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A crise do ensino jurídico no Brasil e o Direito Alternativo

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01/12/2000 às 00:00
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Finalidades da Universidade

A universidade deve ter como objetivo alcançar, atingir alguns fins, concentrando esforços para alcançar esses fins da melhor forma possível. Definir quais sejam esses fins é o primeiro, o imediato objetivo da universidade.

José Carlos Moreira Alves, mencionando transcrição de Ortega Y Gasset sobre a missão da Universidade nos tempos modernos, expõe que ela visa a preencher três funções: a transmissão da cultura; o ensino das profissões; e a investigação científica e educação de novos homens de ciência. (11)

A universidade brasileira, no entanto (mais notadamente com relação aos cursos jurídicos), nunca chegou a ter a exclusividade de um ou outro destes fatores, sempre tendo como maior prevalência a transmissão de cultura jurídica, de teoria; realizando um escasso ensino prático (na maioria dos casos e ao longo da história; não nos referimos aqui às boas universidades atuais, que, em sua maioria, podemos constatatar isso com enorme satisfação, realizam uma grande movimentação no sentido de aplicação da teoria à prática, com a implantação de escritórios experimentais, juris simulados com intercâmbio entre algumas universidades, etc.); e, um tímido incentivo à investigação científica (que também está sendo objeto de providências pelas boas universidades, que incentivam a pesquisa, inclusive implantando cursos de especialização, mestrado e até doutorado).

O jurista José Carlos Moreira Alves, supra citado, salienta ser necessário que haja equilíbrio entre esses fins, nunca a preponderância de um ou de alguns. (12)

É óbvio que, ao longo da história, houveram alternâncias entre um e outro fator como preponderante na atividade principal da universidade. Atualmente, deve ser destacado que o papel principal da universidade deve ser a integração dos três fatores, não podendo colocar qualquer deles em plano inferior, sendo que, a integração desses três fatores, aliados à utilização de corretos métodos de ensino que propiciem a integral formação do aluno, realizará o objetivo da faculdade, formando por completo seus alunos.


A crise do ensino jurídico atual

Os alunos, nos cursos jurídicos, em sua grande maioria, trazem uma formação deficiente e uma visão também deficiente do que vão encontrar pela frente nas universidades. O aluno até então acostumado com as definições sintetizadas, ao chegar em um curso jurídico depara-se com infindáveis teorias, atividades que exigem exaustivas leituras. Isso provoca uma certa rejeição, um certo incômodo ao jovem universitário. (13)

Muitos pensam encontrar, na Faculdade de Direito, um curso prático, onde se aprenda a arte de ser advogado, juiz, promotor público ou delegado de polícia; outros têm pretensão ainda mais acanhada: querem só o diploma, visando a algum cargo público, ou ao simples bacharelismo; alguns, ainda, simplesmente encontram-se na faculdade para agradar aos pais ou para não ficar em casa, vendo a faculdade como um passeio.

Esse desinteresse pelo ensino, aliado ao despreparo de boa parte do corpo docente das faculdades, acaba por formar o quadro atual em nossas universidades jurídicas.

Quanto aos professores, vale a pena expor trabalho da Professora Maria de Lourdes Seraphico Peixoto da Silva, da Universidade Federal do Paraná, (autora do livro "Opção Metodológica para o ensino do Direito, Editora da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1980), em conferência proferida no XII Encontro das Faculdades de Direito, organizado pelo Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito,, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, centrando a deficiência do ensino jurídico na "Carência de capacitação de seus docentes", arrolou vinte e quatro itens, a saber:

"1. O professor carece de formação pedagógica, metodológica atualizada.

2. Mais da metade dos docentes jamais passaram por serviços de diagnósticos e treinamento ou fizeram cursos de metodologia de ensino superior.

3. Raros são os professores conscientes de sua profissão. A maioria encara o magistério como uma atividade a mais. Usando da expressão muitas vezes empregada na gíria, fazem do magistério "um Bico".

