2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível notar que, ao longo do tempo, apesar de não se chegar a um conceito unânime de soberania, mudanças vêm ocorrendo no que diz respeito às características da soberania no mundo fático. Uma das mudanças que se pôde observar é com relação aos limites da soberania. Referida mudança parece dever-se ao fato de que, se antes já havia autores que não aceitavam o caráter ilimitado da soberania, hoje a tendência que as relações entre os países vêm mostrando, de uma interdependência – principalmente econômica – cada vez maior, devido, por sua vez, à globalização da economia e ao desenvolvimento e democratização dos meios de transporte e comunicação, vem aumentando o número de defensores da limitação da soberania.
Além da interdependência econômica, outros fatores têm contribuído sobremaneira para a redefinição do conceito de soberania: o agrupamento dos países em blocos, os direitos humanos e o meio-ambiente.
A interdependência dos países, tal como tem se manifestado na atualidade, parece suscitar vários problemas. Se é certo que sempre houve intercâmbios entre os países, nos mais variados setores, sobretudo no setor comercial, é certo também que a facilitação e o aumento da rapidez e da intensidade das relações entre os países, nas últimas décadas, tornou os países muito mais próximos, no sentido de que se formou uma rede de trocas, uma economia global, da qual os países não podem mais fugir. Nesse contexto, a independência dos países vem diminuindo muito, seja devido a tais relações comerciais, seja no que se refere a blocos como a Comunidade Européia, nos quais as decisões dos Estados participantes dependem, em muitos casos, declaradamente, daquilo que pensam os demais.
Assim, a perda de parte da soberania já vem acontecendo, independentemente de os Estados associarem-se ou não, pois, em suas relações com o mundo, e mesmo dentro de seu próprio território, o Estado se vê, muitas vezes "encorajado" e até mesmo abertamente obrigado, a fazer o que órgãos internacionais, outros países, ou um só país mais poderoso, acham que ele deva fazer. O Estado já não é mais soberano absoluto nem dentro de seu território, em relação a seus próprios súditos.
Pode-se dizer que a soberania apresenta dois aspectos: o interno e o externo. O primeiro reflete a vontade soberana do Estado, quer dizer, a vontade que predomina sobre a dos indivíduos e grupos sociais existentes em seu território. É o "direito de mandar". O segundo aspecto, a seu turno, refere-se à vontade independente do Estado, ou seja, a vontade que não permite que o Estado se subordine, total ou parcialmente, à vontade de outros Estados. Na prática, entretanto, tem-se percebido que o Estado não possui vontade inquestionável e ilimitada para se relacionar com outros países, e tampouco tem o poder de decidir o que quiser com relação à sua população.
Pode-se argumentar, com relação aos limites da soberania, que esta não se ferirá, desde que as limitações, a interdependência, ocorram devido à vontade do Estado, a acordos espontâneos que ele faz com outros Estados soberanos. Ora, mesmo que o Estado concorde com os limites à sua soberania, há considerações a fazer. A rede mundial de relações tem se fechado de tal forma que é difícil dizer que a decisão do Estado de limitar sua soberania em prol de relações com outros Estados se dê de forma completamente espontânea. Para tanto, deve-se trabalhar com hipóteses completamente teóricas, sem levar em conta as pressões que, na prática, ocorrem sempre que um Estado tem que tomar uma decisão que interfira de alguma forma naquilo que outros Estados desejam. Isto porque, na prática, muitas vezes o Estado precisa pensar no que "os outros Estados vão pensar", antes de tomar decisões "soberanas".
Nesse contexto, a soberania parece estar intrinsecamente ligada ao poderio econômico; ela não passa do plano conceitual para o real se não estiver acompanhada de poder econômico. É claro que os Estados sempre interferiram uns na soberania dos outros, invadiram, colonizaram, escravizaram, mas na atualidade a limitação da soberania por meios não bélicos tornou essa interferência muito mais sutil: o Estado é soberano em teoria (por isso é Estado), mas, na prática, gerencia seus assuntos internos e internacionais mais pensando na reação mundial ou de determinados países do que conforme aquilo que poderia fazer enquanto Estado soberano.
