1. UM ELEFANTE CHAMADO CONFLITO E A ORGANIZAÇÃO DO PENSAMENTO
Inicio o presente trabalho da forma mais pedagógica possível, assim sendo me preocupo com você leitor. Como você está? Está pronto para ler sobre muito conceitos abstratos? Se sua resposta foi sim para todas as perguntas é hora de começarmos. De início vamos organizar o nosso pensamento, e lembre-se que o nosso objeto de estudo é o conflito com foco para os embates envolvendo a guarda de filho em comum.
Para fins didáticos vamos começar com uma brincadeira, para ilustrar o propósito e a metodologia deste capítulo.
Figura 01 – Cegos e o Elefante
Certo dia, em uma colônia de cegos, apareceu um animal gigantesco, que promoveu um grande alvoroço na colônia, em um dado momento, seis dos mais audaciosos deficientes visuais da colônia, tatearam pelo chão batido e não demoraram muito para chegar até o animal. Eles tocaram, examinaram e acariciaram até que o animal deu um rompante e desapareceu. Dias depois ficaram sabendo que o referido animal era um elefante.
Em uma das reuniões os seis heróis da colônia, foram questionados pela multidão que curiosa desejava saber como era um elefante.
O primeiro dos cegos, mais ansioso, logo bradou. – O elefante é um animal esquisito! Parece uma coluna coberta de pelos! Um segundo cego logo o interrompeu. – Você está doido? Coluna que nada! Elefante é um enorme tapete redondo, com vontade própria, isto sim! O terceiro cego, com voz fina e estridente, fez calar os demais e com ar brincalhão anunciou. – Que tapete, colega! Você parece cego! Elefante é uma espada que quase me feriu!
Outro cego de mais idade que escutava a todos pediu a palavra e em bom tom disse. — Nada de espada e nem de tapete, muito menos de coluna. Elefante é uma corda, que eu até puxei. Ouvindo o relato do cego ancião, um deficiente visual mais novo, não se aguentou e em um tom pouco mais alto do que o normal falou. — De jeito nenhum! Elefante é uma enorme serpente que se enrola, disso eu tenho total certeza, pois também a toquei.
Por fim, um dos cegos mais fortes e corajosos, admirado por todos bateu na mesa e bradou. — Mas quanta doideira! Então eu não sei do que estou falando? Elefante é uma grande montanha que se mexe1.
Na história apresentada temos seis pessoas lançando diferentes descrições sobre o elefante, percebemos que os cegos apresentavam um comportamento excludente em que cada um deles tentava afastar a opinião do colega. No entanto, como observadores verificamos que nenhum deles está errado, sendo suas descrições complementares e o seu conjunto efetivamente forma uma completa descrição do elefante, como um animal com pernas que parecem colunas cheias de pelos, orelhas que parecem um tapete redondo, com pressas que parecem espadas, um rabo que se aproxima muito de uma corda, uma tromba que se assemelha a uma serpente e um corpo, grande como uma montanha.
Em uma comparação com a história, o nosso elefante e objeto de estudo nesta parte do trabalho é o conflito e como metodologia vamos tentar lançar diferentes olhares disciplinares para esse conflito.
2. DIFERENTES OLHARES PARA O CONFLITO ENVOLVENDO A GUARDA DE FILHO EM COMUM
Assim como na parábola tínhamos seis cegos descrevendo diferentes partes do elefante que ao final formavam uma descrição mais completa, agora vamos apresentar como a administração, a filosofia, a comunicação, a sociologia, a psicologia e o direito olham para o conflito, buscando com essa sobreposição de abordagens uma descrição mais completa do conflito e para apimentar as abordagens estaremos a todo o tempo buscando interlocução com situações envolvendo a guarda de filho em comum.
2.1. Visão Administrativa
Começando o percurso pelos relatos dos deficientes visuais, para fins de organização do pensamento iniciamos pela narrativa do cego que se agarrou a perna do elefante. Nesse passo, trazemos a visão administrativa do conflito. A administração como campo do conhecimento se propõe a organizar, planejar, controlar e dirigir determinados recursos em prol de uma dada organização.
Dentre os modelos administrativos que estudam o conflito trazemos o modelo TKI (Thomas e Kilman Instrument). Em 1974 Kenneth W. Thomas e Ralph H. Kilmann ambos administradores de formação desenvolveram um modelo de estudo e mapeamento de conflitos, voltado para o mundo corporativo. Esse modelo define o comportamento humano sobre duas vertentes: assertividade e cooperação.
Assertividade são ações voltadas para satisfazer interesses próprios já cooperação são ações destinadas a satisfazer o interesse do outro. Dependendo do perfil do indivíduo, mais assertivo ou mais cooperativo os seres humanos podem desenvolver cinco comportamentos diante de situações de conflito.
Para fins procedimentais, no sistema TKI é aplicado aos envolvidos no conflito um questionário que revelará em que grau cada um desses comportamentos se manifesta nos agentes.
No mundo organizacional os conflitos ocupam ¼ (um quarto) do tempo de trabalho dos gestores. Isto não significa que este tempo é gasto a toa, pois a incompatibilidade de interesses pode ser a faísca para a evolução das equipes, embora seja comum confundir conflito com briga discussão e ofensa existem diversas formas de um conflito se manifestar. Analisando mais profundamente a natureza do conflito é possível gerenciá-lo de maneira consciente e proveitosa. Brigar é apenas a pior das opções.
De olho nesta questão os americanos Kenneth W. Thomas e Ralph H. Kilmann desenvolveram no início da década de 70 (setenta), a ferramenta TKI, um questionário de auto-relato para avaliar as tendências das pessoas ao lidar com polêmicas interpessoais. Eles esquematizaram duas dimensões básicas para representar graficamente o perfil de cada pessoa. Independentes e separadas, uma da outra, estas dimensões são: a assertividade e a cooperação. A assertividade corresponde ao grau em que você procura satisfazer os seus próprios interesses. A cooperação indica o quanto você busca atender as necessidades dos outros.
O posicionamento no gráfico evidencia cinco estilos possíveis de gestão de conflitos, todos eficazes dependendo da situação em questão. Em um impasse com outra pessoa nós podemos agir: competindo, colaborando, conciliando, evitando ou concedendo.
Competindo. Quando nós competimos buscamos afirmar nossa posição a qualquer custo, não há negociação, isso pode ajudar a ganhar uma discussão de forma rápida, contudo é provável que este estilo gere relacionamentos de trabalho tensos diminuindo a motivação entre os envolvidos.
Colaborando. Quem resolve um conflito colaborando é capaz de ouvir ambas as partes e encontrar soluções satisfatórias para todos. O benefício principal desse estilo é a qualidade da comunicação e aprendizado fortalecendo as relações, por outro lado isso costuma demandar tempo e muita energia.
Conciliando. A conciliação é a arte da negociação quando os interesses das pessoas envolvidas são apenas parcialmente satisfeitos. Pragmatismo, velocidade e justiça são alguns dos benefícios em agir dessa forma, todavia o entendimento do conflito pode ser superficial atrapalhando a qualidade das soluções.
Evitando, ao adiar uma discussão para evitar o embate conseguimos reduzir o stress, economizar tempo e não correr riscos naquele momento, mas dependendo da situação, isso pode gerar ressentimentos entre as pessoas atrasos e o comprometimento na tomada de decisões.
Concedendo. Quando concedemos aceitamos a posição dos outros a custa de nossos interesses. Obedecemos as autoridades e somos persuadidos, assim pode-se restabelecer a harmonia e se chegar a uma conclusão em tempo breve, porém sacrificamos nosso posicionamento e podemos perder o respeito e a motivação com facilidade.
O relatório TKI trás a luz quais comportamentos nós utilizamos com freqüência e quais são aqueles que negligenciamos, assim a ferramenta nos orienta a mudar de postura para obter resultados melhores. O instrumento é poderoso para oferecer insights sobre os usos apropriados de cada estilo, fornecendo técnicas de maximizar a eficiência e garantindo que nós tenhamos a consciência de seus efeitos colaterais, atualmente o TKI possui uma grande variedade de aplicações, destacando-se no ambiente corporativo, são elas: treinamento gerencial e de supervisão, treinamento em negociações, formação de equipes, intervenção em crises, aconselhamento matrimonial e familiar.