4. Desvalorização pelos próprios docentes, da atividade do ensino a tal nível que, constatamos essa realidade ao ouvir inúmeras vezes uma indagação como: "você só dá aula ou trabalha, também?". Diante de tal pergunta inconcebível, como resposta temos tendência a indagar o que se entende por trabalho.

5. Carência mais absoluta de um sistema articulado de valores e filosofias bem definidas e coerentes de educação.

6. Mentalidade absolutamente auto-suficiente dos professores que consideram não necessitar de qualquer apoio que não o de seu próprio saber jurídico, esquecendo-se de que para ensinar não é suficiente saber o conteúdo, há que estar dotado, pelo menos, de um mínimo de habilidades técnicas de ensino.

7. Desprezo mais absoluto por cursos e treinamento no uso de tecnologia específica que tenham validade imediata e concreta, quer dizer, que sejam relacionados diretamente com a função essencial do docente que é a instrução em sala de aula, que só se torna eficaz, na medida em que tende a desenvolver o raciocínio heurístico.

8. Refratabilidade em grau superlativo à informação, análise e possível adoção de toda e qualquer técnica que escape à retórica que habitualmente se entende como inerente e indispensável aos profissionais do direito.

9. Desconhecimento total das diferentes formas e critérios de avaliação e da necessidade de que esta esteja adequada, integralmente, aos objetivos gerais de cada disciplina e aos específicos de cada unidade, inclusive podendo e devendo variar de unidade para unidade.

10. Absoluto analfabetismo em relação à necessidade da formulação de objetivos para a eficiência e eficácia do processo ensino-aprendizagem, bem como em relação aos métodos que se pode utilizar na seleção dos conteúdos programáticos e na formulação desses objetivos.

11. Ausência de dedicação de várias horas à preparação remota ou próxima dos desempenhos docentes, em sala de aula.

12. Falta de verdadeira consciência profissional, uma vez que com a desculpa de que percebe pouco, o professor afirma que não pode se dedicar como gostaria ao magistério porque precisa sobreviver. É inequívoco que deveria ser melhor pago, mas consideramos que, se ainda sabendo que ganharia pouco, resolveu lecionar, então não pode escusar-se por este motivo, sob pena de carecer de consciência profissional.

13. Mentalidade arcaica de quem pensa que uma vez preparada uma aula, não mais se necessita rever. Note-se as já famosas fichas amareladas pelo tempo, tão comuns em nosso quotidiano e, tão conhecidas e tão contestadas pelos alunos, com toda a razão.

14. Sob alegação de deficiência das bibliotecas, os professores, facilmente, se apegam ao sistema de apostilas que, normalmente, pecam por falta de nível e por tratarem "do mínimo indispensável para a subsistência", atrelando o aluno, quando a função do professor seria a de despertar o gosto pela pesquisa.

15. Hábito, nada salutar, de fazer da aula um ditado ou cópia que infantiliza o aluno obstaculizando o desenvolvimento de seu raciocínio e impedindo qualquer formulação diversa da chamada "matéria" ou "ponto dado".

16. Mentalidade medíocre de quem identifica a missão do professor com o cumprimento do programa, ou transmissão de conhecimento, como um gravador, simplesmente a nível de informação.

17. Temor a ser considerado medíocre por não se utilizar da tradição verbalística e exageradamente retórica.

18. Ausência de esforço contínuo não por informar, mas por ter como objetivo principal: iniciar, desenvolver e aperfeiçoar a raciocínio jurídico.

19. Inexistência de interesse em formar e orientar os alunos para que sejam capazes de transformar o material memorizado em conceito compreendido.

20. Falta de conscientização de que nada se faz, em termos de aprendizagem, pelo exclusivo monólogo de quem ensina, porque só se dirige essencialmente à memória do aluno, e é sobremodo receptivo, não exercitando o raciocínio e impedindo a cooperação dos alunos, o que gera desinteresse.

