo objetivo da administração pública procurar satisfazê-los.

Desta forma, manteve-se o regime de economia de mercado, porém sujeito a algum dirigismo em busca de equilibrar os interesses. O Estado Social de Direito assenta-se sobre um humanismo democrático, em substituição ao individualismo do Estado Liberal. Após a “crise” também do Estado Social, conforme salientado, provocada pelos excessos da interferência estatal, caíram por terra os postulados que privilegiavam a vontade coletiva em detrimento da vontade individual.

Tais mudanças refletiram nos contratos e tiveram como conseqüência não o abandono dos princípios clássicos contratuais, mas sim o acréscimo de outros, visando à flexibilização dos antigos e sua adequação à nova realidade social.

O Estado Democrático de Direito, consagrado no país pelo marco da Constituição da República Brasileira de 1988, inseriu no ordenamento jurídico pátrio certos princípios voltados para a priorização crescente de normas públicas que harmonizassem a esfera individual e a social. Desta forma, não mais se acredita na supremacia do interesse público sobre o privado, mas sim, na harmonia entre os dois.

Em que pese não ser modificada fundamentalmente a finalidade do contrato, qual seja, a circulação de riquezas, há que se considerar o contrato como instrumento de promoção dos objetivos declarados na Constituição da República, tais como proporcionar o desenvolvimento nacional, construir uma sociedade livre, justa e solidária, reduzir as desigualdades sociais, dentre outras, emergindo nesse caso uma função social.

Segundo Habermas (2002), o Estado Democrático define que todo direito subjetivo deve sua existência a uma ordem jurídica objetiva, que irá possibilitar e garantir a integridade de uma vida autônoma, mas em comum, fundada em uma ordem de coisas que tenham como vetor o mútuo respeito.

Assim, a nova concepção do Direito Contratual não se limita à existência dos três princípios clássicos mencionados, mas abrange ainda outros três, como registra Antônio Junqueira de Azevedo citado por Humberto Theodoro Júnior (2004, p.4): “1) princípio da boa fé objetiva, 2) princípio do equilíbrio econômico, 3) princípio da função social dos contratos.”

A existência de novos princípios não elimina os antigos, mas os enriquece, na medida em que acrescenta fundamentos funcionais necessários à criação e execução dos contratos.

A Constituição da República, em artigo 1º, descreve como fundamento da República, dentre outros, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Desta forma, no paradigma do estado Democrático de Direito, o Direito Contratual deverá conciliar a função/finalidade social do contrato com a liberdade contratual que caracteriza a livre iniciativa, buscando realizar os objetivos da República, respeitando seus fundamentos.

O contrato tem seu conteúdo essencialmente determinado pela vontade das partes, mas é apreciado em face da função social.

Na esteira do ordenamento constitucional, o Código Civil consagrou a função social dos contratos em seu artigo 421.

3.2.1. Boa-fé objetiva

É a consagração do entendimento de que não só o acordo de vontades obriga as partes contratantes, mas sim, alguns “deveres paralelos” nas palavras de Humberto Theodoro Júnior (2004, p. 9), sendo estes últimos acessórios àqueles que foram pactuados.

O artigo 422 do Código Civil de 2002 dispõe: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.”

Neste sentido, difere-se a boa-fé subjetiva ou o estado de espírito do agente, da boa-fé objetiva:

A boa-fé objetiva desliga-se completamente do elemento vontade, para focalizar sua atenção na comparação entre a atitude tomada e aquela que se poderia esperar de um homem médio, reticente (sic), do bom pai de família. O eixo da análise é deslocado. Enquanto na primeira modalidade o reconhecimento do animus nocendi é vital, na segunda desimporta. (USTARRÓZ apud THEODORO JÚNIOR, 2004, p.10).

Assim, ambos os contratantes devem agir segundo os costumes das pessoas honestas. Segundo Teresa Negreiros (2006), o princípio da boa-fé representa o valor da ética, lealdade, correção, veracidade, com fundamento na Constituição através da cláusula geral de tutela da pessoa humana e solidariedade social, em que “o respeito ao próximo é elemento essencial de toda e qualquer relação jurídica”. (NEGREIROS, 2006, p. 117).

Segundo Caio Mário, “a maior crítica que certamente se podia fazer ao Código Civil de 1916 era a de que nele não se tinha consagrado expressamente o princípio da boa-fé como cláusula geral”. (PEREIRA, 2006, p. 20).

Este princípio incide sobre todas as relações jurídicas da sociedade, sendo de observância obrigatória, embora contenha um conceito jurídico indeterminado que se concretiza apenas nas peculiaridades do caso concreto.

