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Danos morais e direitos da personalidade

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31/10/2003 às 00:00
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A interação entre danos morais e direitos da personalidade é tão estreita que se deve indagar da possibilidade da existência daqueles fora do âmbito destes. Ambos obtiveram reconhecimento expresso e conjunto na Constituição de 1988.

Sumário: 1. A interação necessária; 2. Direitos da personalidade e danos morais na escala da repersonalização: 3. Características essenciais dos direitos da personalidade; 4. Dimensões constitucionais e civis dos direitos da personalidade; 5. Tipicidade dos direitos da personalidade e a cláusula geral da dignidade humana; 6. Tipos gerais de direitos da personalidade; 7. Tipos constitucionais dos direitos da personalidade e dos correspondentes danos morais; 8. Direitos da personalidade da pessoa jurídica; 9. Conclusão: inexistência de danos morais fora dos direitos da personalidade.


"Com a teoria dos direitos de personalidade, começou, para o mundo, nova manhã do direito. Alcança-se um dos cimos da dimensão jurídica". Pontes de Miranda 1


1. A interação necessária

A interação entre danos morais e direitos da personalidade é tão estreita que se deve indagar da possibilidade da existência daqueles fora do âmbito destes. Ambos sofreram a resistência de grande parte da doutrina em considerá-los objetos autônomos do direito. Ambos obtiveram reconhecimento expresso na Constituição brasileira de 1988, que os tratou em conjunto, principalmente no inciso X do artigo 5, que assim dispõe:

"X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;"

Essa interação não é ocasional, mas necessária, como passarei a demonstrar, remetendo para o campo de estudos do direito civil constitucional, que se densifica no Brasil.

A inserção constitucional dos direitos da personalidade e dos danos morais consagra a evolução pela qual ambos os institutos jurídicos têm passado. Os direitos da personalidade, por serem não patrimoniais, encontram excelente campo de aplicação nos danos morais, que têm a mesma natureza não patrimonial. Ambos têm por objeto bens integrantes da interioridade da pessoa, que não dependem da relação com os essenciais à realização da pessoa, ou seja, aquilo que é inato à pessoa e deve ser tutelado pelo direito.

Os direitos da personalidade, nas vicissitudes por que passaram, sempre esbarraram na dificuldade de se encontrar um mecanismo viável de tutela jurídica, quando da ocorrência da lesão. Ante os fundamentos patrimonialistas que determinaram a concepção do direito subjetivo, nos dois últimos séculos, os direitos de personalidade restaram alheios à dogmática civilística. A recepção dos danos morais foi o elo que faltava, pois constituem a sanção adequada ao descumprimento do dever absoluto de abstenção.

Do mesmo modo, os danos morais se ressentiam de parâmetros materiais seguros, para sua aplicação, propiciando a crítica mais dura que sempre receberam de serem deixados ao arbítrio judicial e à verificação de um fator psicológico de aferição problemática: a dor moral. A jurisprudência dos tribunais, para obviar a dificuldade, vem delineando situações de autêntica inversão do ônus da prova, na medida em que estabelece presunções que a dispensam, como tem decidido o STJ no caso da perda de um filho (direito à integridade psíquica) ou da deformidade física (direito à integridade física) (R. Esp. nº 50.481-1-RJ) e no caso de inscrição irregular de inadimplentes do SPC (R. Esp. Nº 165.727-DF). Em outro julgado, o mesmo Tribunal (R. Esp. n.º 17.073-0-MG) entendeu ser desnecessária a demonstração de que a perda de um membro inferior (direito à integridade física e à integridade psíquica) acarreta graves sofrimentos, além de eventuais prejuízos econômicos; essa conseqüência seria da natureza das coisas, de ciência comum. De modo mais amplo, os direitos de personalidade oferecem um conjunto de situações definidas pelo sistema jurídico, inatas à pessoa, cuja lesão faz incidir diretamente a pretensão aos danos morais, de modo objetivo e controlável, sem qualquer necessidade de recurso à existência da dor ou do prejuízo. A responsabilidade opera-se pelo simples fato da violação (damnu in re ipsa) ; assim, verificada a lesão a direito da personalidade, surge a necessidade de reparação do dano moral, não sendo necessária a prova do prejuízo, bastando o nexo de causalidade. Por exemplo, a instituição financeira que promove a indevida inscrição de devedor em bancos de dados responde pela reparação do dano moral que decorre dessa inscrição; basta a demonstração da inscrição irregular.