21. A maior causa de uma avaliação deficiente reside no fato de que esta não é elaborada em atenção aos objetivos.

22. Os professores não fixam objetivos no momento de elaboração de suas provas, para cada questão, atendendo-se aos três critérios fundamentais de que fala Mager - Conduta final, padrão de rendimento e condição de desempenho.

23. A avaliação normalmente tende a apreciar o que o aluno foi capaz de reter a respeito de um tema e não como raciocina em relação ao tema, e, isto, porque o próprio professor não sabe formular seus objetivos, definindo o que interessa que o aluno saiba fazer, ao longo do processo do ensino/aprendizagem.

24. A partir do momento, em que o professor se conscientizar de que está fora da realidade e de que é preciso fixar objetivos e levar seus alunos a atingi-los, para ser professor, então, perceberá que há um sem número de entraves à realização dos objetivos - entraves colocados pelo próprio professor, e, então, sentirá a urgente necessidade de reformular as habilidades técnicas de ensino que emprega." (14)

Portanto, vemos que existem vários aspéctos da crise do ensino jurídico, o professor não está isento de culpa, ao contrário, tem sua parte, como brilhantemente demonstrou a nobre jurista acima citada.

Mas, a crise é, também, ética. É crise de moralidade (palavra de significado relativo, variável segundo culturas e subjetividades, mas que, em verdade, todos sabem o que é - mormente quando se sofre a conseqüência da falta de moralidade). Daí ter dito, recentemente, Miguel Reale, pela imprensa, que o que o Brasil necessita é um "choque de bom senso". Disse-o, lamentando ter chegado tanta corrupção ao Poder Judiciário.

A vida forense tem-nos reservado, ao lado de alegrias, amargas surpresas, estas diante da falta de preparo de certos profissionais. Antonio Maria Fernandes da Costa define com muita propriedade: Preparo que não consiste apenas em soma de informações sobre as leis, mas em tato para trabalhar com o direito alheio, com a necessária empatia; conhecimentos científicos e filosóficos, indissociáveis, para nós, do chamado direito-arte; boa vontade em servir à justiça, sem caprichos e personalismos, isto é, maturação bastante para não ser um bobalhão a brincar de autoridade; consciência do cumprimento do dever, inexpugnável em face de vantagens escusas que possam sorrir... (perdoem-nos aqueles a quem estas considerações soem óbvias ou piegas. Parecem-nos hoje, primazes, s.m.j.)." (15)

Com relação às faculdades de direito, continua o celebrado jurista:

"A Faculdade de Direito tem defeitos: a) genéricos, de todo o ensino brasileiro e b) específicos, dos cursos jurídicos. Os primeiros dependem de modificações genéricas no ensino colegial, com a urgente seleção e aprimoramento dos docentes; com incentivo (enfocaremos o que mais aproveita ao nosso Curso) da leitura habitual, do raciocínio, da memória, da crítica e da arte de escrever (certos livros paradigmas deveriam ser obrigatórios, sem embargo de deverem ser estimulados como lazer, falando o professor sobre o livro a ser lido com gosto, com persuasão, de modo a aguçar a curiosidade do aluno, em vez de sentenciar: "- vocês terão de ler tal livro para dia tal"- afronta à criança inteligente e inquieta dos dias atuais); com o ensino cuidadoso de Filosofia e de História; com um ensino de língua estrangeira que dotasse o aluno a falar e escrever fluentemente o idioma; com avaliações criteriosas e sadiamente exigentes, pois a avaliação frouxa acomoda, mima e faz o aluno mediano se auto-presumir excelente, em vez de se aprimorar." (16)

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Portanto, o ensino do direito está, como quase tudo neste país, em crise. Devemos, assim, reconhecendo esta situação, tentar descobrir fórmulas para resolver os problemas, estudar o perfil da Faculdade de Direito, seu currículo e seu método de ensino. Este trabalho apresenta algumas manifestações, trabalhos apresentados há um certo tempo, porém, pode ser observado que quase tudo permanece da mesma forma, ou seja, pouca coisa mudou, algum pouco está sendo realizado devido às imposições Ministeriais decorrentes da nova Lei de Direitrizes e Bases da Educação, mas, por iniciativa própria das universidades pouco está sendo realizado, motivo ese que torna o tema ainda atual. Devem ser incentivados os debates.