Nos últimos 30 (trinta) anos, mais de quatro milhões de cópias do TKI foram comercializadas tornando-a ferramenta líder de gestão de conflitos no mundo...2
Por este modelo, em uma situação de conflito envolvendo guarda de filho em comum, aplicaríamos o questionário de alto relato aos sujeitos envolvidos, normalmente, pai e mãe. Em um primeiro momento seriam diagnosticados os pontos comportamentais mais fortes e mais fracos de cada um diante do conflito. Por exemplo, João em situações de conflito usa com frequência um comportamento voltado para a conciliação e negligencia habilidades para evitar o conflito já Márcia diante de um impasse apresenta comportamento predominantemente concessivo e em raríssimas ocasiões se volta para a competição.
Quando da apresentação do diagnóstico paro o grupo, que no nosso exemplo se resumem a Márcia e João, pais da Lívia estes são convidados a refletir sobre seus pontos fortes e fracos e se possível que sejam experimentadas mudanças na forma de lidar com o conflito.
2.2. Visão Filosófica
A filosofia é um campo do saber que procura entender o mundo através da razão, em nossa caminhada pedagógica, se finda o relato do deficiente visual que se agarrou a perna do elefante e agora esclareceremos a fala do cego que se agarrou a orelha do elefante, assim sendo vamos ao tapete redondo da filosofia.
Para esta tarefa teremos como base os escritos do professor e filósofo Gilvan Hansen, que vem construindo um modelo de estudo do conflito que tem os contornos que passo a apresentar.
Esse olhar filosófico encara os seres humanos por três vertentes, assim os sujeitos são dotados de razão, vontade e liberdade. Transpondo isso para um exemplo temos João que conduz, sua vida, pautado na razão (faz escolhas lógicas e coerentes), tem vontades (deseja coisas, quer coisas) e é livre (faz escolhas). Dessa caracterização tríplice surge o sujeito, que pelo modelo filosófico chamaremos de Ego. No entanto, do outro lado surge Márcia, Alterego, que assim como seu ex-marido também é dotada de razão, vontade e liberdade.
Nessa dinâmica ego e alter ofertam e demandam um determinado tratamento. O tratamento demandado, normalmente, é um tratamento digno, logo tanto Márcia quanto João querem ser tratados com dignidade, porém ao tratarem o outro João e Márcia ofertam, ora um tratamento digno, ora um tratamento não digno, que chamaremos de tratamento objetificante.
Diante deste cenário surgem os conflitos. A título de exemplo Márcia deseja ter o filho em comum em sua companhia já João deseja tê-lo consigo. Assim ego e alter tem um mesmo querer e para satisfazer suas escolhas tratam o ex-marido e a ex-mulher, as vezes conversando negociando com dignidade e as vezes ofertando um tratamento duro, excludente e até desumano, que lança um olhar para o pai ou mãe de seu filho como um objeto.
Como formas de resolver os conflitos o modelo filosófico nos apresenta duas formas, que são a aniquilação e a superação. Quando o conflito se resolve pela aniquilação ela pode se dar de três formas, pela eliminação física, psicológica ou ético-moral.
Começo pela eliminação física. “A eliminação é física quando se dá pelo assassinato, pela tortura, pela guerra ou outros mecanismos violentos de teor similar” (HANSEN, 2009, p. 4).
Transpondo o modelo para a guarda de filho em comum teríamos a Márcia ou o João assassinando o ex-cônjuge, no entanto acredito que a extinção do conflito pela eliminação física só se daria pelo extermínio violento de todo um núcleo familiar, sendo insuficiente ceifar apenas a vida da mãe ou do pai.
Quando falamos da eliminação psicológica estamos diante de diferentes formas de desqualificação do outro o diminuindo como ser humano:
A dimensão psicológica desta aniquilação se dá pela negação da personalidade do outro, ou seja, pelo combate sistemático ao modo a partir do qual o outro se expressa no mundo (ao sorriso do outro, aos gestos deste, às preferências musicais, etc.), através do ataque permanente à manifestação do outro ou ainda, o que é mais sutil e não menos cruel, pela redução do outro à invisibilidade, ao não-ser, ao fazer de conta que o outro não está presente e não existe como alguém passível de interlocução. (HANSEN, 2009, p. 4).
No plano do conflito envolvendo a negociação de cuidados com filho em comum a aniquilação psicológica é bem comum e se apresenta de forma mais branda “combate sistemático ao modo a partir do qual o outro se expressa no mundo” (HANSEN, 2009, p. 4) que se traduz em algumas falas entre pai/mãe e filho servindo como exemplo tanto episódios em que Marcia vocifera: “Seu pai é um burro mandou você não tomar refrigerante de noite. Filho você pode tomar refrigerante a hora que você quiser” quanto casos em que João fala “sua mãe não sabe te dar limite, se você não me escutar vai virar um sem educação que nem a sua mãe.”
Uma manifestação mais dura da eliminação psicológica “redução do outro a invisibilidade, ao não ser, ao fazer de conta que o outro não está presente e não existe como alguém passível de interlocução” (HANSEN, 2009, p. 4) é a chamada alienação parental.
A Síndrome da Alienação Parental foi, inicialmente, identificada, por profissionais da psicologia, como uma anormalidade, presente, especialmente, em crianças cujos genitores se encontravam em litígio conjugal, o criador do termo Alienação Parental foi Richard Alan Gardner, que em 1985 assim o definiu:
A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um distúrbio da infância que aparece quase exclusivamente no contexto de disputas de custódia de crianças. Sua manifestação preliminar é a campanha denegritória contra um dos genitores, uma campanha feita pela própria criança e que não tenha nenhuma justificação. Resulta da combinação das instruções de um genitor (o que faz a ―lavagem cerebral, programação, doutrinação) e contribuições da própria criança para caluniar o genitor-alvo. (GARDNER, 2002, p.1)
O cineasta Alan Minas, ao tratar da alienação parental em documentário divulgado em 2009, apresenta diversos relatos de especialistas em alienação parental, no entanto seu trabalho se destaca dos demais por trazer depoimentos de pessoas que sofreram alienação parental na infância e adolescência. Os entrevistados, hoje adultos, narram experiência em ambiente familiar conflituoso e como a alienação experimentada se repercutiu em suas vidas e principalmente no relacionamento com seus pais. O rico trabalho, que respalda a teoria filosófica que trabalha com a eliminação psicológica, se chama “A Morte Inventada.”.
Por fim, quando falamos de eliminação ético-moral falamos na negação do outro como ser humano dotado de vontades e escolhas. A dinâmica da relação ganha contornos utilitários.
a eliminação ético-moral se dá pela negação da pessoa do outro [...] não há qualquer reconhecimento do papel do outro que extrapole a esfera da mera objetificação, coisificação, pois o outro é uma coisa que eu uso e descarto,... (HANSEN, 2009, p. 4)
Em mais algumas reflexões à luz do conflito entre pais com filho em comum, temos como exemplo de tratamento objetificante a Márcia vendo no ex-marido, João, aquele que custeia o filho em comum (Banco), mas não um pai com desejo e vontade de opinar na escolha de uma escola para o filho ou coisas afins. Por outro lado, podemos pensar em João olhando Márcia como a motorista do filho para tanto o ex-marido reconhece o papel da mãe de seu filho como alguém que leva o menino de um lugar para o outro, realizado o serviço ela é deixada de lado e sua opinião não será considerada para nenhum outro assunto, como a escolha da escola ou de um tratamento médico adequado.
Tecidos os comentários sobre a resolução do conflito pela aniquilação, começo a trabalhar com a resolução do conflito pela superação. Segundo o modelo filosófico a superação do conflito é fruto de reconhecimento do outro como um igual, ou seja, como um ser humano dotado de razão, vontades e apto a fazer escolhas. A superação do conflito pressupõe que os envolvidos consigam se colocar um no lugar do outro, passando a se respeitarem como pessoas diferentes.
Antes de lançarmos luz sobre o consenso e o dissenso, precisamos mostrar como o modelo filosófico de conflito trabalha com o senso, para tanto irei pegar emprestadas algumas palavras.
