A centralidade da ideia de conflito na obra de Alasdair MacIntyre: Justiça de quem? Qual racionalidade?

18/10/2015 às 22:33
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Neste artigo faz-se uma análise da centralidade da ideia de conflito na obra “Justiça de quem? Qual racionalidade?”, do filósofo escocês Alasdair MacIntyre, tentando demonstrar sua ligação com a herança filosófica aristotélica e sua ética das virtudes.

Resumo: Neste artigo faz-se uma análise da centralidade da ideia de conflito na obra “Justiça de quem? Qual racionalidade?”, do filósofo escocês Alasdair MacIntyre, tentando demonstrar a sua ligação com a herança filosófica aristotélica, destacando o modo como tal categoria se apresenta e qual o seu papel na construção de uma ética comunitarista, situando-se, ainda, o pensamento do autor na conjuntura de uma retomada da ética das virtudes, a partir de uma nova abordagem desta tradição.

Palavras-chave: conflito, comunitarismo, ética das virtudes, decadência moral, racionalidades rivais, tradição.

Summary: This paper presents an analysis of the centrality of the concept of conflict in the work "Whose Justice Which Rationality?", from Scottish philosopher Alasdair MacIntyre, trying to demonstrate your connection with the philosophical heritage of Aristotle, emphasizing how this category is presented and what is its function in the building of a communitarianist ethics, standing, still, the author thinking in the context of a recovery of ethics of virtue, from a new approach of this tradition.

Keywords: conflict, communitarianism, ethics of virtue, moral decay, rivals rationalities, tradition.

1 SITUANDO O PENSAMENTO DO AUTOR

O filósofo escocês Alasdair MacIntyre é considerado atualmente um dos autores que melhor representam o ressurgimento, no mundo acadêmico, do debate sobre a ética.

Mais que isso, é ele o construtor de uma singular teoria cuja base se acha respaldada no legado do pensamento de Aristóteles e Tomás de Aquino. Além disso, o grande diferenciada filosofia moral proposta nas obras de MacIntyre encontra-se, principalmente, no modo como se desenvolve sua reflexão sobre o tema, posicionando-se contrário tanto ao Iluminismo quanto às perspectivas éticas decorrentes das vertentes pós-modernas e pós-nitzscheanas.

A bem da verdade, MacIntyre é um crítico veemente de todas estas posições teóricas, estendendo sua crítica também à ética contemporânea, na qual identifica as marcas definidoras de uma crise que se origina, segundo ele, no projeto de consecução do que se convencionou chamar modernidade.

O quadro de decadência da moralidade e fragmentação dos discursos racionais que justificariam o modelo de sociedade e cultura em que vivemos no ocidente é alvo de suas reflexões mais detidas. A respeito do tema já escreve o autor desde sua primeira grande obra 9editada no ano de 1966), intitulada A short history of Ethics (Uma curta história da ética), desde então passando a figurar entre os clássicos da literatura filosófica. Nessa obra MacIntyre dá início ao desenvolvimento de sua teoria, firmando posição em sua crítica à modernidade e à fragmentariedade da ética contemporânea.

No centro de suas argumentações, posta-se, com não menos ênfase, como um opositor da perspectiva individualista liberal, criticando os pressupostos tanto do relativismo ético e da tese kantiana do sujeito moral autônomo, quanto da filosofia moral de conteúdo social e igualitário, baseada no que chamou de “retórica do consenso”.

O filósofo escocês está inserido num rol de autores filiados à corrente de pensamento filosófico-político de tradição anglo-americana denominada de comunitarismo, cujo interesse volta-se para o sentido de uma ética social preocupada em compreender a sociedade política em suas relações, comportamentos e crenças, situando-a num contexto histórico que determina os modos de ser dos entes sociais. Nesse sentido, é tarefa da ética comunitarista abraçada por MacIntyre reconhecer nos grupos sociais menores, ou seja, nas comunidades, a causa material da própria sociedade política, que, assim, consubstancia-se numa comunidade de comunidades.