Portanto, se se admitir que não há incidência de danos morais além das hipóteses de direitos da personalidade, então o juízo de eqüidade, conferido ao juiz, ater-se-á ao quantum da indenização compensatória.


2. Direitos da personalidade e danos morais na escala da repersonalização

Uma das mais promissoras tendências nos estudos de direito civil aponta para a necessidade em ter a pessoa como fundamento das relações civis, perdendo o patrimônio a primazia que sempre desfrutou nas grandes codificações. Assim, o patrimônio, ou os bens econômicos, assumem o papel de elemento complementar dos suportes fácticos previstos nas normas jurídicas. Nesse sentido, Pontes de Miranda ressaltou que no suporte fáctico de qualquer fato jurídico, de que surge direito, há, necessariamente, alguma pessoa, como elemento do suporte 2. Com efeito, até os fatos naturais somente interessam ao direito se há uma pessoa por eles afetada.

Como já tive oportunidade de dizer, alhures 3, a repersonalização não se confunde com um vago retorno ao individualismo jurídico do século dezenove e de boa parte do século vinte, que tinha, como valor necessário da realização da pessoa, a propriedade, em torno da qual gravitavam os demais interesses privados, juridicamente tuteláveis. A pessoa deve ser encarada em toda sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato polo de relação jurídica, ou de apenas sujeito de direito. Nos direitos da personalidade a teoria da repersonalização atinge seu ponto máximo, pois como afirmou San Tiago Dantas 4, não interessam como capacidade de direitos e obrigações mas como conjunto de atributos inerentes à condição humana.

O maior jurista brasileiro do século dezenove, Teixeira de Freitas 5, repeliu a idéia de direitos de personalidade, justamente porque não poderiam ser traduzidos em valores pecuniários. O espírito da época não podia admitir que o direito pudesse ter por objeto valores ou bens não patrimoniais, e que a tutela da pessoa, em si, fosse bastante.

A Constituição de 1988 é um marco importante da concepção repersonalizante do direito, inclusive por reconhecer expressamente a tutela jurídica dos direitos de personalidade e dos danos morais, pois ambos os institutos voltam-se a tutelar objetos que são exclusivamente interiores à personalidade, sem condicioná-los à expressão econômica.

A indenização compensatória que resulta da configuração dos danos morais não deve levar ao entendimento de ser a violação dos direitos da personalidade o objeto exclusivo da tutela jurídica, pois esta dá-se, primacialmente, no exercício cotidiano desses direitos. Tem-se deplorado 6 a excessiva preocupação dos juristas com os "momentos patológicos" da proteção da personalidade, resultantes em danos morais, em detrimento de seu exercício, o que revela resíduo da tradição patrimonialista.


3. Características essenciais dos direitos da personalidade

A natureza não patrimonial dos direitos da personalidade e a circunstância de serem inatos e essenciais à realização da pessoa resultam em características que os singularizam, a saber: intransmissibilidade, indisponibilidade, irrenunciabilidade, inexpropriabilidade, imprescritibilidade e vitaliciedade. O novo Código Civil brasileiro refere à intransmissibilidade, à irrenunciabilidade e à impossibilidade de limitação voluntária, que pode ser entendida como indisponibilidade, pois a limitação apenas pode ocorrer por ato de disposição.

A titularidade dos direitos da personalidade é única e exclusiva, não podendo ser transferida para terceiros, herdeiros ou sucessores. Por não serem objetos externos à pessoa, não podem ser disponíveis, inclusive quanto ao exercício deles, ainda que gratuito. O Poder Público não pode desapropriar qualquer direito da personalidade, porque ele não pode ser domínio público ou coletivo. A pretensão ou exigência para o cumprimento do dever e da obrigação de abstenção ou de fazer, como na hipótese do direito de resposta, ou da indenização compensatória por dano moral, jamais prescreve. Os direitos da personalidade extinguem-se com a pessoa; pode haver a transeficácia deles, post mortem, de modo a que a defesa seja atribuída a familiares, como no caso da lesão à honra do morto.