Nas relações humanas em sociedade, ou mesmo entre grupos determinados desta, existem atitudes, comportamentos e reações tidas como padrões entre os seus membros, as quais são esperadas, de todos e por todos, diante de situações específicas do dia a dia. Cada pessoa, sob este aspecto e de alguma maneira, é observada (expectare = expectativa) e cobrada pelos demais, sendo que a conduta que atende esta expectativa coletiva se encontra no âmbito da normalidade e do senso comum, apreendido de forma unívoca pelo grupo social, recebendo aprovação social ou, ao menos, compreensão social quanto ao seu acontecer. Isso significa dizer que aquilo que é senso partilhado (ou comum) é interpretado por todos do grupo social como racional e razoável dentro de um conjunto de ações possíveis.
Todavia, quando alguém age de modo diverso daquele tido como “o normal” e se comporta de maneira diferente do que é o “senso”, temos uma posição que se pretende racional e razoável rivalizando ou se contrapondo à posição aceita pela coletividade como a racional e razoável para aquela situação. Assim, temos “dois sensos” para a mesma situação concreta; eis que se instaura o dissenso (di–sensus). (HANSEN, 2009, p. 4)
Começamos pelo dissenso. Nessa forma de superação pessoas apresentam posições distintas sobre um assunto, porém isso não as impede de conviver e dialogar pois existe compreensão e diálogo que possibilitam a troca de experiências que vão justificar as distintas colocações sobre um assunto.
Para fins didáticos apresentaremos o mesmo exemplo tanto no consenso quanto no dissenso, então trazendo o conceito para mais um episódio do cotidiano do nosso casal imaginemos Márcia e João tendo que negociar como levar o filho a escola. Márcia deseja contratar o transporte escolar já João pretende levar o menino pessoalmente.
No plano da eliminação do conflito pela aniquilação um dos ex-cônjuges imporia sua vontade sem considerar o outro como um negociador parceiro. Já no plano da superação do conflito pelo dissenso as opiniões e o diálogo são elementos necessários ao processo.
Em processo de diálogo, Márcia poderia justificar sua preferência pelo transporte escolar em razão de estar magoada com o ex-marido e não o querer por perto todos os dias, já João justificaria a vontade de levar o filho como uma oportunidade de participar mais da vida do menor.
Percebam que tanto na aniquilação quanto na superação por dissenso irá prevalecer a vontade de um dos conflitantes, no entanto o processo é bem distinto. No exemplo apresentado, Márcia poderia se sensibilizar com o pedido de João, desde que ele recebesse o menino no portão, ou então João poderia ceder ao transporte escolar, desde que por tempo determinado para que a mágoa de Márcia amenizasse. Em ambos os casos estaria instaurado o dissenso e prevaleceria a vontade de Márcia ou a de João, no entanto, via diálogo, se manteria o respeito e o vínculo entre eles, fenômeno que, dificilmente aconteceria na aniquilação, eis que Márcia ou João fariam valer sua vontade por outros meios alheios à conversa respeitosa.
Feitas as explanações quanto a superação do conflito pelo dissenso, passo a superação do conflito pelo consenso.
No modelo filosófico que estuda o conflito abordar consenso implica em se envolver em um trabalho de fala e escuta:
o sujeito pode ingressar com determinadas convicções e interesses, mas ao ouvir os argumentos do outro durante o processo de busca da solução de conflitos, pode ser convencido (...) e assumir como seus os interesses postulados pelo outro.” (HANSEN, 2009, p. 9)
Voltando a negociação quanto à ida do filho em comum para a escola em que a mãe, Márcia, queria que o menino fosse, no transporte oficial da instituição e o pai, João desejava levar o filho, pessoalmente.
Retomemos a fala de João que saindo de casa não mais convive, diariamente, com o filho, logo quer aproveitar o tempo que levaria o menino à escola para ampliar sua convivência.
Em um cenário de consenso Márcia ao ouvir os argumentos de João ponderaria sobre a relação pai e filho e a relação ex-marido e ex-mulher e em um processo de amadurecimento tomaria como seu o interesse de aproximar pai e filho e dessa empatia do casal nasce o consenso.
Passando para o lado feminino João ao ouvir os argumentos de Márcia, quanto à mágoa em razão da separação e a figura do ex-marido relembrar momentos desgastantes, assumiria como seus o mesmo desgaste de ver a ex-mulher e visando uma solução que os atenda, poderia temporariamente concordar com o transporte escolar até que essa mágoa se amenize e seja possível negociar que o pai leve seu menino a escola.
Feitas as explanações sobre o consenso e o dissenso como superação do conflito encerramos o estudo da perspectiva filosófica do conflito.
2.3. Visão da Comunicação
Em nosso laboratório vamos tirar a lente da filosofia e substituí-la pela lente da comunicação, lançando assim um novo olhar para o conflito envolvendo a guarda de filho em comum. Remontando a brincadeira dos cegos e o elefante vamos apreciar a experiência do deficiente visual que se abraçou a perna do elefante.
“No princípio era o verbo” (BÍBLIA, 2005, p.1227), assim a comunicação tem uma forma de estudar os seres humanos no qual Márcia fala, João escuta, depois João fala e Márcia escuta e assim se desenrola a comunicação.
Acrescentando um pouco de técnica neste modelo existe um emissor (aquele que fala) esse passa uma mensagem (conteúdo da fala) e adota um código. Na outra ponta a mensagem chega ao receptor (aquele que escuta) e finalmente é decodificada.
Em um exemplo simples João (emissor) liga para Maria (receptora) e fala “Vou buscar nosso filho às 10 (dez) horas”. O código utilizado foi a palavra falada, no telefone e a mensagem foi o horário em que buscaria o filho. Por sua vez Maria receptora decodificaria a mensagem e saberia que às dez horas João estaria na porta da sua casa para levar o filho em comum.
Trabalhando o exemplo buscando identificar falhas na comunicação imaginemos algumas hipóteses.
Primeiro João ao emitir a mensagem “Vou buscar nosso filho às 10 (dez) horas”, se refira ao horário de dez horas da manhã, porém Maria decodificou a mensagem pensando que a hora combinada seria as 10 (dez) horas da noite.
Segundo pensemos em uma falha quanto ao código, relembremos que o exemplo utilizou como código a palavra falada no telefone, logo a ligação poderia falhar e apesar de João ter falado “Vou buscar nosso filho às 10 (dez) horas”, Maria poderia ter escutado apenas “Vou buscar nosso filho...” e depois a ligação falhou. Assim, poderia decodificar que o horário seria um horário padrão, que foi construído ao longo de prática reiterada em que João sempre buscou o filho depois do almoço, por volta das 13 (treze) horas. Em uma terceira hipótese o telefone falhou de tal forma que Maria não ouviu absolutamente nada do que João falou, porém o ex-marido não percebeu que a ligação telefônica não completou, nesse passo haveria uma falha de comunicação quanto ao código escolhido (mensagem verbal no telefone) o que equivaleria aos sinais de fumaça durante uma tempestade noturna.
Ao lado das falhas de comunicação surgem dois tipos de escuta que merecem comentário, pois representam o diferencial que marca o conflito pelo viés da comunicação. Uma primeira forma de escuta é a escuta inclusiva, nela o receptor da mensagem se esforça para se colocar no lugar do emissor, buscando fazer a melhor decodificação possível da mensagem. No exemplo aventado equivaleria a Márcia se certificar de que o horário combinado seria as 10 (dez) horas da manhã, o que poderia ser feito através de simples confirmação “Você vem às 10 (dez) horas da manhã.”.
Uma segunda forma de escuta é a escuta excludente, nela o receptor busca decodificar apenas o que lhe interessa da mensagem passada. Voltando ao exemplo, imaginemos que Márcia tenha escutado apenas “Vou buscar nosso filho...” tendo a ligação falhado em seguida. Se fazendo valer desta falha Márcia poderia decodificar a mensagem interpretando que como João não falou um horário, nem retornou a ligação ela deduziu que este desistiu de ir buscar o filho, portanto agendou outra programação e quando João chegou encontrou a casa vazia.
Ampliando um pouco os conceitos de escuta inclusiva e escuta excludente não para uma simples frase, mas para uma troca sequencial de mensagens tem-se a escuta inclusiva vinculada ao diálogo e a escuta excludente vinculada ao debate. A comunicação via diálogo e via debate apresentam diferentes impactos em uma situação de conflito.
Para melhor explicar essa diferença faremos uso de exemplos: um envolvendo um debate e outro envolvendo o diálogo, ambos abordando mais uma situação de conflito de casal com filha em comum. Neste passo trabalhemos a hipótese do casal Marcia e João estarem negociando a escolha de um médico para o filho Pedro.
