A ausência de um diploma direcionado à defesa dos interesses do contribuinte, não com o fim de promover a evasão e sonegação fiscal, mas para defender os contribuintes que em muitas ocasiões são lesados pelo poder fiscal, faz com que alguns operadores do direito apliquem equivocadamente diplomas legais totalmente inadequados às relações tributárias – Código de Defesa do Consumidor – porém promulgado à sua esfera jurídica com o mesmo fim buscado pela instituição do Código Nacional de Defesa do Contribuinte – Equilíbrio nas relações contribuinte-fisco.
Decisão da 2ª Vara Cível da Comarca de Ijuí – RS
O poder de cobrar tributos, exercido pela Administração Tributária, em muitas situações é exercido com abuso. Os atributos inerentes aos atos administrativos os quais dentre eles destaca-se o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, Presunção de Legalidade, Autoexecutoriedade, acarreta na ação abusiva do administrador sobre o administrado, o qual se inclui a relação da Administração Tributária para com o Contribuinte.
Em sentença prolatada nos Embargos de Execução nº 62.935/2000, o Juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de Ijuí – RS decidiu que o contribuinte está para o Estado, assim como o consumidor está para o fornecedor, aplicando o Código de Defesa do Consumidor nas relações jurídico-tributárias:
O caso dos presentes embargos se trata de empresa familiar, voltada à comunidade e seus funcionários, que com o excesso de tributos viu-se obrigada a cada dia reduzir suas instalações, estando à beira de falir completamente. Assim estão inúmeras empresas por este Estado. A solução cabe ao próprio Estado-Fisco. Para dar uma hipótese de solução a esta questão grave de inadimplência tributária, minha tese é de que não se pode deixar de analisar a relação contribuinte/Estado-Fisco como uma relação de consumo, já que o contribuinte está para o Estado, assim como os consumidores estão para os fornecedores. O contribuinte é um consumidor daquilo que o Estado-Administração coloca à disposição para sua utilização.
Dessa forma, o Estado-Administração é um FORNECEDOR e o contribuinte é um CONSUMIDOR. Sendo o Estado-Fisco integrante do Estado-Administração, forçosamente o Estado-Fisco é um fornecedor. Assim, entendo estar caracterizada a relação de consumo, devendo incidir o Código de Defesa do Consumidor também nas relações dos contribuintes com o Estado, a fim de garantir a defesa dos interesses dos consumidores, todos eles contribuintes do Estado.
Assim sendo, iniciando com os juros moratórios, eles não devem ser superiores a 1% ao mês, não ultrapassando os 12% ao ano, consoante legislação extravagante. Com relação à multa, é flagrantemente abusiva e de excessiva onerosidade a sua permanência em 30%, devendo incidir a Lei nº 9298, de 02 AGO 1997, consoante definitiva Decisão do Superior Tribunal de Justiça, devendo ser fixada em 2% sobre o saldo devedor atualizado. Consoante a alogada capitalização mensal, entendo que ela está sendo praticada pelo Estado, devendo ser excluída, não se efetuando capitalização de juros, mas sim a incidência de juros simples. (Grifo nosso)
A Sentença transcrita foi prolatada no feito em que Sabo Magazine Ltda. ajuizou Embargos contra Execução Fiscal movida pelo Estado do Rio Grande do Sul que cobra da empresa valores relativos a ICMS não recolhido. O juiz entendeu que a multa tributária é abusiva, arbitrando-a de acordo com a previsão do Código de Defesa do Consumidor. Em sua tese, afirma haver uma relação de consumo entre o contribuinte e o Estado-Fisco. A interpretação infere que o contribuinte invoque o Código de Defesa do Consumidor, quando lesado pela Administração Tributária.
Equívoco do argumento judicial
A interpretação judicial na sentença transcrita foi no sentido de que a relação do contribuinte com Estado-Fisco é igual a relação de consumo, vez que o contribuinte está para o Estado, assim como os consumidores estão para os fornecedores. Porém o Magistrado está errado ao dizer que o contribuinte é consumidor de tudo que o Estado coloca à sua disposição. Não há que se comparar a relação tributária com a relação consumerista, pois a primeira, por ser de direito público, origina sua obrigação da Lei e a outra sendo uma relação de direito privado e decorrente da vontade entre as partes. As relações consumerista e tributárias se igualam apenas em um aspecto: ambas possuem uma das partes com caráter hipossuficiente, sendo oprimidos por abuso de direito ou de poder.
Contudo, a decisão judicial não pode prevalecer, por seu entendimento equivocado. A afirmação de que há relação de consumo entre contribuinte e Estado é inadequada. Tal afirmativa não merece prosperar, uma vez que a relação consumeirista nasce da vontade entre as partes. Sendo os tributos uma prestação compulsória decorrente da Lei, inexiste assim qualquer relação de consumo. Salvo exceções, ninguém paga tributos por vontade própria. Basta que o sujeito passivo incida em um fato gerador inerente a hipótese de incidência prevista em Lei para se tornar devedor de tributos. Assim o julgador parte de uma premissa inadequada, com o fim de melhorar as relações entre Estado e o contribuinte.
