Sonegação acusatória e a promoção da Justiça

01/10/2015 às 22:31

Resumo:


  • O autor analisa autos de processo criminal em casa devido à mudança iminente de emprego.

  • Ele atuou principalmente em casos criminais, júri, infância e juventude infracional, e no sistema carcerário no Maranhão.

  • Destaca um caso de prisão por porte de drogas, ressaltando a estratégia acusatória e a importância da ampla defesa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Pretensão acusatória é perseguição do justo, e não vingança a qualquer custo. O mesmo vetor é aplicável à pretensão defensiva.

Começo a analisar vários autos de processo criminal que trouxe para casa a fim de não acumular serviço e atribuição, haja vista minha iminente mudança da Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE/MA) para a Instituição Defensorial Pernambucana (DPE/PE), mantendo-me na mesma trilha do defensorar nacional, independentemente de limites geográficos.

A despeito de academicamente estar envolto com as searas cível, coletiva, processual e institucional do Direito[1], exerci a arte de defensorar[2] quase que exclusivamente nos âmbitos criminal, júri, infância e juventude infracional e no universo carcerário durante os quase três anos e meio por que passei na aguerrida Defensoria do Maranhão.

Mantendo-se a estatística do fenômeno criminal brasileiro, os processos basicamente estavam relacionados aos delitos de tráfico de drogas, roubo, furto, receptação, porte/posse de arma de fogo (de uso permitido) e embriaguez ao volante.

Um deles me chamou a atenção pela estratégia acusatória utilizada, embora não tenha me surpreendido, sendo fato comum entre alguns membros acusadores, indiferentes à missão constitucional de defesa da ordem jurídica (justa).

Tratava-se de um recém-denunciado preso em flagrante na calçada de casa portando 5g (cinco gramas) de maconha (“cannabis sativa”).

Fundada suspeita da Polícia Militar (art. 240, § 2.°, CPP)[3]? Acusado era irmão de um traficante (“passagem pela Polícia”). Circunstâncias da prisão (art. 28, § 2.°, da Lei n. 11.343/2006 – Lei Antidrogas[4]): mais de uma pessoa conversando na calçada em um bairro sem muitas ocorrências policiais relacionadas às drogas.

A Polícia conduziu o flagrado até a residência deste para buscar seus documentos pessoais e nela encontrou mais 4g (quatro gramas) dentro de um armário. A esposa afirmou que ele é usuário de drogas, mas para a Polícia sempre se trata de alegação defensiva de todos, como forma de evitar a classificação jurídica do delito de tráfico.

Diferentemente do padrão das investigações criminais por tráfico de drogas, geralmente compostas tão somente pelo Auto de Prisão em Flagrante (APF), no caso sob comento a Polícia Investigativa resolveu intimar e ouvir a vizinhança, não se contentando tão só com a palavra dos policiais condutores (teoria da perda de uma chance probatória no Processo Penal[5]) e com a expressiva quantidade de nove gramas da droga maconha.

Depoimento dos vizinhos do denunciado: sem qualquer comentário de populares desabonador de sua conduta social tampouco indicativo de traficância de drogas, na modalidade da mercancia ou não; surpresa com sua prisão em flagrante, tendo em vista ser “pessoa de boa índole e trabalhadora”, embora usuário em situação habitual de drogadição.

Os autos vieram com carga ao Núcleo Regional[6] da Defensoria Pública do Estado para oferecimento de defesa escrita, após citação pessoal do denunciado e requerimento de assistência jurídica integral e gratuita do Estado-Defensor (art. 396-A, CPP)[7]. O réu estava preso há mais de 90 (noventa) dias, após indeferimento de pedido defensorial de revogação de prisão cautelar à época da decisão judicial de conversão do flagrante em prisão preventiva[8].

No momento do oferecimento da peça acusatória o membro do Ministério Público arrolou como testemunhas os dois policiais militares condutores do flagrante, omitindo todas as testemunhas abonadoras da conduta do denunciado, deixando tal encargo à defesa técnica, como se fosse obrigação exclusiva desta, não podendo o órgão de acusação, promotor de (a) Justiça (art. 127, “caput”, CRFB), valer-se de depoimentos testemunhais colaboradores com a veracidade dos fatos, os quais naturalmente desclassificariam a capitulação legal atribuída na Denúncia.

O exemplo acima é elucidativo, na medida em que revela a praxe forense criminal e a circunstância de a qualificação do fato como tráfico ou porte de drogas para consumo pessoal ser feita na verdade pela Polícia ostensiva (ou no máximo investigativa), e não propriamente pelo órgão de Acusação, adstrito aos elementos subjetivos legais (arts. 28, § 2.°, c/c 42, da Lei n. 11.343/2006) e à atuação policial segregadora, estigmatizante e produtora de mais desigualdade social com a prisão em flagrante de usuários como traficantes, ainda que na qualidade de “pequenos traficantes” (tráfico privilegiado do § 4.° do art. 33 da Lei Antidrogas).  