CONVERSA A – DIÁLOGO |
CONVERSA B - DEBATE |
Márcia: Acho que o Pedrinho precisa ir no médico. João: Por quê? Márcia: Ela anda abatido cansado... João: Será que ela não está com muitas atividades? Márcia: Acho que não. Ele já faz isso há tanto tempo, mas agora que você falou eu acho que esse pestinha está ficando até tarde no computador. Ele vai pra sua casa no fim de semana você pode ficar de olho? João: Fica tranquila, vou ficar monitorando o Pedrinho, mas e o médico? Márcia: Olha eu marquei uma consulta com a Dra. Valéria. João: A curandeira? Olha Márcia eu não levo muita fé em homeopatia não. Tudo bem se eu levar também em um médico da minha confiança? Márcia: Pode levar, mas depois não acho legal o menino ficar fazendo dois tratamentos. João: Não, tudo bem é só para fazer os exames. O que você acha de irmos juntos nos dois médicos? Márcia: Não tenho tempo para isso não, aonde você quer chegar João? João: Eu concordo que o Pedro precisa ter um médico só, mas agente tem que escolher um que seja da nossa confiança. Por isso acho legal irmos juntos. Márcia: Tudo bem então, vamos juntos, mas não se esqueça de colocar esse menino para dormir cedo. João: Pode deixar, deve ser só cansaço, mas por via das dúvidas fazemos os exames e levamos nos dois médicos, além do mais o Pedro já está na idade de ter um médico para acompanhar ele, você não acha? Márcia: Verdade, então você marca com o tal médico que é da sua confiança e te aviso a data que marquei com a Dra. Valéria, para irmos juntos. João: Combinado. |
Márcia: Acho que o Pedrinho precisa ir ao médico. João: Por quê? Márcia: Ele anda abatido, cansado... João: Frescura o garoto está bem. Márcia: Como é que você sabe? Você vê o menino uma vez por mês. João: Claro, você não me deixa ver a menino. Qualquer dia desses nem vou reconhecer meu filho. Márcia: Para de drama João! João: Drama! Então um pai querer passar mais tempo com o filho é drama? Márcia: É drama sim! Você não vem ver seu filho, coloca a culpa em mim e o raio do médico? Seu filho está doente e você só pensa em você! João: Tá bom eu levo o menino no médico. Márcia: Eu já marquei uma consulta com a Dra. Valéria... João: O que? Se você quer ir naquela curandeira que receita bolinhas você pode ir, mas meu filho não. Eu vou marcar um médico de verdade para ele. Márcia: Deixa eu repetir. Eu marquei uma consulta para o Pedro com a Dra Valéria “ A curandeira” na segunda feira de manhã. Você pode levar o seu filho? Se você não puder agente se vira como sempre. João: Márcia me escuta! Pelo amor de Deus! Eu sempre fiquei doente e fui em médicos normais, olha eu tenho quarenta e dois anos e tenho muito mais saúde do que você e sua família inteira, que só se trata com essas bolinhas e essa água suja que vocês chamam de homeopatia. Minha filha não vai se tratar com isso. Márcia: Você quer ver seu filho saudável? Então eu vou te explicar uma coisa. Quem cuida da Julia sou eu. Quem fica com a Julia sou eu. Quem sempre deu remédio para ela fui eu. Então escuta bem o que eu vou dizer: Se quiser levar no outro médico leva, mas faz o serviço completo. Leva no médico compra o remédio e fica com a menina até ela ficar boa. Se for pra ser pai pela metade, leva ela na curandeira que eu confio e depois deixa ela aqui que eu cuido. |
Agora trabalharei as conversas apresentadas para montar um conjunto de características tanto do diálogo quanto do debate tendo como norte as discussões de um grupo de educadores membros de uma organização não governamental voltada para a responsabilidade social. Neste trabalho são apresentadas quinze diferenças entre o diálogo e o debate, são elas:3
No diálogo suposições são reveladas para reavaliação, no debate suposições são defendidas como verdade. No exemplo do diálogo Márcia e Pedro suspeitam que o cansaço do filho seja alguma doença, porém reavaliam sua posição, pois o cansaço do filho pode ser apenas falta de sono, por passar a madrugada em atividades virtuais. Já na conversa em debate Márcia inicia supondo um cansaço, mas em razão do comportamento de seu interlocutor, passa a defender que o filho em comum está efetivamente doente “Márcia: É drama sim! Você não vem ver seu filho, coloca a culpa em mim e o raio do médico? Seu filho está doente e você só pensa em você!”.
Uma segunda diferença apontada é que levamos para o diálogo e para o debate nossos melhores pensamentos, porém por diferentes motivos. No debate levamos nossos melhores argumentos, porque são nossas armas mais poderosas e nos oferece a melhor proteção, no exemplo João apela para uma comparação entre a sua saúde e a saúde da família de sua ex-mulher para convencê-la de que a melhor escolha é um médico alopata. “João: [...] Eu sempre fiquei doente e fui em médicos normais, olha eu tenho quarenta e dois anos e tenho muito mais saúde do que você e sua família inteira,”. No diálogo levamos nossos melhores argumentos porque queremos dar o melhor para o crescimento da ideia construída com o interlocutor. Perceba que na conversa João busca seu melhor argumento para convencer Márcia de que sua presença é importante na consulta, pois pai e mãe devem criar vínculo de confiança com o médico que irá cuidar do filho em comum. “João: Eu concordo que o Pedro precisa ter um médico só, mas agente tem que escolher um que seja da nossa confiança. Por isso acho legal irmos juntos.”
Avançando com a terceira nuance, o diálogo busca os pontos fortes da posição do interlocutor, perceba que João em diálogo quer conhecer a médica homeopata, para conhecer os ponto fortes desse tratamento. No debate procura-se por falhas e fraquezas na outra posição, eis que o João debatedor aponta falhas na homeopatia ao fala que sua saúde, vinculada a alopatia é melhor do que a saúde de toda a família de Márcia que sempre se tratou com homeopatia.
A quarta diferença mostra que o diálogo é uma experiência livre com ampla abertura para reconhecer erros e mudar o pensamento, ao contrário do debate que se fecha buscando determinar o que está certo. Aplicando ao caso narrado, vemos Márcia mudar o pensamento em duas oportunidades, uma quando reconhece que o cansaço do filho pode ser fruto de muitas atividades em especial demorar a dormir por ficar no computador, em um segundo momento Márcia reconhece que ir junto com o ex-marido aos dois médicos é um sacrifício que vale a pena. Quando passamos para o feroz Márcia do debate esta não reconhece erros e defende com toda sua força tanto a doença do filho como a médica de sua confiança como as melhores alternativas.
Na quinta distinção vemos o diálogo buscar a suspensão temporária das crenças dos interlocutores, já no debate investimos, apaixonadamente, em nossas crenças. Na conversa em debate João investe todas suas forças e argumentos na defesa da “medicina normal” alopatia ao contrário do segundo João, bem mais flexível. No diálogo ele não abre mão de sua preferência pela alopatia, mas flexibiliza sua crença e sugere ir conhecer a homeopatia em que sua ex-mulher tanto confia.
O sexto marco comparativo assume que o diálogo amplia e tem potencial para mudar os pontos de vista de um participante, já o debate se contenta em reafirmar o ponto de vista do debatedor. Percebam que na conversa em diálogo Márcia e João ampliam seus diagnósticos para o cansaço do filo Pedro, que o inicio, seria apenas uma doença, mas no final se ramifica para não só doença como também muitas atividades e horas de sono perdidas na frente do computador, já no cenário de debate não há tal ampliação, pois de um lado Márcia defende a homeopatia e participação incompleta de João nas responsabilidades para com o filho e do outro lado João defende a alopatia e culpa Márcia por ter pouco tempo com o filho.
Partindo para a sétima distinção temos no diálogo uma escuta voltada para o entendimento, visando encontrar um acordo, já no debate a escuta se volta para localizar falhas e contrariar argumentos. Nossa Márcia voltada para o debate não escuta os pedidos de João para submeter o filho a um tratamento alopático, ela apenas busca falhas no comportamento prévio de seu interlocutor e o ataca “Então escuta bem o que eu vou dizer: Se quiser levar no outro médico leva, mas faz o serviço completo. Leva no médico compra o remédio e fica com a menina até ela ficar boa. Se for pra ser pai pela metade, leva ela na curandeira que eu confio e depois deixa ela aqui que eu cuido.” Por outro lado a Márcia voltada para o diálogo busca entender por que seu interlocutor deseja ir a dois médicos e faz questão da sua presença e o faz através de perguntas “Não tenho tempo para isso não, aonde você quer chegar João?”.