Cumpre destacar que o art. 3º do Código Tributário Nacional fornece o conceito de tributo:
Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
Ao doutrinar a respeito do conceito de tributo previsto no art. 3º do Código Tributário Nacional, ATALIBA (1997 p. 34 e 35) explica a diferença entre a obrigação convencional e a obrigação tributária:
O fulcro do discrímen está primeiramente no modo de nascimento da obrigação. Se se tratar de vínculo nascido da vontade das partes, estar-se-á diante de figura convencional (obligatio ex voluntate), mútuo, aluguel, compra e venda, etc. Isto permite discernir a obrigação tributária das obrigações convencionais. Se, por contrário, o vínculo obrigacional nascer independentemente da vontade das partes – ou até mesmo contra esta vontade – por força da lei, mediante a ocorrência de fato jurídico lícito, então estar-se-á diante de tributo, que se define como obrigação-jurídico legal, pecuniária, que não se constitui em sanção de ato ilícito, em favor de pessoa pública. Ter-se-á obrigação de indenização por dano, se o fato de que nascer a obrigação for ilícito.
Completando a ideia do jurista, no direito tributário a Lei é fonte imediata da obrigação, diferentemente de outros ramos do direito, como é o caso do direito do consumidor o qual a fonte imediata da obrigação é o contrato, estando a Lei nesta relação como fonte mediata. Assim nascendo a obrigação tributária diretamente da Lei, como fonte imediata, não há que se falar em aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor em relações do fisco para com o contribuinte, uma vez que a obrigação consumeirista nasce de um acordo de vontade entre as partes.
Ademais a Carta Magna, no art. 150, I e II[1], determina que a obrigação tributária nasça diretamente da Lei, não havendo assim, perante a Carta Maior, distinção entre contribuintes.
MACHADO (2009 p. 4) ao dizer que “não se admite, portanto, em nosso sistema jurídico, a utilização de vontade como ingrediente formador, ou capaz de alterar relação tributária” enfatiza esse entendimento.
Apesar de ser explicável, haja vista a ausência de um diploma que invista na defesa do contribuinte como um todo, a sentença judicial utilizar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor face ao abuso de poder do Estado, a relação jurídico-tributária não constitui relação de consumo. Deste modo não permite a utilização dos mecanismos de defesa do consumidor para se questionar a constitucionalidade de tributo. Assim tal aplicação do diploma do Consumidor às relações tributárias é inadequada.
Contudo, pela ausência de uma consolidação, em único diploma, dos direitos inerentes aos contribuintes em uma lei específica à sua defesa, surgem interpretações que buscam defender o contribuinte do poderio estatal.
A aplicação deste diploma é, portanto descabida, devido às diferenças essenciais entre as relações entre consumidor-fornecedor e contribuinte-Estado Fisco.
Conclusão
A solução para melhorar as relações entre os contribuintes e a Administração Tributária não está na aplicação ilusória do Código de Defesa do Consumidor, a qual o entendimento da jurisprudência brasileira é pela sua inaplicabilidade nas relações relativas aos contribuintes para com o fisco[2].
A solução está na aprovação do Código Nacional de Defesa do Contribuinte, que será diploma ideal para defender o contribuinte e equilibrar suas relações com a Administração Tributária das três esferas federativas: federal, estadual e municipal, com a qualificação de norma geral de direito tributário que regula as limitações constitucionais do poder tributar.
Por fim, nos termos do art. 109 do Código Tributário Nacional[3], os princípios gerais de direito privado são utilizados no Direito Tributário apenas para fins de pesquisa de definição de alcance de seus institutos, conceitos e normas. Todavia não atingem a definição dos efeitos tributários. Portanto é equivocada a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações jurídico tributárias, se não para os fins definidos no Código Tributário Nacional.
REFERÊNCIAS
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.