4. Dimensões constitucionais e civis dos direitos da personalidade

Os direitos da personalidade são pluridiscilinares. Não se pode dizer, no estágio atual, que eles situam-se no direito civil ou no direito constitucional, ou na filosofia do direito, com exclusividade. Sua inserção na Constituição deu-lhes mais visibilidade, mas não os subsumiu inteiramente nos direitos fundamentais. Do mesmo modo, a destinação de capítulo próprio do novo Código Civil brasileiro, intitulado "Dos Direitos da Personalidade", não os fazem apenas matéria de direito civil. O estudo unitário da matéria, em suas dimensões constitucionais e civis, tem sido melhor sistematizado no direito civil constitucional, apto a harmonizá-las de modo integrado.

Pontes de Miranda, no seu peculiar modo de analisar o fenômeno, diz que os direitos da personalidade são "ubícuos", pois "não se pode dizer que nasce no direito civil, e daí se exporta aos outros ramos do sistema jurídico, aos outros sistemas jurídicos e ao sistema jurídico supra-estatal; nasce, simultaneamente, em todos" 7.

A pluridisciplinaridade permite rica abordagem da matéria, a depender do ângulo da análise. Na perspetiva do direito constitucional são espécies do gênero direitos fundamentais e assim são tratados pelos publicistas. Na perspectiva do direito civil, constituem o conjunto de direitos inatos da pessoa, notadamente da pessoa humana, que prevalecem sobre todos os demais direitos subjetivos privados.

Os direitos fundamentais são atualmente concebidos como os direitos humanos positivados nas Constituições, explícita ou implicitamente. Não apenas os direitos de liberdade, de primeira geração, mas todos os que foram agregados como imprescindíveis à realização da dignidade humana. Os direitos fundamentais costumam ser classificados em gerações, na medida em que historicamente foram ocorrendo. Norberto Bobbio, por exemplo, entende ser possível identificar quatro gerações, nos dois últimos séculos de experiências e vicissitudes, no mundo ocidental: os direitos de liberdade, os direitos políticos, os direitos sociais e econômicos e a nova geração de direitos, relativos "à integridade do próprio patrimônio genético, que vai muito além do tradicional direito à integridade física". 8 As gerações não substituíram as antecedentes, mas se conjugaram em ciclos de expansão. Desse modo, perpassam as ordens constitucionais.

Os direitos da personalidade não se confundem com todos os direitos fundamentais, inclusive com os de primeira geração, máxime os que configuram garantias aos indivíduos em face do Estado, pois são externos à pessoa; não são inatos. Do mesmo modo, o caráter de exterioridade está presente nos direitos fundamentais de segunda e de terceira gerações. Todavia, os direitos de quarta geração, referidos por Bobbio, apresentam pertinência com os direitos da personalidade, pois a integridade genética é direito inato à pessoa humana, não podendo ser substancialmente modificada.

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Na perspectiva do direito civil constitucional, as normas constitucionais, sejam elas princípios ou regras, são hierarquicamente superiores, é dizer: a) as normas de direito civil não podem ser com elas incompatíveis, sob pena de inconstitucionalidade; b) as normas constitucionais determinam o conteúdo das normas de direito civil, no plano da interpretação. Assim, devem ser extraídos da Constituição os fundamentos de qualquer análise.


5. Tipicidade dos direitos da personalidade e a cláusula geral da dignidade humana

Na doutrina, discute-se a existência de um direito geral da personalidade a que se remeteriam todos os tipos previstos ou não no sistema jurídico. Argumenta-se com a impossibilidade de previsão de todas as hipóteses de direitos inatos, o que poderia levar à recusa de tutela jurídica a situações atípicas. Pietro Perlingieri, por exemplo, enxerga no artigo 2º da Constituição da Itália, referido aos "direitos invioláveis do homem", a cláusula geral de tutela da personalidade, não podendo o juiz negá-la a quem peça garantias sobre um aspecto de sua existência que não tenha previsão específica 9.