Pretensão acusatória é perseguição do justo, e não vingança a qualquer custo. O mesmo vetor é aplicável à pretensão defensiva.

Concomitantemente à pretensão acusatória deve o órgão ministerial zelar pela defesa da ordem jurídica, mantendo-se incólumes os direitos fundamentais de quem quer que seja, máxime de indivíduos sob a mira do poder punitivo, devendo buscar a elucidação íntegra dos fatos, sem qualquer sonegação de elementos informativos válidos, sendo despicienda a direção apontada pelo meio de informação ou probatório.

Costumo afirmar em sessões plenárias de Tribunal do Júri que condenação não é sinônimo de justiça; absolvição não é sinônimo de impunidade. O exercício desta sinonímia depende da análise acurada de fatos e provas.

Para tanto, necessário se faz que todos os elementos de provas sejam carreados aos autos com o escopo de as partes acusadora e defensora manifestarem-se a partir de seu campo de atribuição e interpretação.

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A sonegação de informação útil, esclarecedora, até mesmo modificadora da classificação jurídica mais gravosa indicada na peça acusatória inaugural, demonstra postura maliciosa, perseguidora de vingança privada, alheia à situação vivenciada pelo perseguido.

A dicotomia entre órgão ministerial como parte e como fiscal da lei não é absoluta. A qualidade de parte (formal) não lhe retira a característica de fiscal da lei (da ordem jurídica), apenas lhe trazendo os encargos e ônus comuns de todo e qualquer sujeito processual.

Arrolar testemunhas, e demais meios de provas, é faculdade e ônus do sujeito processual. Entretanto, estando dentro do limite legal e sendo elemento de prova essencial à elucidação dos fatos e, sobretudo, à verdadeira classificação jurídica do fato delituoso, deve o sujeito acusador apresentar os meios que lhe são disponíveis no primeiro momento, facultando-se-lhe o direito de substituição em tempo oportuno.

Dos órgãos de promoção de justiça, dos direitos humanos, de concretização do ideal de igualdade, espera-se postura processual perseguidora do justo, sem sonegação de meios de prova que indiquem a veracidade ou não do alegado em juízo.


[1] Outros Artigos do Autor: http://jus.com.br/242370-igor-araujo-de-arruda/publicacoes.

[2] Para o jurista e defensor público Eduardo J. Newton defensorar é a conjugação de técnica, arte, indignação e acolhimento, consoante discorre no Artigo “um sonho, uma arte ou uma ciência, o que é defensorar?”: http://justificando.com/2015/03/15/um-sonho-uma-arte-ou-uma-ciencia-o-que-e-defensorar/

[3] “Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior”.

[4] “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

[5] Leia o Artigo “Teoria da Perda de uma Chance probatória pode ser aplicada ao Processo Penal” do jurista Alexandre Morais da Rosa (coluna “Limite penal” da Revista Consultor Jurídico). CONJUR: http://www.conjur.com.br/2014-jun-20/teoria-perda-chance-probatoria-aplicada-processo-penal

[6] Entenda melhor a expressão Núcleo Regional no Artigo “Vocabulário Defensorial: Assistido e Núcleo Regional” deste Autor:

http://justificando.com/2015/07/13/vocabulario-defensorial-assistido-e-nucleo-regional/

[7] Artigo 4.°, inciso V, da LC n. 80/94 (LONDP – Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública): “São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (...) V - exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses”.

[8] Artigo 4.°, inciso XIV, da LONDP: “(...) XIV – acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado.

Sobre o autor
Ígor Araújo de Arruda

Defensor público em Pernambuco desde 2015. Ex-defensor público no Maranhão entre 2012 e 2015. Autor do livro "Defensor Público Estadual: guia completo sobre como se preparar para a carreira" (JusPodivm, 2 edições). Coautor nos livros "Teoria Geral da Defensoria Pública" (D'Plácido, 2020) e “Defensoria Pública, Constituição e Ciência Política” (JusPodivm, 2021). Aprovado defensor público no I concurso público da Defensoria Pública da Paraíba. Nomeado analista judiciário do TJPB. Aprovado analista jurídico da SESCOOP/PB (2010). Ex-advogado privado na Paraíba. Ex-membro da Comissão de Direitos Difusos e Relações de Consumo da OAB/PB. Autor de artigos jurídicos, com especial citação no STJ (RHC 61.848-PA, T5, DJe 17.08.2016). Ex-professor e coordenador no curso Mege entre 2015 e 2021. Pós-graduado em Direito Público (2011-2012).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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