Conclusão

Podemos, assim, de tudo o que aqui foi comentado, concluir que a superação da crise do ensino jurídico no Brasil só será possível através de uma tripla mudança: de um lado é necessário produzir um novo conhecimento, que seja condinzente com a realidade sobre a qual e para a qual é contruído; de outro é preciso buscar na adequação das práticas jurídicas ao mundo concreto, no qual estas se desenvolvem, e ao ideal maior de efetivação da justiça social, um novo elemento de sustentação da própria prática; e, finalmente, é necessário um melhor preparo do professor, uma maior valorização da sua função, um aprimoramento em seus métodos de ensino e de relacionamento com os alunos. É necessário que a teoria seja realmente um corpo de conhecimentos capaz de permitir aos operadores jurídicos um trabalho consciente e concreto e que o professor seja a ponte entre o aluno e esse conhecimento de forma a aplicá-lo ao mundo real.

O direito é um instrumento que deve propiciar a concretização de justiça social, em sistemas de normas com particular intensidade coercitiva. No universo jurídico, entretanto, uma dialética se forma, entre as invocações de justiça e as manifestações de iniquidade, para a síntese superadora das contradições. Mas a consumação do projeto, como o de um ensino certo, só pode ocorrer, como direito justo e homogeneizado, numa sociedade justa e sem oposição de dominantes e dominados.

Um dos institutos apresentado como caminho para uma possível solução, o direito alternativo, no entanto, deve ser objeto de cautela, pois, sua deformação, seu indevido uso, pode conceder ao julgador poderes ilimitados para julgar de acordo com sua vontade, sua noção de justiça divorciada da lei. Trata-se, então, de uma concessão de poderes que pode ser perigosa, devendo ser limitada e fiscalizada pelas instâncias superiores para que não se conceda uma faculdade temerária, ditatorial ao julgador que, com poderes para julgar acima da lei, pode acabar ele, com seu poder alternativo, sendo o novo problema a ser enfrentado no futuro.

Direito alternativo, portanto, dentro dos seus limites, é uma solução viável para o combate à estagnação da ciência jurídica atual, mas, outros elementos devem surgir, outras formas de resolução desse problema devem associar-se ao direito alternativo e, somando-se a ele, proporcionar uma evidente melhoria no ensino jurídico brasileiro.

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Sobre o autor
José Arnaldo Vitagliano

Advogado. Doutorando em Direito Educacional pela UNINOVE - São Paulo. Mestre em Constituição e Processo pela UNAERP - Ribeirão Preto. Especialista em Direito pela ITE - Bauru. Especialista em Docência do Ensino Universitário pela UNINOVE - São Paulo. Licenciado em Estudos Sociais e História pela UNIFAC - Botucatu. Professor de Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Processual Civil e Prática Civil. Autor de dois livros pela Editora Juruá, Curitiba: Coisa julgada e ação anulatória (3ª Edição) e Instrumentos processuais de garantia (2ª Edição).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VITAGLIANO, José Arnaldo. A crise do ensino jurídico no Brasil e o Direito Alternativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Artigo desenvolvido a partir de pesquisa realizada pelo autor para painel sobre "O Ensino Jurídico no Contexto Geral da Sociedade Brasileira", apresentado no I Congresso de Iniciação Científica e Pesquisa da Universidade de Ribeirão Preto, em 9 de novembro de 2000

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