Em uma oitava diferenciação perceba que o diálogo busca acordos básicos e o debate busca por diferenças gritantes. No exemplo, Márcia e João têm preferências distintas em matéria de tratamento médico, mas o comportamento na situação de diálogo firma o acordo básico de irem juntos a consultas com médicos de diferentes linhas de tratamento, na situação de debate alopatia e homeopatia são tratamentos muito diferentes e a escolha de um necessariamente comprometeria a saúde do filho em comum de maneira fatal.
Rumo à nona distinção debate e diálogo tem diferentes objetivos. O primeiro busca a vitória, já o segundo busca uma área comum. Ao compararmos as colunas de conversas fica bem mais fácil apontar um vencedor na coluna do debate do que na coluna do diálogo. Quando falamos de uma área comum relembremos que João se afina com a alopatia e Márcia com a homeopatia, no entanto tem como área comum querer o melhor para o filho e nesse ânimo após as consultas com especialistas de sua confiança acordaram em escolher um profissional para acompanhar Pedro, estabelecendo outra área em comum.
Chegando a décima diferença, vemos a distinção quanto ao tratamento do interlocutor. Em diálogo há uma preocupação com a outra pessoa, com isso procura-se não alienar nem ofender o outro. Em debate o outro é um adversário não há foco em sentimentos ou relacionamento sendo comum menosprezar ou depreciar o outro. No exemplo apresentado a situação de diálogo não apresenta ofensas e Márcia se preocupa em colocar João a par dos comportamentos do filho em comum já João se preocupa em que Márcia participe da escolha de um médico de confiança. Na coluna ao lado as ofensas são comuns no debate tendo Márcia acusado o ex-cônjuge de ser dramático e de deixar tarefas incompletas, por sua vez João acusou a ex-mulher de limitar suas visitas e menosprezou o tratamento médico de confiança dessa.
O décimo primeiro traço distintivo tem como ponto nodal a qualidade da solução. O diálogo possibilita alcançar uma solução melhor do que qualquer uma das soluções originais, por sua vez o debate defende uma solução como a melhor e excluí as demais. Transpondo o conceito para o exemplo fica nítida a defesa da alopatia por João (debatedor) como a única solução capaz de curar o filho. No modelo do diálogo a solução inicial de Márcia de levar o filho a um homeopata e a solução inicial de João de levar o filho a um alopata, se elevam ao possibilitar uma troca de ideias e experiência em consultas diferentes para após tomar uma decisão conjunta.
Como décima segunda distinção temos: no debate uma perspectiva de que existe uma resposta certa e alguém a tem, no diálogo muitas pessoas tem partes da resposta e juntas chega-se a uma solução viável. Para as situações de conversa envolvendo João e Márcia, temos que na primeira, em que eles dialogam, a resposta virá da soma de avaliações do ex-casal, após consulta com alopata e com homeopata, já na segunda em que ex-marido e ex-mulher debatem ambos querem ter razão sobre o melhor tratamento para o filho em comum.
A décima terceira nuance aponta que o diálogo permanece aberto já o debate implica uma conclusão. Em detida analise das colunas de conversa efetivamente vemos que a questão da escolha do melhor tratamento para o Pedro fica em aberto no diálogo, sem maiores problemas, já na coluna do debate o desfecho é necessário e tendemos a interpretar que Márcia fez valer seus argumentos em defesa da homeopatia, sendo esta a conclusão inevitável.
Atingindo a penúltima marca diferencial, trabalha o diálogo como um processo de reflexão sobre seus posicionamentos, já o debate se volta para a crítica à posição do interlocutor. Perto de esgotar nosso exemplo, retomemos que Márcia reflete sobre sua posição de o cansaço de Pedro ser atribuído a uma doença, considerando o ponto de vista de João, já na coluna ao lado os debatedores criticam exaustivamente o tratamento médico predileto do ex-cônjuge, destaque-se que João também critica o diagnóstico de Márcia quanto ao cansaço do filho:
Márcia: Acho que o Pedrinho precisa ir ao médico.
João: Por quê?
Márcia: Ele anda abatido, cansado...
João: Frescura o garoto está bem.
Como última diferença vemos o diálogo como colaborativo, pois nele os participantes trabalham em conjunto para o entendimento comum, já no debate vigora a oposição, eis que os participantes assumem postura adversarial e tentam provar que os demais estão errados. Nesta transposição final para o exemplo fica bem claro que Márcia e João na primeira coluna são colaboradores na busca do melhor tratamento médico para Pedro, já na segunda coluna é cristalino que os ex-cônjuges são adversários, quase inimigos que parecem estar mais preocupados em mostrar que o outro está errado do que encontrar o melhor tratamento para o filho em comum.
Encerrando a perspectiva da comunicação para o conflito recapitulamos que essa ciência pauta seu estudo nas trocas de mensagens entre aquele que emite um código e aquele que recebe e decodifica. Nessa interlocução podemos falar em uma decodificação inclusiva e uma decodificação excludente, com isso surge dois manejos comunicacionais para gerir um conflito: um através do diálogo e outro através do debate. Feitas as diferenciações com as devidas pontes com a guarda de filho em comum percebe-se que o diálogo se volta para o manejo construtivo do conflito, já o debate se vincula a um manejo destrutivo do conflito, no entanto ambos se complementam para formar um melhor e mais completo modelo de estudo do nosso elefante.
2.4. Visão da Sociologia
Depois de usarmos a lente da administração, da filosofia e da comunicação, chegou a hora de experimentar a lupa da sociologia. Em um paralelo com a história do elefante e os cegos, passo a destrinchar a experiência do deficiente visual que se agarrou ao dorso do elefante.
A sociologia encara o ser humano como alguém que interage com outros seres humanos e se debruça sobre essa relação, que tecnicamente é chamada de sociação. Em certos momentos essa ciência olha com muito foco e estuda como indivíduos se relacionam com símbolos culturais como: a religião, a ciência, o poder, a educação e a família. Em outros momentos a sociologia amplia seu foco e estuda as relações de grupos de seres humanos, ora, como esses grupos se relacionam com seus membros, ora como esses grupos se relacionam com outros grupos.
Tecendo um paralelo com a guarda de filho em comum (Márcia, João e filho), a sociologia leva nosso olhar para duas direções; Com o foco mais restrito se vincula a estudos sobre como os pais de Pedrinho se relacionam com temas como a educação, o poder, a família entre outras, que se reflete em questões corriqueiras como a importância que o pai dá a uma educação formal boa, ou ao respeito que Márcia tem por seus pais ou chefia na relação de emprego. Com o foco mais amplo a sociologia se debruça sobre as relações de Márcia com alguns grupos como seu núcleo familiar ou seu grupo de trabalho. Ora tecendo considerações sobre como Márcia se relaciona com os demais membros desse grupo (pai, mãe, avô, avó etc), ora como Márcia e seu grupo familiar interage com outros grupos familiares, como o núcleo familiar de João por exemplo.
A lente do conflito, pelo viés sociológico, apresenta inúmeros caminhos, como se estivéssemos em uma encruzilhada com inúmeras estradas que nos levam a diferentes locais. Visando continuar a trilha do conflito no âmbito da guarda de filho em comum, peço licença ao leitor para traçar minha rota pelos ensinamentos de George Simmel, sobre o conflito.
Simmel, apesar de ser contemporâneo dos considerados pais da sociologia (Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber) não é considerado como um dos principais contribuintes para a consolidação da sociologia como um campo de conhecimento, no entanto em 1908, enquanto a sociologia se firmava como uma ciência, Simmel escreveu a obra sociologia (Soziologie) e dedicou um capítulo ao estudo do conflito.