Voltando a analisar a fundamentação da crítica de MacIntyre à ética contemporânea, como já se afirmou anteriormente, suas principais teses serão demonstradas em alguns de seus principais livros – mais especificamente em três grandes obras.

Além da supracitada “Uma curta história da ética” (1966), aprofundará as discussões também de forma brilhante em “After Virtue” (Depois da virtude – 1981) e em “Whose justice? Which Rationality?” (Justiça de quem? Qual racionalidade? - 1988). Na primeira, nos mostra a necessidade imperiosa da contextualização histórica dos conceitos éticos para sua melhor compreensão e defende um resgate da ética aristotélica das virtudes como modo de enfrentar a crise moral que se abateu sobre o Ocidente. Em “Depois da Virtude”, trata da relação entre filosofia e história, além de analisar a ascensão e queda das diferentes moralidades, buscando compreender as razões da crise normativa que caracteriza a modernidade, em sua ausência de um discurso ético coerente. Por fim, em “Justiça de quem? Qual racionalidade?”, aprofunda ainda mais as bases de sua perspectiva comunitarista e neo-aristotélica, avaliando a natureza da conexão entre justiça e leis, sob o aspecto da tentativa de compreensão da existência de tradições de pesquisa conflitantes, que originam, por sua vez, concepções de justiça e racionalidade também conflitantes.

Após explicitar esses detalhes relevantes para se situar convenientemente a posição teórica defendida pelo autor e suas principais influências teóricas, passa-se, doravante, a analisar o que nos parece seja o centro das reflexões que pretendemos expor neste artigo. Trata-se justamente do enfoque analítico sobre a forma como MacIntyre trabalha em sua obra “Justiça de quem...” a ideia de conflito, tentando compreender e demonstrar sua centralidade, enquanto presença constante na formulação de sua teoria ética, bem como as influências sofridas na sua concepção e qual a função que exerce no panorama da referida teoria.

2 A RACIONALIDADE DAS TRADIÇÕES

Na obra em estudo, MacIntyre nos apresenta o esboço histórico-conceitual do percurso de três grandes tradições de pesquisa, tendo em vista como as mesmas definem as questões da racionalidade prática e da justiça em seus programas, reconhecendo, ainda, na atualidade, a forte presença de uma quarta tradição (a do liberalismo) que, segundo ele, também mereceria ter sua história narrada.

As três tradições às quais se reporta são, respectivamente, a tradição aristotélica, surgida na pólis grega; a tradição agostiniana e sua versão tomista; e, por último, a mistura escocesa de agostinismo calvinista e aristotelismo renascentista.

Todas elas constituem-se em histórias diferentes, com um amplo sistema de concepções, valores, práticas, virtudes e cosmologias diferentes entre si (MACINTYRE, 1991, p. 375-76).

Diferentes também os contextos a partir dos quais elas se originaram e o modo pelo qual chegaram às suas concepções de racionalidade prática e justiça. Logo, conforme se pode observar, a cada história narrativa corresponde um sistema de concepções, divergentes originariamente entre si. E dentro dessas divergências originárias é que surgem os debates e discordâncias, tanto no interior das tradições particulares quanto entre elas.

MacIntyre detecta o antagonismo existente entre as diversas tradições como um aspecto decisivo na forma como elas se constituem. Há, como que por princípio, determinadas incompatibilidades que persistem à existência das sociedades reais e historicamente contingentes.

Assim, cada tradição particular, estruturada sobre uma base linguística comum, portadora de um complexo de símbolos, conceitos, comportamentos e crenças, elabora seu modo próprio de ser, pensar e viver. Dessa forma é que se definem e se justificam racionalmente suas teses fundamentais. Teses estas que, por sinal, não necessariamente serão as mesmas defendidas por indivíduos pertencentes a uma outra tradição particular.

Portanto, entre as diversas tradições, o que prevalece, conforme assinala o filósofo escocês, seria, por assim dizer, o conflito essencial, que emerge da existência concreta de cada povo e cultura. Eis, portanto, um dos motivos determinantes na formulação das concepções de justiça e racionalidade: a ideia de conflito.