Apesar disso, a doutrina tem delineado contornos a este princípio, parâmetros que permitem ao intérprete verificar sua existência ou ausência em cada caso.

Estes parâmetros dizem respeito ao comportamento do agente em determinada relação jurídica de cooperação, conforme ensina Caio Mário da Silva Pereira (2006). Seu conteúdo são padrões de conduta que variam de exigências conforme a necessidade do tipo de relação existente entre as partes.

Neste sentido, difere da boa-fé subjetiva que se qualifica como estado de consciência da parte de estar se comportando conforme determina o ordenamento jurídico ou não. Assim, a boa-fé subjetiva cria deveres negativos para as partes.

Já a boa-fé objetiva:

Cria também deveres positivos, já que exige que as partes tudo façam para que o contrato seja cumprido conforme previsto e para que ambas obtenham o proveito desejado. Assim, o dever de simples abstenção de prejudicar, característico da boa fé subjetiva, se transforma na boa-fé objetiva em dever de cooperar. (PEREIRA, 2006, p.21).

Desta forma, este princípio é elemento interpretativo, além de possuir função limitadora e de criação de deveres jurídicos (acessórios) de equidade, razoabilidade e correção, em prol do interesse social e da segurança das relações jurídicas.

Segundo Cláudia Lima Marques (2002), o princípio da boa-fé objetiva na formação e execução das obrigações possui as seguintes funções:

A primeira é uma função criadora, seja como fonte de novos deveres de conduta anexos aos deveres de prestação contratual, como o dever de informar, de cuidado e de cooperação; seja como fonte de responsabilidade por ato ilícito, ao impor riscos profissionais novos e agora indisponíveis por contrato. A segunda função é uma função limitadora, reduzindo a liberdade de atuação dos parceiros contratuais ao definir algumas condutas e cláusulas como abusivas, seja controlando a transferência dos riscos profissionais e liberando o devedor em face da não razoabilidade de outra conduta. A terceira é a função interpretadora, pois a melhor linha de interpretação de um contrato ou de uma relação de consumo deve ser a do princípio da boa-fé, o que permite uma visão total e real do contrato sob exame. (MARQUES, 2002, p. 180)

Nesse sentido, os deveres anexos à boa-fé podem ser entendidos como cooperação e respeito, conduta esperada e leal, tutelada em todas as relações. Significa fidelidade e coerência no cumprimento da expectativa alheia, consubstanciada em atitude de lealdade e cuidado que se costuma observar e que é genuinamente almejada nas relações entre pessoas honestas.

A observância do princípio da boa-fé leva à necessidade do cumprimento desses deveres mencionados, mesmo que não previstos expressamente no contrato, mas que são deveres gerais de conduta em todas as relações sociais.

Ainda nas palavras de Cláudia Lima Marques:

Esses deveres nasceram da observação da jurisprudência alemã ao visualizar que o contrato, enquanto fonte imanente de conflitos de interesses, deveria ser guiado e, mais ainda, guiar a atuação dos contraentes conforme o princípio da boa-fé nas relações. Dever aqui significa a sujeição a determinada conduta, sujeição esta acompanhada de uma sanção em caso de descumprimento. (MARQUES, 2002, p. 184-185)

Assim, apesar da nomenclatura “deveres anexos”, trata-se de obrigações a corroborar que a relação contratual obriga não somente ao cumprimento da obrigação principal, no caso a prestação objeto do contrato, mas também ao cumprimento de várias outras acessórias, sob pena de sanção, e que devem ser observados tanto na fase pré-contratual, como na contratual e na pós-contratual.

3.2.2. Equilíbrio econômico

A avença contratual entre as partes pressupõe que estas estejam em pé de igualdade e possam de maneira igualitária discutir nas cláusulas, os direitos e deveres que se originarão do que for pactuado. Havendo disparidade, não pode haver liberdade e autonomia da vontade, princípio fundamental do contrato.

Desta forma, a ordem jurídica buscou, com a inclusão deste princípio no ordenamento, concretizar a igualdade material das partes, não apenas formal como prezava o liberalismo.

“[...] torna-se anulável o contrato ajustado por quem age sob premente necessidade ou por inexperiência, obrigando-se a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação proposta.” (PEREIRA, 2006, p. 12).

Além disso, podem ocorrer fatores que tornem a prestação avençada lesiva ou excessivamente onerosa para uma das partes. Mesmo que à época da convenção a situação das partes fosse de equilíbrio, acontecimentos extraordinários podem tornar a prestação excessivamente onerosa para uma parte e extremamente vantajosa para a outra. Nestes casos, para se igualar prestação e contraprestação restabelecendo o equilíbrio, a lei permite a revisão dos termos contratuais, ou mesmo sua resolução. Este princípio encontra previsão no Código Civil, artigos 157 e 478:

Art. 157. Ocorre lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação proposta.