No estudo do conflito esboçado por Simmel, que com a devida vênia chamarei de modelo sociológico, há um enfoque para o fenômeno da sociação (interação entre seres humanos). Para fins didáticos o autor simplifica as relações humanas como um emaranhado de relações harmoniosas e hostis. Assim o casal exemplo interage obedecendo a um conjunto não ordenado de relações, mas que pode ser sistematizado conforme quadro abaixo:
Márcia age e beneficia João |
João age e beneficia Márcia |
Márcia age se beneficiando, mas não prejudica João |
João age se beneficiando, mas não prejudica Márcia. |
Márcia age se beneficiando e prejudicando João |
João age se beneficiando e prejudicando Márcia. |
Nessa dinâmica de acontecimentos surgem movimentos de convergência e divergência entre os atores sociais, que no nosso laboratório se resumem a João e Márcia, que agora irão negociar o custeio do material escolar do filho Pedro e assim nos ajudarão a entender os ensinamentos do modelo sociológico.
A mistura de relações harmoniosas e hostis, todavia, apresenta um caso nos quais as séries sociológica e ética coincidem. Começa com a ação de A em benefício de B, desloca-se para o benefício do próprio A sem beneficiar B, mas também sem prejudica-lo, e finalmente torna-se uma ação egoísta de A à custa de B. Na medida em que tudo isso é repetido por B, embora dificilmente do mesmo modo e nas mesmas proporções, surgem as combinações inumeráveis de convergência e divergência nas relações humanas. (SIMMEL, 1983, p. 132)
Em um contesto em que Márcia beneficia João imaginemos o seguinte cenário. João informa estar passando por dificuldades financeiras e afirma ter necessidade de economizar o possível com o material escolar do filho. Por sua vez ao ir comprar o material escolar Márcia faz pesquisa e utiliza cupons de desconto economizando o possível.
Na situação apresentada a interação do ex-casal é harmoniosa e tende para uma aproximação social. Como questão de fundo o movimento é de convergência, pois Márcia e João caminham em um mesmo sentido rumo ao menor gasto com material escolar.
Em uma segunda situação visualizaremos Márcia com uma ação egoísta (se beneficiando e prejudicando). Novamente João afirma estar passando por dificuldades financeiras e compartilha a necessidade de economizar dentro do possível. Desta vez Márcia vai as compras e adquire o material escolar nos lugares mais caros, tendo como intuito prejudicar as finanças de João, que provavelmente se endividará para honrar os gastos do material escolar de seu filho.
Na segunda situação a interação entre os agentes sociais é hostil e tende para um afastamento social, já a questão de fundo é de divergência, pois Márcia e João caminham em direções opostas. Márcia rumo ao gasto sem ponderações e João rumo a necessária contingência com os gastos escolares de seu filho.
Nesse modelo sociológico de relações ora harmônicas, ora hostis, que desencadeiam convergência e divergência, o conflito se insere como um mecanismo para interferir nas divergências. Como considerações iniciais sobre o conflito, segundo Simmel, temos dois pontos: Primeiro o conflito é algo natural, inerente à sociedade e importante para sua manutenção e progresso, estando longe de ser um problema que se busca eliminar. Segundo, a interferência do conflito na relação social divergênte é imprevisível, pois pode tanto aproximar quanto afastar atores sociais.
É claro que provavelmente não existe unidade social onde correntes convergentes e divergentes não estão inseparavelmente entrelaçadas. [...] Assim como o universo precisa de “amor e ódio”, isto é, de forças de atração e de forças de repulsão, para que tenha uma forma qualquer, assim também a sociedade, para alcançar uma determinada configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis. (SIMMEL, 1983, p. 124)
Transpondo a construção teórica para episódio do material escolar e seus desdobramentos em laboratório, temos que: Primeiro a sociedade bem como o casal precisa de opiniões divergentes, sendo natural situação de conflito, como a do choque entre gasto excessivo e necessidade de economia. Segundo a tensão envolvendo o casal e a forma como eles irão manejar o episódio do material escolar da discórdia é imprevisível e contem potencial para aproximar e para afastar.
Avançando no modelo sociológico de conflito, temos uma situação envolvendo uma dada relação humana cujos agentes interagem de forma divergente de modo que um conflito se instaura. Depois que os atores experimentaram o conflito e a relação social também, surge deste processo algo novo, que será, segundo Simmel, uma síntese entre Unidade e Discórdia. Avançando também no episódio do material escolar, equivale a fazer com que João e Márcia experimentem o conflito por conta das diferentes perspectivas quanto ao cuidado na hora de escolher os melhores preços para adquirir o material escolar do filho em comum. Após experimentarem o conflito a relação do ex-casal se modificará, pois passará por uma espécie de filtro que conta com dois elementos de purificação (Unidade e Discórdia).
A Unidade possui duplo sentido, que para dar maior clareza a explanação faremos uso de uma metáfora da informática. Se visualizarmos o conceito de Unidade com o zoom 1.000 (mil) vamos vê-lo absurdamente de perto e trabalharemos unidade como consenso, como um acordo entre os atores sociais. Equivale a Márcia e João refletirem e assumirem o compromisso de que no futuro aquele que vai custear o material escolar será o mesmo que irá comprar os itens.
Mudando o zoom de 1.000 (mil) para 2 (dois), passamos a olhar o conceito de Unidade muito de longe, assim o seu sentido agora é a totalidade suprema de um determinado grupo social.
Mas também chamamos de “unidade” a síntese total do grupo de pessoas, de energias e de formas, isto é, a totalidade suprema daquele grupo, uma totalidade que abrange tanto as relações estritamente unitárias quanto as relações duais. Concebemos assim o grupo de fenômenos que julgamos “unitários” em termos de componentes funcionais considerados especificamente unitários: (SIMMEL, 1983, p. 125)
O sentido de Unidade na visão mais distante é uma abstração uma espécie de totalidade social. Agora a relação conflituosa, por conta de material escolar, é um pequeno ponto que une Márcia e João, porém ao redor destes existem inúmeras energias e formas que pressionam e formam uma espécie de cola social, como exemplo de formas e energias podemos citar: a) o núcleo familiar de João apoiando o acordo, mas enfatizando que o importante é o bem estar do filho e não questões financeiras; b) o grupo de trabalho de Márcia apoiando a obtenção de um acordo como algo positivo; e c) orientações religiosas compartilhadas pelo ex-casal que orientam a busca da paz. Se pudéssemos somar todas essas influências formaríamos a abstração denominada por Simmel de totalidade social, que é o conceito macro de Unidade.
Quando falamos de Discórdia, novamente temos um conceito de dupla significação o que nos permite utilizar a mesma metáfora de outrora. Com o zoom máximo, 1.000 (mil), observamos a discórdia como algo ruim destrutivo. João e Márcia gerando recíprocos prejuízos. João se endividando (prejuízo financeiro) e Márcia se inferiorizando como pessoa inconsequente, vingativa, que realizou gastos exorbitantes mesmo sabendo da situação financeira de seu ex-marido.
Em um distanciamento para o zoom mínimo, 2 (dois), os horizontes se alargam e o olhar do alto, mostra que algo negativo entre indivíduos, pode ser encarado como algo socialmente positivo.
Algo que é negativo e prejudicial entre indivíduos, se considerado isoladamente e visando uma direção particular, não tem necessariamente o mesmo efeito no relacionamento total desses indivíduos, pois surge um quadro muito diferente quando visualizamos o conflito associado a outras interações não afetadas por ele. Os elementos negativos e duais jogam um papel inteiramente positivo nesse quadro mais abrangente, apesar da destruição que podem causar em relações particulares. (SIMMEL, 1983, p. 125-126)
Novamente olhando para o conflito Márcia-João como um ponto podemos perceber seu impacto no todo social que se desdobra das seguintes formas; a) O material de maior valor fez com que o filho Pedro tivesse maior motivação na escola; b) João que era um pai ausente, em razão do episódio passou a monitorar gastos com o filho mais de perto e com isso se aproximou do filho e das decisões a seu respeito, tornando-se um pai bem mais participativo; c) Márcia e João por conta do episódio, procuraram um especialista em finanças e colocaram seus gastos em ordem; e d) O núcleo familiar de João que era mais afastado se aproximou quando soube do endividamento do filho e o apoiou emocionalmente e financeiramente com um empréstimo sem juros. Nesse passo em mais uma abstração, se pudéssemos somar todos os reflexos da discórdia, poderíamos afirmar que apesar de ele ser ruim para a relação do ex-casal ela é bem positiva para um todo social, fazendo com que a discórdia também atue como uma espécie de cola social.