Convém ressaltar que, embora constitutivamente conflituosas, as tradições particulares diversas possuem, ainda que de forma limitada, certos padrões comuns, passíveis de ser compartilhados. Portanto, no vislumbre crítico da teoria de MacIntyre, ao contrário do que uma análise apressada possa nos levar a concluir (ainda que em menor proporção se comparado às teorias liberais), há também espaço para algum consenso.

Entretanto, conforme ressalva o próprio MacIntyre (Idem, p. 378), “… os pontos em que concordam são insuficientes para resolver suas discordâncias”. E mais adiante complementa: (Id., Ibid.):

Cada um tem seus próprios padrões de raciocínio, suas próprias crenças fundamentais. Oferecer um tipo de razão, recorrer a um grupo de crenças fundamentais, implicará necessariamente assumir o ponto de vista de uma tradição particular.

Entabuladas tais assertivas, pode-se inferir que, em relação às concepções de justiça e racionalidade, serão elas tantas quantas forem as tradições particulares existentes. Ou seja, que não existe uma concepção única e de caráter universal sobre o que venha a ser objetivamente justiça ou racionalidade. Ao contrário, são múltiplas, díspares e concorrentes as concepções existentes.

Segundo tal compreensão, evidencia-se que na teoria de MacIntyre o conflito2 ocupa posição de destaque. Tal constatação gera, entretanto, um sentimento contraditório, visto que esta proposição nos levar a descrer da possibilidade de que uma filosofia moral, como a que em suas obras se esboça, possa ser justificada em seus pressupostos estando, ao mesmo tempo e intrinsecamente, apoiada na ideia de conflito, ou seja, de um antagonismo que impera necessariamente entre os sujeitos morais e as suas respectivas tradições de racionalidade.

Sob certo aspecto, e adotando-se aqui uma certa liberdade intelectual, pode-se afirmar que MacIntyre desenvolve sua compreensão do fenômeno ético através de uma “ética do conflito”, se assim se puder denominar sua visão filosófica.

Ele a assume então, como outrora afirmamos, a partir da centralidade da categoria conflito, o que é facilmente detectável na obra em análise, face a maneira como é apresentada a noção acima aludida no decorrer de sua exposição de argumentos3.

Merece destaque, sobretudo, a forma reiterada com que a noção de conflito vai sendo exposta e sedimentada ao longo dos vários capítulos, desdobrando-se em termos e expressões correlatas, conformando-se quase que dentro de um processo de sinonímia. É assim que encontramos, por exemplo, expressões como “justiças rivais”, “racionalidades em competição”, “concepções conflitantes de justiça”, “cenário de conflito radical”, “discordâncias fundamentais”, “concepções opostas”, “conflito de tradições”, “controvérsia genuína”, dentre outros termos similares.

Sendo assim, podemos agora nos perguntar: de onde provém a ideia de conflito na ética de MacIntyre? Qual sua importância na definição dessa teoria? Que função exerce no interior de seu pensamento?

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Tais questionamentos, por demais necessários, são postos em evidência e nos levam a ter de buscar respostas não só com base na filosofia desse pensador, mas também em outras tradições históricas e modelos éticos.

3 AS VIRTUDES E A VIDA EM COMUNIDADE

A crítica de MacIntyre ao projeto universalizante de cunho iluminista, feita ao longo de suas principais obras, responsabiliza o Esclarecimento pelos males causadores da crise moral contemporânea, fundadora de uma ordem social que prega o individualismo, a emancipação das contingências e da força da tradição, em nome de uma decantada racionalidade capaz de instituir a igualdade entre os homens, através de uma ética de caráter universal.

MacIntyre retrata em seus escritos a situação de desmoronamento das sociedades e modelos culturais, de decadência dos antigos fundamentos da moralidade ocidental, o que redundou na fragmentação das concepções éticas bem como na criação de um quadro de aguda crise de valores, o que acabou por levar a moralidade, segundo ele, a uma espécie de vazio ético, responsável direto pela ausência de um conteúdo racional que a fundamente.