Essa questão tem a ver com a natureza aberta ou fechada da tipicidade dos direitos da personalidade. A doutrina tradicional, quando chega a admiti-los, prefere contê-los nos tipos legais previstos; nada além deles. Essa orientação restritiva ainda decorre da concepção patrimonialista hegemônica das relações civis, preocupada com o crescimento de pretensões de tutela à pessoa, sem fundamento econômico.

Perfilho a orientação, que me parece majoritária 10, da tipicidade aberta, ou seja, os tipos previstos na Constituição e na legislação civil são apenas enunciativos, não esgotando as situações suscetíveis de tutela jurídica à personalidade. O tipo, conquanto menos abstrato que o conceito, é dotado de certa abstração, pois se encontra em plano menos concreto que os fatos da vida. Os fatos concretos, que ocorrem na vida, para serem enquadrados em determinado tipo, necessitam de reconhecimento social, de uma certa tipicidade social. Desse modo, são apreensíveis pelo intérprete, reduzindo-se o juízo de valor subjetivo 11.

A tipicidade aberta não é incompatível com uma cláusula geral de tutela, que, ao lado da tipicidade social reconhecida, estabelece os limites mais amplos da consideração dos tipos. Significa dizer que são tipos de direitos da personalidade:

  • a) os tipos previstos na Constituição e na legislação civil;

  • b) os tipos reconhecidos socialmente e conformes com a cláusula geral.

A Constituição brasileira, do mesmo modo que a italiana, prevê a cláusula geral de tutela da personalidade que pode ser encontrada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Dignidade é tudo aquilo que não tem preço, segundo conhecida e sempre atual formulação de Immanuel Kant. Kant 12 procurou distinguir aquilo que tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, do que é dotado de dignidade, a saber, do que é inestimável, do que indisponível, do que não pode ser objeto de troca. Diz ele:

"No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está cima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade."

Os direitos à vida, à honra, à integridade física, à integridade psíquica, à privacidade, dentre outros, são essencialmente tais pois, sem eles, não se concretiza a dignidade humana. A cada pessoa não é conferido o poder de dispô-los, sob pena de reduzir sua condição humana; todas as demais pessoas devem abster-se de violá-los.


6. Tipos gerais de direitos da personalidade

Aceita a tipicidade aberta, ajustada à cláusula geral da dignidade humana, podem ser destacados os tipos mais gerais de direitos da personalidade, consolidados nos sistemas jurídicos dos povos e no sistema jurídico brasileiro, máxime em nossa Constituição, como se analisará no item seguinte.

O recurso à cláusula geral ou ao princípio fundamental dispensa a identificação dos direitos da personalidade em planos suprajurídicos, principalmente em argumentos jusnaturalistas ou políticos. A história dos direitos da personalidade se confunde com a história dos direitos fundamentais, radicada no iluminismo, nas declarações de direitos humanos, enfim, na progressiva emancipação humana para afirmar sua dignidade. No estádio atual, contudo, tanto os direitos fundamentais quanto os direitos da personalidade estão firmemente assentados em sistemas jurídicos positivos, como o brasileiro, e nestes devem ser localizados.

Como acima se disse, a especificidade dos direitos da personalidade reside na sua natureza de direitos inatos à pessoa, sem os quais ela não se revela inteiramente. Entretanto, como adverte Adriano de Cupis 13, não se pode dar à expressão o sentido de direito pertencente à natureza humana, como reação ao poder estatal.

Os direitos da personalidade são direitos subjetivos, sem a restrição histórica que estes tiveram, de exprimirem e perseguirem valores econômicos, segundo o paradigma do direito de propriedade. São direitos subjetivos não patrimoniais, no sentido de estarem previstos e tutelados pelo direito objetivo. Assim, todos os direitos subjetivos que não tenham objeto econômico e sejam inatos e essenciais à realização da pessoa são direitos da personalidade.