Como conclusão temos algumas reflexões sobre a forma como a sociologia encara o conflito. Primeiro, unidade e discórdia, não são elementos excludentes, mas sim complementares, sendo certo que só é possível desmembrar os elementos do conflito vinculados a unidade e os elementos do conflito vinculados a discórdia em um laboratório social e nunca em uma situação real. Segundo o conflito atua como uma força integradora do grupo (cola social), e movimentos de unidade e discórdia são igualmente positivos para o coletivo, tendo papel fundamental para o desenvolvimento e amadurecimento das relações sociais.
2.5. Visão da Psicologia
Trilhando o caminho da historinha dos cegos e do elefante vamos deixar o relato do deficiente visual que descreveu o rabo do elefante e passamos ao relato do ceguinho que tateou a tromba do elefante, (algo parecido com uma serpente). A tromba do paquiderme se relacionará com a visão psicológica do conflito.
A psicologia como ciência se volta ora para o que acontece na alma humana, ora para o comportamento humano. Essa divisão apresenta distintos desdobramentos nas respectivas teorias do conflito.
A primeira teoria se volta para a alma se preocupando em vasculhar a mente humana, para tanto os modelos de conflito pautados nesta ciência se voltam para embates no plano mental. Em uma abstração, a psicologia tenta entrar nas mentes de João e Márcia e estudar as diversas ponderações e raciocínios que norteiam suas decisões quando negociam a convivência com o filho em comum por exemplo.
Em uma das vertentes da psicologia, a mente humana é desmembrada em três partes: o id, o ego e o superego. Comecemos pelo id, em uma simplificação o id seria uma pequena fera que habita em nossa mente.
O id é a instância pulsional do psiquismo, e seu conteúdo é totalmente inconsciente. Ele é o grande reservatório de impulsos e instintos. É irracional, ilógico e amoral. Consiste no conjunto de reações mais primitivas da personalidade humana, que compreende os esforços para conseguir satisfação biológica imediata e irrestrita e, para conseguir o que deseja, precisa fazer uma negociação com o ego. (TRINDADE, 2009, p.61, 62)
O ego por sua vez é uma espécie de negociador, ele fica entre os desejos do id e a realidade, em uma metáfora artística imaginemos um artista cheio de desejos e seu empresário. O artista deseja fazer uma obra de tamanho continental ou uma joia cravejada com muitos diamantes. O artista equivaleria ao id cheio de ideias e desejos o seu empresário seria o ego, que fará questionamentos ao artista do tipo: Será que essa obra precisa ser tão grande assim, não existe conhecimento científico para deixar de pé algo de proporções continentais. Quanto a joia, artista não há recurso financeiro para custear esses diamantes, seriam eles substituíveis por brilhantes, ou então será que não poderíamos fazer uma jóia bem pequena cravejada de diamantes, oque lhe atenderia Id?
O ego corresponde ao conjunto de reações que tenta conciliar os esforços e as demandas do id com as exigências da realidade, interna ou externa. Nesse aspecto, faz a mediação dos impulsos do id com o meio ambiente, permitindo ao sujeito olhar-se a si próprio. O ego apresenta uma função adaptativa e está presidido pelo princípio da realidade. (TRINDADE, 2009, p.61,62)
Como terceiro elemento da mente humana surge o superego. Esse elemento da alma humana equivale a um pequeno guardião da moral e dos bons costumes de uma sociedade, que também habita dentro de nossas cabeças. Retomando nossa brincadeira com o artista e o empresário agregaríamos um outro personagem que seria um crítico de arte responsável pela censura, esse além de dizer o que é bom, mal, certo errado, também se preocuparia com o cuidado e proteção do que seria aceitável na obra do artista e na conduta do empresário.
O superego é a expressão da interiorização das interdições e exigências da cultura e da moralidade, representada pelos pais. É quase totalmente inconsciente, possuindo uma pequena parte consciente. É nele que se inscreve a lei primária. A lei de todas as leis, que é interna e propícia a cada pessoa valorar o que é bom ou mau, certo ou errado [...]. O superego tem uma função essencial, que é a de cuidado e proteção, mostrando ao ego o que é moralmente inaceitável ou perigoso à integridade física. (TRINDADE, 2009, p.61,62)
Nessa vertente da mente humana a perspectiva psicológica do conflito se monta pelo constante embate entre os desejos do id e os obstáculos trazidos pelo ego, nessa disputa o superego ora se alia ao id ora se alia ao ego, transformando nossa mente em um eterno campo de batalha, permeado de contradições.
Reafirmando nosso compromisso de alinhar os conceitos com as dinâmicas de um casal em conflito por conta da guarda de filho em comum, vamos fazer uma excursão pela mente de Márcia e João e teremos como pano de fundo a negociação de convivência com o pai, em um período bem recente a saída de casa de João. O ex-marido que acabou de abandonar o antigo lar comum deseja buscar o pequeno Pedro na sexta de noite e deixa-lo no lar materno no domingo de tarde, pretende o pai levar o menino para a casa de praia dos avós para passar o fim de semana.
Iniciamos a viagem mental pela ex-mulher, imaginemos que o id de Márcia deseje matar o ex-marido, destruí-lo fazê-lo em pedacinhos ainda nutre raiva pelas últimas bricas e pelo recente abandono. Como o id é uma pequena besta que mora em nossa alma, ela não tem limites, apenas deseja instintivamente. Por outro lado o ego, esse pequeno negociador que habita em nosso ser, tenta conciliar interesses do id com a realidade e assim se pronuncia. Id não é possível matá-lo muito menos cortá-lo em pedacinhos, mas podemos não dar o que ele deseja, agindo assim podemos causar dor nele! Isso te atenderia Id? Agregamos a isso a voz do superego de Márcia, que se formou com base em seu núcleo familiar que sempre apoiou a ideia resumida pelo provérbio “ao que se faz ao que se paga” sendo a vingança uma prática estimulada, sendo assim, o superego estaria ao lado do ego e endossaria o pensamento no sentido de que um homem que deixa sua esposa deve sofrer, ao menos por algum tempo e sendo assim depois de id, ego e superego ponderarem Márcia assume uma postura de não permitir que Pedro passe o fim de semana com o pai.
Saltando agora para a mente de João, visualizemos um id feroz e inconsequente que deseje causar dor, tristeza e agonia a ex-mulher, que infernizou sua vida ao ponto de ele sair de casa. Como interventor o ego atua prontamente, segurando o id mostrando que não se pode agredir, nem causar dor física, mas podemos causar dor moral com ofensas, se formos provocados. Nesse passo o superego masculino do ex-marido foi formado em um ambiente machista onde a mulher deve ser servil ao homem, João sofreu grande influência de seus pais vendo no casal um homem que manda e uma mulher que obedece. O diálogo se inicia com o id, agressivo, mas controlado, porém ao ouvir um não quanto ao seu pedido de passar o fim de semana com o filho, id, ego e superego apoiam as agressões verbais.
Voltando a mente de Márcia, o id enlouquecido quer atacar, destruir, rasgar a carne de João com os dentes, mas o ego se segura como pode e para satisfazer o id o autoriza a retrucar os ataques verbais contando novamente com o apoio do superego e desse conflito interno resultam uma enxurrada de palavras de baixo calão concluídas pela frase. Você é um monstro vou te proibir de ver seu filho! E com isso a porta se bate no rosto de João.
Dentro da mente do ex-marido, as coisas ficam insustentáveis, o id que queria causar dor, tristeza e agonia, fica muito forte o ego tenta controlá-lo, mas o superego agora apoia o id, pois é intolerável uma insubordinação feminina desse nível. Feita a aritmética mental o id toma o controle e por sorte Márcia já está segura dentro de casa, pois João atacou com todas suas forças a porta do antigo lar e por sorte amigos impediram que algo pior acontecesse.
Uma segunda vertente da psicologia volta seus estudos, não para o que se passa na mente humana, mas sim para avaliar como um indivíduo se comporta. Esse ramo da psicologia trabalha com a ideia de que o ser humano responde a estímulos, que vem tanto do meio em que alguém vive como do condicionamento a que se submeteu ao longo da vida. Ressalvadas as críticas e a imensa simplificação do complexo modelo comportamental da psicologia este veio a dar origem a uma interessante abordagem do conflito.
A abordagem comportamental vinculada ao conflito apresenta um raciocínio cíclico baseado em estímulo e resposta, que geram um conjunto de ações e reações que se repetem indefinidamente. Para fins didáticos iniciamos o processo circular pela avaliação dos estímulos, tendo como exemplo o mesmo caso da negociação do fim de semana de convivência pai e filho.