BRASIL. Código Tributário Nacional e Constituição Federal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2009;
_____. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelação Civil nº 1999.03.99.020510-6, SP, 06 de setembro de 2000;
_____. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Civil nº 1999.01.00.010312-5, BA, 19 de outubro de 1999;
_____. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Civil nº 1997.01.00.059454-2, MT, 03 de agosto de 1999;
_____. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 261367, RS, 1º de março de 2001;
_____. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 897088, SP, 8 de outubro de 2008;
JUIZ aplica Código do Consumidor em cobrança de impostos. Consultor Jurídico Disponível em <http://www.conjur.com.br> Acesso em 24 ago. 2009;
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 30 ed. revista. São Paulo: Malheiros, 2009;
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 2ª Vara Cível da Comarca de Ijuí. Embargos de Execução nº 62935/2000, Consultor Jurídico. Disponível em <http://www.conjur.com.br> Acesso em 10 ago. 2009;
Notas
[1] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
[2] PROCESSUAL CIVIL - JULGAMENTO ANTECIPADO - CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CARACTERIZADO - TRIBUTÁRIO - EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - MULTA - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - INAPLICABILIDADE - JUROS. - Regular o julgamento antecipado da lide, porquanto o embargante impugnou valores por ele mesmo confessados, nada justificando a produção de provas. - A inicial da execução fiscal deve estar instruída com a Certidão da Dívida Ativa, documento suficiente para comprovar o título executivo fiscal. - Inaplicável a Lei 9.288/96, pois refere-se especificamente às relações de consumo. - A pretendida limitação dos juros a 0,5% ao mês não encontra previsão legal. O crédito tributário não pago no vencimento é acrescido dos juros de mora, devidos no percentual mensal de 1% se a legislação ordinária não dispuser de modo diverso, "ex-vi'' do art. 161 do Código Tributário Nacional. (TRF3, 2000)
PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL - ILEGITIMIDADE ATIVA - INEXISTÊNCIA DE DIREITO COLETIVO - DIREITO INDIVIDUAL HOMOGÊNEO DISPONÍVEL - INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DO CONSUMIDOR AO DIREITO TRIBUTÁRIO. 1. A relação jurídico-tributária não constitui relação de consumo, de modo a permitir a utilização dos mecanismos de defesa do consumidor para se questionar a constitucionalidade de tributo, ao argumento de que se trata de direito individuais homogêneos. 2. Ainda que possível a ação civil pública para discussão de matéria tributária, não teria o Ministério Público legitimidade para figurar no pólo ativo da relação processual, já que se trataria de direito individual indisponível. 3. Criando o Direito Tributário obrigação essencialmente individual, não pode ele ser considerado direito coletivo, definido pela Lei 8.079/90 como aquele transindividual, de natureza indivisível, que tem como titular grupo, categoria ou classe de pessoas. Em conseqüência, também sob o enfoque do direito coletivo incabível a ação civil pública para a discussão, em juízo, de matéria tributária. 4. Por último, mesmo que se tratasse de direito coletivo, não teria ele conteúdo, social, indispensável para tomar legítima a atuação do Ministério Público, nos termos do art. 127 da Constituição. 5. Apelação e remessa providas. (TRF1, 1999)
TRIBUTÁRIO. AÇÃO DE DEPÓSITO. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. ENTREGA. MULTA DE 60% (ART. 61, IV, LEI 8.383/91). REDUÇÃO PARA 10% (CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR). DIRETOR FINANCEIRO. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. 1. É incabível a utilização do processo analógico, que tem como pressuposto a existência de lacuna na lei, para reduzir a multa de 60% (sessenta por cento) não-relevável, prevista no artigo 61, inciso IV, da Lei nº 8.383/91, pra 10%(dez por cento), com base na Lei nº 8.078/90, que "estabelece normas de proteção e defesa do consumidor". 2. Considera-se depositário infiel, passível de decretação de prisão civil, os diretores, administradores, gerentes ou empregados que movimentem recursos financeiros isolada ou conjuntamente da pessoa jurídica devedora de contribuições previdenciárias (Lei 8.866/94). 3. Provimento do recurso, tão-somente, com relação ao pedido de revogação da prisão de PEDRO HENRY NETO. 4. Recurso do INSS provido. Recurso da SANEMAT, parcialmente provido. (TRF1, 1999)
TRIBUTÁRIO - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - LEI Nº 9.296/96 - REDUÇÃO - MULTA - INAPLICAÇÃO EM VIRTUDE DA NORMA SE ESTENDER APENAS ÀS RELAÇÕES DE NATUREZA CONTRATUAL. - O preceito acrescentado ao artigo 52 do Código de Defesa do Consumidor, se estende, apenas, às relações de natureza contratual, vale dizer, às relações atinentes ao direito privado. Não alcança as multas tributárias. - Recurso não conhecido. (STJ, 2001)
TRIBUTÁRIO – PARCELAMENTO – DENÚNCIA ESPONTÂNEA - INOCORRÊNCIA - MULTA MORATÓRIA DEVIDA - OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA - INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO - INAPLICABILIDADE DO ART. 52, § 1º, DO CDC - AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO TIDO POR VIOLADO – DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO - SÚMULA 284/STF. 1. A Primeira Seção do STJ, ao julgar o REsp 284.189/SP em 17/06/2002, reviu seu posicionamento, concluindo pela aplicação da Súmula 208 do extinto TFR, por considerar que o parcelamento do débito não equivale a pagamento, o que afasta o benefício da denúncia espontânea. 2. Entendimento consentâneo com o teor do art. 155-A do CTN, com a redação dada pela LC 104/2001. 3. A obrigação tributária não constitui relação de consumo, de forma que inaplicável o art. 52, § 1º, do CDC. 4. A ausência de indicação do dispositivo legal tido por violado configura deficiência de fundamentação, que autoriza o não-conhecimento do recurso, nos termos da Súmula n. 284/STF. 5. Recurso especial não provido. (STJ, 2008).
[3] Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.