Feitas essas considerações indispensáveis, a investigação do sistema jurídico brasileiro (doutrina, legislação e jurisprudência dos tribunais) conduz à identificação de direitos da personalidade típicos, comuns a de outros sistemas jurídicos, como se destacará a seguir. Advirta-se que dificilmente pode-se isolar qualquer dos direitos da personalidade, pois cada situação de fato poderá configurar lesão a um conjunto deles. A lesão ao direito à imagem (retrato, efígie) redunda, freqüentemente, em lesão à honra, à vida privada e à intimidade. O juiz deverá levar em conta esse fato quando fixar a indenização compensatória.

a) direito à vida

Quem nasce com vida tem direito a ela. Esse direito é inato, mas também é um dever imposto à própria pessoa, que não pode dele dispor. Os sistemas jurídicos, de modo geral, negam o direito ao suicídio, porque a vida é indisponível.

O direito à vida, por ser como os demais direitos da personalidade irrenunciável, é incompatível com o consentimento a ato contra a vida. O direito à vida não inclui o direito à morte, no sistema jurídico brasileiro. A punição, no campo penal, a quem auxilia o suicídio é decorrência da tutela ilimitada ao direito à vida. Entrementes, a Constiuição brasileira admite uma única limitação, relativa à pena de morte em caso de guerra declarada ( art. 5º, XLVII, "a").

b) direito geral à liberdade

O direito geral à liberdade é o direito de ser livre, desde o nascimento até à morte, o direito de não estar subjugado a outrem, o direito de ir e vir, salvo a restrição em virtude do cometimento de crime. Na história da humanidade, é direito relativamente recente, pois o vínculo à escravidão, à servidão, a estamentos, a corporações de ofício, a posições sociais em virtude do nascimento e equivalentes marcaram a trajetória de todos os povos. A privação ou a restrição indevida da liberdade dá ensejo à indenização compensatória por danos morais.

Não se confunde com a liberdade econômica, que fundamenta a livre iniciativa (art.1º, IV, e art. 170. da Constituição) e a liberdade contratual, porque esses princípios não integram os direitos da personalidade. Assim como a liberdade política, que se dá em face do Estado (liberdade de associação, liberdade de expressão, liberdade de culto, liberdade de pensamento, liberdade de trabalho). São direitos fundamentais, porém exteriores (não inatos) à pessoa.

A prisão, embora prive ou restrinja o direito à liberdade, não o extingue, pois a Constituição brasileira não admite a prisão perpétua (art. 5º, XLVII, "b") nem o desrespeito à integridade física e moral do presidiário (art. 5º, XLIX). Por outro lado, ninguém poderá ser privado da liberdade sem o devido processo legal (art. 5º, LIV), que busca impedir o abuso e o arbítrio e assegurar sua tutela.

c) direito à integridade física e psíquica

O direito à integridade física tem por objeto a preservação da intocabilidade do corpo físico e mental da pessoa humana. Não se admite a agressão física e psicológica, nem se permite a mutilação do próprio corpo, salvo o que é renovável, como se dá com o corte dos cabelos e das unhas e a doação de sangue, ou de transplante de órgãos duplos ou de partes de órgãos, sem prejuízo das funções vitais. A proteção estende-se ao corpo morto, pois o transplante, ainda que para fins altruísticos, haverá de ser consentido.

A integridade psíquica é tida por Pontes de Miranda 14 como direito autônomo da personalidade. Contudo, não se justifica essa distinção porque a integridade física e mental é indissociável. O avanço do conhecimento humano pode levar a práticas invasivas da integridade psíquica, como ocorre com a internação não consentida para tratamento de insanidade mental ou a introdução de medicamentos que afetam o comportamento da pessoa. Os tribunais têm enfrentado situações desse jaez, como no RHC nº 64.387-6-SP, julgado pelo STF, relativo à internação de paciente em hospital psiquiátrico, contra sua vontade, mediante consenso da família e orientação médica, de onde somente veio a sair após a concessão do habeas corpus. O novo Código Civil brasileiro prevê que ninguém pode ser constrangido, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. A indenização compensatória por danos morais, nesses casos, independe de prova, bastando a falta de consentimento do paciente.

Apenas motivos comprovados de periculosidade justificam a internação coativa de pacientes com deficiências mentais. Como diz Perlingieri 15, a história da loucura é, freqüentemente, a história dos livres pensadores, dos indivíduos que não são bem vistos pela sociedade, destinados a ficarem excluídos ou conformados ao modelo das maiorias.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que a submissão compulsória da pessoa a exame de DNA, com utilização de seu material genético, inclusive os renováveis, para fins de atribuição de paternidade biológica, viola o direito da personalidade à integridade física e à intimidade (HC nº 71.373-RS). Tratava-se de ação de investigação de paternidade, tendo o juiz determinado que o réu fosse conduzido ao laboratório "debaixo de varas", para coleta do material indispensável à feitura do exame de DNA.