Comecemos avaliando e exemplificando alguns fatores inconscientes, tais como crenças e atitudes diante do conflito. Essas informações serão extraídas da história de vida, do meio em que vivem e do condicionamento a que foram submetidos João e Márcia.
João foi moldado acreditando que não se leva desaforo pra casa, sendo comum, na sua casa, as agressões verbais e eventualmente a agressões física era usada para resolver conflitos, principalmente os envolvendo os inúmeros irmãos e os pais. A partir desse meio João desenvolveu crenças no sentido de que a resolução violenta de conflitos é aceitável e agressões físicas são atitudes toleradas em situação de conflito.
Márcia não apresenta valores muito diferentes dos de seu ex-marido, como informado outrora foi criada em um ambiente no qual o provérbio a que se faz a que se paga valia como lei, sendo comum ser castigada pelo pai com proibições e eventuais discussões com a mãe eram resolvidas com um tapa na boca. Nesse meio Márcia desenvolveu crenças de que o conflito se resolve com castigos e discussões podem ser encerradas com agressões físicas.
Percorridos um quarto do círculo, vamos fechar a metade da circunferência com o segundo passo do processo que corresponde ao momento em que João pede a Márcia para passar o fim de semana com o filho Pedro e recebe um sonoro não como resposta. Nesse ponto o ex-casal troca estímulos e se preparam para oferecer respostas.
A terça parte do círculo corresponde a resposta ao conflito. Dando seguimento ao percurso teremos um João e uma Márcia respondendo ao conflito com base em suas crenças, tanto que agiram de forma condicionada, exatamente como viram os conflitos sendo administrados em seus respectivos meios.
João foi agressivo ao ser contrariado e agiu como seu pai, com isso repetiu o modelo que normalizou depois de tanto ver sua família o praticando. Márcia, por sua vez, não foi paciente para continuar dialogando preferindo se esconder, talvez com receio de ser agredida, ou talvez por conta de seu inconsciente de tapas na boca, caso se prolongue uma discussão. Como síntese, tivemos duas respostas comportamentais bem violentas diante da situação de conflito, no entanto também percebemos uma repetição de modelos por conta do ex-casal.
Passando para a quarta parte do círculo temos o resultado, ou seja, as consequências do conflito. Remontando ao episódio narrado acima temos como resultado o distanciamento entre pai e mãe de Pedro, que trocaram agressões verbais, se desvalorizaram perante os vizinhos e por muito pouco João não agrediu fisicamente a ex-mulher. Outro resultado foi o aumento da resistência materna para permitir o encontro entre pai e filho. Como saldo geral, aparentemente, surgem muito mais consequências negativas que positivas.
Por fim, fechando o círculo do conflito, retornamos aos fatores inconscientes (crenças e atitudes), que são reforçadas pelo episódio, mostrando aos envolvidos no conflito que essa é a única forma de atuar diante do conflito.
Encerrando essa dupla visão da psicologia temos uma primeira versão voltada para a mente cuja intervenção no conflito implica em busca de autoconhecimento com boa gestão de id, ego e superego. Já na versão comportamental se forma um círculo do conflito e intervenções devem se voltar para romper o círculo, procurando mostrar aos envolvidos o seu comportamento repetitivo e convidá-los à fazer diferente e experimentar um ciclo do conflito a ser manejado de forma positiva.
2.6. Visão do Direito
Como última peça do nosso quebra-cabeça, iremos agregar as impressões do deficiente visual que se agarrou ao dorso do elefante, em analogia aquele que achou que o paquiderme era como uma grande montanha apresentará a visão do direito para o conflito.
O direito como ciência parte do pressuposto de que em determinado momento um grupo de homens positivou um conjunto de regramentos de convivência. O sistema jurídico volta seu olhar para a interpretação, atualização e aplicação deste conjunto de regras, dentro da lógica jurídica também foi desenvolvido um estudo do conflito e sua resolução. Para compreendermos a visão jurídica do conflito, precisaremos fazer algumas simplificações, para a qual já pedimos as devidas desculpas.
Em paralelo com a guarda de filho em comum vamos trabalhar dentro do seguinte desdobramento de fatos. Desde que João e Márcia negociaram de forma desastrosa a convivência por um fim de semana, o pai está tendo inúmeras dificuldades para conviver com o pequeno Pedro. Márcia se vale de inúmeros expedientes que vão desde o corte de comunicação por telefone e análogos meios virtuais até o abandono do lar nas datas em que o pai iria visitar. Passado algum tempo, mais desculpas vieram impedindo o pai de levar o filho para sair. Até que um dia o casal procurou saber como essa situação se resolveria, por uma perspectiva jurídica.
No mundo do direito, o conflito recebe um nome técnico: lide que e se define como “conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida” (CARNELUTTI, 2000, p.02) . Imagine a situação inicial na qual Márcia proibiu João de ver o filho Pedro. Nesse cenário temos como pretensão a vontade e o desejo do pai de ver e conviver com o filho, já como resistência temos a proibição da mãe, que desde o episódio colocou inúmeros obstáculos para a visitação entre pai e filho.
Perceba que o direito não se preocupa em estudar o conflito ou entender suas peculiaridades, essa postura se dá em razão da ciência jurídica ter um consolidado mecanismo de resolução de conflitos, que recebe o nome técnico de jurisdição.
A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial de realizar o Direito de modo imperativo e criativo, reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas concretamente deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo e com aptidão para tornar-se indiscutível. (DIDIER, 2011, p.89)
Falando através de uma metáfora, o direito administra seus conflitos colocando os envolvidos em uma espécie de teste, tal como uma seleção para obtenção de um emprego. No nosso exemplo o emprego pode ser substituído pela convivência com o filho Pedro.
Como figura principal desse teste temos: o empregador que é aquele que toma a decisão contratado ou dispensado, que no caso jurídico será substituído por: tem razão ou não tem razão. Essa figura é o terceiro imparcial, que na maior parte das vezes é o juiz de direito que ocupa esse papel.
Do outro lado da mesa estão Márcia e João, disputando uma vaga na empresa. Ambos desejam conviver com o filho Pedro, mas sozinhos não conseguem encontrar uma solução, portanto foram procurar um “emprego”. E nesse espírito o teste se inicia.
O exame é bem simples e consiste em provar para o futuro patrão que você deve ser contratado, em termos jurídicos o teste consiste em provar para o juiz que você tem razão, isso em termos técnicos significa afirmar que Márcia ou João devem ter o reconhecimento, efetivação e proteção de suas respectivas situações jurídicas concretamente deduzidas (DIDIER JÚNIOR, 2011, p.89).
Nessa fase do exame admissional serão realizadas as provas e todas as particularidades do conflito serão apresentadas ao terceiro imparcial. Uma vez que existe uma fase peculiar no procedimento de resolução de conflitos a ciência do direito, historicamente, não se preocupou em voltar sua pesquisa para o estudo do conflito.
Volvendo ao exemplo, Márcia e João poderão lançar mão de inúmeros recursos para provar que devem conviver com o filho Pedro. A ex-mulher pode trazer testemunhas para afirmar que ela é uma boa mãe. Fotos e vídeos da harmoniosa convivência com o filho também são bem vindas e por fim uma cartinha do filho afirmando o quanto ama a mãe e não quer se separar dela, formam o conjunto probatório. Do outro lado João pode fazer uso dos mesmos recursos.
Vale ressaltar que obedecidas todas as regras jurídicas é perfeitamente admissível nesse exame jogar lama no adversário, assim sendo João pode trazer testemunhas que afirmarão ser Márcia uma péssima mãe, vídeos em que Márcia faz o filho chorar terão boa aceitação, sem contar a cartinha do filho desenhando que prefere a morte a ficar com a mãe. Do outro lado, nada impede que Márcia faça uso do mesmo expediente, desde que obedecidas às regras jurídicas.
Por fim como última fase do exame de admissão o terceiro imparcial tomará uma decisão, que ao contrário do que pode parecer, não se limita a dar o emprego (convivência com o filho) a Márcia ou a João. Dentro da lógica do direito o juiz pode e normalmente se manifesta dividindo da melhor forma possível o tempo do menor entre pai e mãe, o que equivaleria a João e Márcia ganharem o emprego só que cada um trabalhando meio expediente.