Na prática, o que se vê é que a soberania tem graus quase infinitos, que variam de acordo com o poder econômico que cada país possui. Em outras palavras, a soberania muda conforme as formas de organização do poder e, hoje, quem tem o poder é quem tem o poder econômico.
Tem-se, então, uma disparidade entre o conceito e a realidade, disparidade essa que tende a aumentar, caso o conceito de soberania não seja revisto. A soberania do Estado não é ilimitada e tampouco é o Estado completamente independente.
Os Estados Unidos são um caso que merece destaque. Eles são a prova viva de que "uns países são mais soberanos do que outros". Os Estados Unidos não precisam de outros países, ou, melhor dizendo, os outros países precisam infinitamente mais dos Estados Unidos do que o contrário. Assim, os EUA sofrem muito menos limitações à sua soberania do que qualquer outro país do planeta: eles não assinam acordos relacionados ao meio ambiente, não respeitam os direitos de prisioneiros de guerra, declaram abertamente que torturam presos suspeitos de terrorismo e invadem países contra a vontade do mundo inteiro, mas pressionam, quase obrigam, outros países a fazer o que eles (EUA) querem com relação aos seus (dos outros países) bens ambientais, e assim por diante.
Diante de tudo isso, boa parte dos estudiosos do Direito já se deu conta da necessidade de se repensar e reformular o conceito de soberania, para adaptá-lo à realidade globalizada atual.
NOTAS
01. BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito?, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 40, p. 26-29, julho/set. 2002.
02. PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 97, 3ed, vol.2, 1997.
03. DUGUIT, Leon. Traité de Droit Constitutionnel. J. Bière: Bordeaux, p. 551-592, 3ed. vol.1, 1927.
04. BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito?, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 40, p. 32, julho/set. 2002.
05. Idem, ibidem, p.32.
06. Idem, ibidem, p. 33.
07. Idem, ibidem, p.34.
08. BLACKSTONE apud PAUPÉRIO, 1997, p. 6.
09. BURGESS apud PAUPÉRIO, 1997, p. 6.
10. FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, p. 17, 1999.
11. PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 17, 3ed., vol.2, 1997.
12. BLACK’S LAW DICTIONARY. Abridged Sixth Edition, West Publishing CO. p.971, 1991.
13. MATINS, Ives Gandra (Coord.), O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998. p. 165.
14. WRISTON, Walter B. O Crepúsculo da Soberania: como a revolução da informação está transformando o nosso mundo. São Paulo: Makron Books, 1994, p.03,
15. WRISTON, Walter B. O Crepúsculo da Soberania: como a revolução da informação está transformando o nosso mundo. São Paulo: Makron Books, 1994, p.06.
16. Idem, ibidem, p. 71.
17. Idem, ibidem, p.33.
18. FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p.07.
19. SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Direito Constitucional no Mercosul. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.23.
20. FINKELSTEIN, Cláudio. Integração Regional: o Processo de Formação de mercados de Bloco. p. 64 - 72, 2000.
21. CHIARELLI apud FINKELSTEIN, p. 71.
22. FRIEDE apud FINKELSTEIN, p.71.
23. MATINS, Ives Gandra (Coord.), O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998. p. 13-28.
24 MATINS, Ives Gandra (Coord.), O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998. p. 102-113.
25. MATINS, Ives Gandra (Coord.), O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998. p. 165.
26. BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito?, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 40, p. 40, julho/set. 2002.
27. PAUPÉRIO, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder: Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 145-147, 3ed., vol.2, 1997.
28. BERARDO, Telma. Soberania, um Novo Conceito?, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 40, p. 41, julho/set. 2002.
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