Decorrente do direito da personalidade à integridade física é a legislação sobre transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, que procura regulamentar a intervenção externa no corpo da pessoa e sua disposição post mortem (Lei nº 9.434, de 1997).

d) Direito à privacidade

Sob esse rótulo abrangente, cabem os direitos da personalidade que resguardam de interferências externas os fatos da intimidade e da reserva da pessoa, que não devem ser levados ao espaço público. Incluem-se os direitos à intimidade, à vida privada, ao sigilo e à imagem. Como diz o Código Civil português, a extensão da privacidade (ou reserva) é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas.

O direito à intimidade diz respeito a fatos, situações e acontecimentos que a pessoa deseja ver sob seu domínio exclusivo, sem compartilhar com qualquer outra. É a parte interior da história de vida de cada um, que o singulariza. Estão cobertos pelo manto tutelar da intimidade os dados e documentos cuja revelação possa trazer constrangimento e prejuízos à reputação da pessoa, quer estejam na moradia, no automóvel, no clube, nos arquivos pessoais, na bagagem, no computador, no ambiente do trabalho.

O direito à vida privada diz respeito ao ambiente familiar e cuja lesão resvala nos outros membros do grupo. Diz o inciso XI do artigo 5º da Constituição que a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em flagrante delito ou para prestar socorro ou por determinação judicial. Com o avanço da tecnologia da informação, a vida privada encontra-se muito vulnerável à violação.

O direito ao sigilo protege o conteúdo das correspondências e das comunicações. A autorização judicial para interceptação telefônica, para fins de prova em processo criminal, e apenas nessa hipótese, é problemática, pois quase sempre viola a intimidade da pessoa, em relação a comunicações pessoais ouvidas e gravadas. O direito ao sigilo impede que cônjuges, companheiros ou pais violem correspondências e comunicações, sob pretexto de dever de fidelidade ou de pátrio poder, pois lesivos à dignidade pessoal dos atingidos. O sigilo profissional não constitui direito da personalidade, pois tutela muito mais o cliente que o profissional, o qual tem o dever de guarda; sua revelação viola a intimidade e a vida privada do cliente. Não se inclui no âmbito do direito da personalidade o sigilo bancário, pois exprime um valor patrimonial do banco ou do cliente.

O direito à imagem não se confunde com a honra, reputação ou consideração social de alguém, como se difundiu na linguagem comum. Direito a retrato, à efígie, cuja exposição não autorizada é repelida. Neste, como nos demais casos de direitos da personalidade pode haver danos materiais, mas sempre há dano moral, para tanto bastando a revelação ou a publicação não autorizadas. Quando a divulgação ou exposição do retrato, filme ou assemelhado danifica a reputação da pessoa efigiada, viola-se o direito à honra e, quase sempre, a intimidade.

e) direito à honra (ou reputação)

Também denominado direito à integridade moral ou à reputação, o direito à honra tutela o respeito, a consideração, a boa fama e a estima que a pessoa desfruta nas relações sociais. Toda pessoa, por mais que se conduza de modo não ético, desfruta desse direito, em grau maior ou menor, a depender de seu comportamento moral e da comunidade em que vive ou atua. A honra, que se constrói no ambiente social, é o mais frágil dos direitos da personalidade, porque pode ser destruída em virtude de informação maliciosa ou dolosa. A honra há de ser aferida pelo juiz considerando os valores do lesado em harmonia com os valores cultuados na comunidade em que vive ou atua profissionalmente. Costuma-se confundir o direito à honra com o direito a imagem, mas este diz respeito apenas à retratação externa da pessoa. A reputação relaciona-se à honra e não à imagem.