Talvez por isso o tom que assume sua crítica ao que chama de linguagem moral contemporânea, sobre a qual faz menção ao lembrar-nos que

A característica mais marcante da linguagem moral contemporânea é ser muito utilizada para expressar discordâncias; e a característica mais marcante dos debates que expressam estas discordâncias é seu caráter interminável, não quero dizer apenas que esses debates se arrastam - embora seja o que acontece - mas também que obviamente não conseguem chegar a um fim. Parece que não existe meio racional de garantir acordo moral em nossa cultura. (MACINTYRE, 2001, p. 6)

Em “Depois da Virtude”, assim se refere ao falar da crise moral instalada em nosso tempo:

A hipótese que quero apresentar é a de que no mundo real que habitamos a linguagem está no (…) estado de grave desordem (…). O que possuímos, se essa teoria for verdadeira, são fragmentos de um esquema conceitual, partes às quais atualmente faltam os contextos de onde derivam os seus significados. Temos, na verdade, simulacros da moralidade, continuamos a usar muitas das suas expressões principais. Mas perdemos – em grande parte, se não totalmente – nossa compreensão, tanto teórica quanto prática, da moralidade. (MACINTYRE, 2001, p.15)

O que na visão de Isabel Ribeiro de Oliveira (s.d., p. 118) significa que:

… não temos mais uma compreensão efetiva da moralidade, ainda que discursos éticos os mais diversos sigam competindo entre si nos momentos em que precisamos tomar uma decisão sobre o que podemos ou não podemos fazer, ou quando avaliamos a ação governamental. Instaura-se então um debate interminável e aparentemente insolúvel, derivado da heterogeneidade dos conceitos que informam as premissas a partir das quais se posicionam.

A esta realidade decadente e fragmentada do pluralismo ético e do vazio moral de nosso tempo, MacIntyre propõe, numa perspectiva neo-aristotélica e tomista, a retomada dos valores enraizados na tradição da vida comunitária, capazes de dar, segundo pensa, sustentação à vida intelectual e moral dos cidadãos.

Partindo dessa premissa, busca revitalizar o pensamento de Aristóteles a partir de sua ética das virtudes, recontextualizada num âmbito que reúne, objetivamente, moralidade e vida social.

A aposta do comunitarismo ético implica em acreditar que o ser humano tenha sua identidade constituída no seio da comunidade em que habita, sendo ali o lugar onde o 'eu' do homem atuará livremente. É ela quem dá unidade à vida moral. Portanto, o processo de socialização experienciado dentro de uma comunidade não só é responsável por transmitir ao indivíduo as normas sociais e éticas que lhe permitirão viver em sociedade, mas também acaba por atuar no sentido de definir o que aquele indivíduo deverá ser.

É no plano da vida social, pois, e da prática política igualmente, que as virtudes se constroem e se moldam. Sendo assim, entende-se que a eticidade não pode se realizar fora de uma determinada tradição cultural, histórica, concreta.

Nesse plano, a fim de melhor compreender as razões e argumentos que compõem a ética comunitarista de MacIntyre, bem como a sua escolha da tradição grega e de um tratamento histórico à filosofia moral, faz-se mister evocar a lição de Aristóteles.

Para o mestre estagirita, a moral é formada no “berço”, ou seja, é formada a partir da inserção do indivíduo no seio de uma família, na comunidade, na pólis. É ela, a pólis, o lugar por excelência do ser humano. É nesse locos privilegiado, que é a cidade, que o homem poderá desenvolver plenamente suas excelências e virtudes. Tanto que assim escreveu na obra “A Política” (1995, p. 11):

§1º Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as sociedades, pois, se propõem qualquer lucro – sobretudo a mais importante delas, pois que visa a um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade ou sociedade política.