§ 1º. Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.

§2º. Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.

[...]

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários ou imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a declarar retroagirão à data da citação. (BRASIL, 2002)

Como bem explica Teresa Negreiros, o “contrato não deve servir de instrumento para que, sob a capa de um equilíbrio meramente formal, as prestações em favor de um contratante lhe acarretem um lucro exagerado em detrimento do outro contratante.” (NEGREIROS, 2006, p. 158). Tudo sob a ótica da do princípio constitucional da igualdade substancial previsto no art. 3º da Constituição da República de 1988, já mencionado.

Neste sentido:

[...] o princípio do equilíbrio econômico incide sobre o programa contratual, servindo como parâmetro para a avaliação de seu conteúdo e resultado, mediante a comparação das desvantagens e encargos atribuídos a cada um dos contratantes. Inspirado na igualdade substancial, o princípio do equilíbrio econômico expressa a preocupação da teoria contratual contemporânea com o contratante vulnerável. Em face da disparidade de poder negocial entre os contratantes, a disciplina contratual procura criar mecanismos de proteção da parte mais fraca. (NEGREIROS, 2006, p.159).

Essa tendência de avaliar o conteúdo e resultado do contrato se contrapõe ao Direito Contratual clássico, onde se verificava a avaliação prevalente da fase de formação, bem como da manifestação da vontade.

3.2.3. Função social dos contratos

O princípio da função social dos contratos está disposto no artigo 421 do Código Civil de 2002: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social dos contratos.” (BRASIL, 2002)

Função quer dizer papel, desempenho, atuação, sendo uma determinação a ser cumprida pela coisa.

Segundo César Fiúza (2002), os contratos possuem três funções fundamentais: uma econômica, outra pedagógica e outra social. A função econômica traduz-se pela atividade de circulação de riquezas, distribuição de renda e geração de empregos; a função pedagógica do contrato transforma-o em instrumento de educação do indivíduo para a vida em sociedade; e a função social seria uma síntese das anteriores, um modo de promoção da dignidade da pessoa humana.

Social quer dizer relativo à sociedade. Logo, em uma primeira análise, pode-se definir função social do contrato como o papel que ele desempenha relativo à sociedade. Desta forma, ele interfere em um domínio externo ao dos contratantes, atingindo todo o meio social.

Seria simples limitação ao princípio da liberdade contratual, pela inclusão das idéias de justiça e solidariedade social?

Como visto, a função econômica do contrato é também uma função social, pois proporciona o desenvolvimento da sociedade. Porém, não pode ser avaliada sozinha, pois o desenvolvimento da sociedade requer ainda a preocupação com o seu bem-estar.

A proposta deste princípio é auxiliar na promoção da solidariedade social, na medida em que o patrimônio deixa de ser o eixo da estrutura social para se tornar instrumento de realização da pessoa humana.

Assim, “o exercício da autonomia privada em nossos tempos deve orientar-se não só pelo interesse individual, mas também pela utilidade que possa ter na consecução dos interesses gerais da comunidade.” (AMARAL apud THEODORO JÚNIOR, 2004, p. 14).

A justiça social, neste caso, é revelada nos deveres das partes com relação à sociedade, tendo por superado aquele individualismo liberal em favor dos interesses gerais de todos.

Teresa Negreiros (2006) fala do processo de constitucionalização do Direito Civil, o que implicaria na substituição de seu “centro valorativo”. Em lugar do indivíduo, surge a pessoa, sobrepondo-se ao reino absoluto da liberdade individual a solidariedade social.

Segundo João Hora Neto (2006), na sociedade moderna busca-se a realização de um contrato que leve em conta sua função social, ou seja, em que pese desenvolver uma função de circulação e transferência de riquezas, realize ainda um papel na sociedade que diz respeito à dignidade da pessoa humana e redução das desigualdades, conforme os valores e princípios constitucionais.

Conforme explicita Maria Helena Diniz:

Ante o disposto no artigo 421, repelido está o individualismo, nítida é, como diz Francisco Amaral, a função institucional do contrato, visto que limitada está a autonomia da vontade pela intervenção estatal, ante a função econômico-social daquele ato negocial, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais. Amputam-se, assim, os excessos do individualismo e da autonomia da vontade. Consagrado está o princípio da socialidade. O art. 421. é um princípio geral de direito, ou seja, uma norma que contém uma cláusula geral. (DINIZ, 2007, p. 24).

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Aline Santos Pedrosa Maia Barbosa

Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professora de direito civil e empresarial, advogada.<br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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