E mais à frente, reforçando o descrito acima, continua:

§9º É evidente, pois que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. (Idem, p. 14)

Do que se vê que, para Aristóteles, a comunidade política é o coroamento da realização do indivíduo. É onde ele, por assim dizer, atinge seu objetivo, realiza sua natural excelência, constroi-se enquanto ser de virtudes, educando-se para a vivência política, visando a plenitude de uma vida feliz. Vida esta que só poderá se realizar no mesmo plano ético dos demais cidadãos da pólis, mediante a prática da justiça, pela convivência comunitária e familiar, com o equilíbrio de suas paixões e a prática das virtudes, pela posse de bens materiais que lhes sejam suficientes e pelo cultivo das amizades.

Observa-se, portanto, que na perspectiva aristotélica, ética e política estão interligadas. Visam ambas ao bem comum do homem em sociedade e buscam realizar o ideal de uma vida feliz, através da prática da virtude (phrónesis) e da justiça na pólis. A ética de Aristóteles configura-se, portanto, numa ética finalista de base racional, onde se tem em vista o fim supremo de todo ser, que seria a plenitude de uma vida de felicidades. E para alcançá-la, segundo ele, seria necessário que o homem vivesse conforme as regras da razão.

Ademais, segundo Aristóteles, o homem virtuoso seria também, por consequência, um homem justo. Justo porque cumpriria, por influxo de uma disposição subjetiva, os atos prescritos nas determinações das leis, agindo com equilíbrio e moderação. Como indivíduo justo, o homem virtuoso buscaria não só o bem para si, mas para os outros.

Nesse sentido, afirma PEGORARO (2002, p. 38):

A justiça, como qualidade moral do indivíduo e como virtude da cidadania, é a excelência central e unificadora da existência pessoal e política. A ética consiste, portanto, na prática da justiça na comunidade humana.

Pelo acima exposto, cremos ter sido minimamente esclarecida as razões da opção de MacIntyre pela ética aristotélica, sobretudo no que tange à importância da esfera da vida pública (política) para a formação da personalidade moral dos indivíduos situados num contexto cultural de uma tradição particular.

Mas agora, então, como explicar a ideia de conflito presente na obra “Justiça de quem...”, bem como em boa parte das reflexões sobre ética em MacIntyre? Qual a sua função e de que aspecto da influência aristotélica ela procede?

Já sabemos que MacIntyre desenvolve sua abordagem ética sob a perspectiva imanente do conflito. Conflito entre tradições, entre teorias, entre modos de vida, visões de mundo, etc. Um conflito irreconciliável entre presente e passado, segundo aponta.

Trabalha, portanto, com uma noção que representa os sentidos de contrariedade, oposição, antagonismo, o que acaba por conferir à categoria um vigor diferenciado, que a enriquece e a insere numa ordem conceitual dialética herdeira da filosofia de Heráclito, antes mesmo que de Aristóteles.

Mas será justamente Aristóteles, por sinal, o fio condutor que nos aproximará do esclarecimento acerca do sentido e da função destinada à categoria conflito em Macintyre.

A doutrina aristotélica leva em grande conta certas dualidades, certos termos que expressam oposição e que, na obra do filósofo grego, terminam por instaurar a ideia de conflito em seu interior.

No âmbito da natureza humana, compondo sua estrutura ontológica, o filósofo de Estagira percebe a existência de uma relação de conflito entre, por exemplo, forma e matéria, razão e paixão, isto é, pelos opostos que lutam para tentar subordinar um ao outro.

Numa das mais evidentes oposições representativas deste conflito, destaca-se a relação corpo/alma, subordinando-se, em Aristóteles, o primeiro ao segundo. Ainda assim, mesmo em face desta oposição, aqui já apresentada, persistem outras mais, dentre elas a que se estabelece entre uma parte superior e outra inferior da mesma alma.

Nota-se, pois, que a relação estabelecida entre dualismos na ética aristotélica (como as de sensibilidade/razão, matéria/forma, corpo/alma), antes de se constituir em uma relação de complementaridade, consiste de fato numa relação de oposição e conflito. Relação esta que possui fundamental importância tanto no âmago da ética aristotélica quanto na de MacIntyre, como se pode depreender a partir dos argumentos até agora aduzidos.

A realização do indivíduo como ser virtuoso e justo, entretanto, não é algo que se dê facilmente. Pelo contrário, trata-se, em verdade, de uma tarefa bastante árdua essa da conquista plena de si mesmo. Alcançar o justo meio, adotar a retidão no agir, a virtude de caráter, a moderação e a sabedoria são metas que somente a disciplina constante, a labuta em aperfeiçoar-se, em fazer progressos, e o esforço de uma educação moral do intelecto podem propiciar. É o que conclui Aristóteles (e também MacIntyre, em seu rastro).

No dizer de PEGORARO (Idem, p. 27):

Quando a paixão for elevada à racionalidade, o indivíduo poderá celebrar o triunfo da virtude e a superação do confronto da paixão contra a razão. Superado o conflito, reina a harmonia e, graças à contínua repetição de boas ações, a virtude moral torna-se um estado habitual e os atos virtuosos são praticados com felicidade e prazer. (grifo nosso)

Sobre este ponto também leciona Helder Buenos Aires de Carvalho, ao afirmar que:

Esse progressivo aperfeiçoamento MacIntyre o concebe como possível – agora em sua própria filosofia e, diferenciadamente, em um modo admitidamente não-aristotélico – na forma de uma tradição de pesquisa racional, isto é, de uma investigação racional constituída pela tradição e dela constitutiva, incorporada numa comunidade particular, numa pólis específica. (2011, p. 278)

Em MacIntyre, portanto, a natureza dialética do conflito permeia a quase totalidade dos seus argumentos, expondo-nos à confrontação permanente das nossas convicções morais e intelectuais, dos nossos problemas cotidianos, de nossos atos e escolhas pessoais dentro da história. Tal natureza põe em movimento a contínua tentativa de afirmação de uma tradição perante outra, de um pensamento perante outro.

Em Justiça de quem? Qual racionalidade? MacIntyre admite que suas conclusões até aquele momento mostraram que é a partir de debates, conflitos e da pesquisa de tradições socialmente encarnadas e historicamente contingentes, que as disputas referentes à racionalidade prática e à justiça são propostas, modificadas, abandonadas ou substituídas. Não há nenhum outro modo de realizar essa formulação, elaboração, justificação racional e a crítica das concepções da racionalidade prática e da justiça, que não seja a partir de uma tradição particular, através do diálogo, da cooperação e do conflito entre aqueles que habitam a mesma tradição. (DAMASCENO, 2011, p. 13-14)

A partir dessa constatação, parece estar MacIntyre a querer nos mostrar que a natureza conflitiva, presente no antagonismo natural às diversas tradições (bem assim como em suas próprias contradições internas), nos empurra a um debate vivo, pondo-nos em alerta para a necessidade de fundamentarmos racionalmente nossas posições e escolhas, confrontando dialogicamente os nossos rivais4, tornando-nos, sobretudo, capazes de, com isso, assimilar na diferença a identidade. E nos faz ver ainda, em face desses argumentos, que o conflito, da forma em que o concebe, não é algo de todo ruim, sendo, ao final, um elemento decisivo para o desenvolvimento epistemológico de uma dada tradição.

Por conseguinte, em conformidade com o sentido mais profundo do que se pode extrair dessa linha de pensamento, talvez queira Alasdair MacIntyre nos levar a compreender que mesmo no seio de um conflito (como o que há num choque entre tradições diversas) pode haver, ao final, algo de construtivo, ao possibilitar novas sínteses (que, por vezes, reformulam as próprias tradições), superando-se assim a visão negativa geralmente associada a essa ideia.

Com muita propriedade, MacIntyre (1991, p. 420) nos lembra que:

As particularidades históricas das tradições, o fato de que cada uma delas só deve ser apropriada através da relação com uma história contingente particular, não significa, por si só, que essas histórias não podem se entender ou mesmo florescer em ambientes não apenas diferentes, mas também hostis àqueles nos quais uma tradição surgiu originalmente.

Com efeito, em que pese a efetiva incomensurabilidade que há entre tradições de pesquisa racionais rivais, originadas de contextos culturais diferentes, de diferentes formas de pensar a realidade, não desconhece o filósofo escocês a possibilidade de comunicação significativa entre os discursos que defendem, desde que haja, para isso, a necessária adesão aos argumentos de uma determinada tradição particular.

4 CONCLUSÃO

Como foi mostrado, a ideia de conflito, categoria que permeia o pensamento ético de Alasdair MacIntyre, possui um significado bem mais amplo do que a mera cotidianidade do termo possa indicar. Ele, na verdade, pauta o debate entre as tradições éticas e morais rivais para, mediante um movimento de natureza dialética, possibilitar a construção de novas sínteses, superando, portanto, a visão predominante negativa que se atribui a este fenômeno.

Vimos ainda que, em MacIntyre, o conflito assume caráter fundamental na estrutura das sociedades históricas, inclusive no que pertine às regras morais que se confrontam no interior dessas múltiplas tradições.

Trata-se, outrossim, de um componente decisivo para a possibilidade da entabulação de um debate entre compreensões contrárias acerca do que venham a ser justiça e racionalidade prática segundo essas visões de mundo. Isso, segundo ele, ocorrerá na medida em que, através da racionalidade presente aos discursos éticos das tradições rivais mutuamente refutadas, se abra a possibilidade de reinterpretarem suas próprias tradições.

Parece-nos, por fim, que cabe ainda ao conflito, tal como apresentado no plano de sua obra, sobretudo na que ora analisou-se, possibilitar o estabelecimento de um foro de diálogo entre as tradições, para a confrontação e o teste de suas respectivas teses, propostas de forma dialética, a fim de que tais tradições particulares tornem-se capazes de melhor avaliar e descrever suas visões de mundo e padrões morais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARISTÓTELES. A política. Tradução Nestor Silveira Chaves. Bauru, SP: Edipro, 1995. (Série clássicos)

DAMASCENO, Márcia Marques. O projeto filosófico central de Alasdair MacIntyre. PROMETEUS – VIVA VOX - DFL – Universidade Federal de Sergipe. Ano 4, N.º 7, jan.-jun., 2011.

MACINTYRE, Alasdair. Depois de virtude. São Paulo, Bauru: Edusc, 2001.

MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? Tradução de Marcelo Pimenta Marques. São Paulo: Loyola, 1991.

OLIVEIRA, Isabel Ribeiro de. Notas sobre dois livros de MacIntyre. Revista Lua Nova, n.º 64, 2005, p. 117-128.

PEGORARO, Olinto. Ética e justiça.7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

CARVALHO, Helder Buenos Aires de. A phrónesis aristotélica: breve comparação das leituras de Alasdair MacIntyre e Paul Ricouer. Hypnos. n.º 27, 2º sem, 2011, p. 260-283.

2E aqui devemos entender o termo conflito enquanto choque ou embate de ideias, divergência, contestação recíproca, antagonismo.

3Importa ressaltar que o plano da existência da noção conceitual de conflito, sejam comunitários, sociais ou institucionais ao longo da história, dentro das diferentes concepções de racionalidade rivais, também é apresentado por MacIntyre em sua obra After Virtue (Depois da virtude).

4Entenda-se o termo rivais aqui não em sua literalidade costumeira, soando o seu significado como o relacionado à figura de meros inimigos ou pessoas a quem devamos nos opor agressivamente, mas sim com o sentido que em regra adquire na ética do filósofo escocês, sobretudo em sua teoria da racionalidade, qual seja, a de indivíduos pertencentes a tradições de pensamento da qual não fazemos parte, figurando portanto como rivais morais e intelectuais.

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Sobre o autor
Rogério Rocha

Graduado em Filosofia pela UFMA, Pós-graduado em Filosofia (Paradigmas da pesquisa em ética) pelo IESMA, Bacharel em Direito pela UFMA, Pós-graduado em Direito Constitucional pela rede LFG/UNIDERP – Universidade Anhanguera, professor de filosofia, servidor público do Poder Judiciário Estadual do Maranhão. Áreas de atuação/pesquisa: Direito Constitucional, Filosofia do Direito, Ética, Direito do Estado e Direito Penal Juvenil (ECA).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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