A honra pode ser entendida como subjetiva, quando toca à pessoa física, porque somente ela pode sofrer constrangimentos, humilhações, vexames. Tem-se admitido a honra objetiva, no caso das pessoas jurídicas, que também dependem de consideração, apreço e estimas sociais (Cf. R. Esp. Nº 60.633-2-MG, do STJ).

f) direito moral do autor

A criação intelectual – especialmente, as obras literárias, científicas e artísticas, excluído o aproveitamento industrial ou comercial – da pessoa envolve dois aspectos distintos: os direitos patrimoniais do autor, de natureza econômica e são objetos de atos jurídicos, e os direitos morais do autor 16, que integram os direitos da personalidade do criador, dotados de todas as características referidas: intransmissibilidade, indisponibilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, inexpropriabilidade. Segundo a Lei nº 9.610, de 1998, são assim considerados os direitos à paternidade da obra, à nominação, ao ineditismo, à integridade ou intocabilidade da obra, à modificação, o de impedir a circulação, neste caso associado à reputação (honra) e à imagem. A utilidade econômica da obra pode ser negociada, mas nunca qualquer dos direitos morais do autor.

g) direito à identidade pessoal

O direito à identidade pessoal significa direito a ter nome, que é absoluto e inato. O nome é composto de prenome e sobrenome. O prenome, simples ou composto, é individual, enquanto o sobrenome indica a procedência familiar. No Brasil, costuma-se compor o sobrenome, sucessivamente, com os nomes das famílias materna e paterna, mas não há obrigatoriedade legal, pois apenas pode conter um ou outro. Na tradição castelhana, são invertidos: primeiro vem o nome da família paterna. O novo Código Civil, equivocadamente, refere a "patronímico", que significa derivado do nome do pai, a exemplo de Rodrigues, filho de Rodrigo.

Durante muito tempo, o prenome foi imutável, salvo hipóteses estreitas de erro gráfico ou ridicularia, ou durante o primeiro ano após adquirir a maioridade. Essa regra foi mudada pela Lei nº 9.708, de 1998, que admite a mudança por apelidos públicos notórios, ou seja quando uma pessoa é conhecida no meio social por nome diverso do que foi registrada.

Inclui-se na direito ao nome a proteção do pseudônimo utilizado para atividades profissionais.

A lesão ao direito ao nome acarreta danos morais, sempre que haja utilização indevida ou não autorizada e possa ser indiscutivelmente referido à pessoa, máxime quando se tratar de homônimos. A utilização indevida dá-se com intuito difamatório ou de provocar o desprezo público ou, ainda, de interesse publicitário ou mercantil.

O Código Civil brasileiro de 1916, em harmonia com as grandes codificações liberais e patrimonialistas, nada tratou dos direitos da personalidade, sem embargo do conhecimento que os juristas deles tinham, a exemplo da afirmação acima transcrita de Teixeira de Freitas. O novo Código Civil, oriundo do projeto de 1975, dedica um capítulo da parte geral aos direitos da personalidade, selecionando aqueles que produzem efeitos mais agudos nas relações civis, a saber: direito à integridade física, proibindo-se atos de disposição ao próprio corpo, salvo para fins de transplante e, gratuitamente, após a morte, para fins científicos ou altruístico; vedação de tratamento médico ou intervenção cirúrgica não consentidos; direito à identidade pessoal (direito a ter nome e a impedir que seja usado de modo a expor ao ridículo ou com intenção difamatória; proibição de usar o nome alheio, sem autorização, para fins publicitários; proteção ao pseudônimo) ; direito à imagem; direito à honra; direito à vida privada.

Na legislação civil estrangeira, que já tenha ultrapassado a hegemonia patrimonialista das grandes codificações liberais oitocentistas, os direitos da personalidade são comuns aos já mencionados. O Código Civil italiano trata do direito à integridade física, proibindo disposição do próprio corpo, do direito ao nome, incluindo o pseudônimo, o do direito à imagem (artigos 5º a 10). O Código Civil português cuida da tutela geral da personalidade, da ofensa a pessoas já falecidas, do direito ao nome, do sigilo de correspondência, memórias e escritos confidenciais, do direito à imagem, do direito à privacidade (artigos 70 a 81). O Código Civil peruano prevê os direitos à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, à intimidade, à imagem, ao sigilo, ao nome e aos "demais inerentes à pessoa humana" (artigos 3 a 32). O Código Civil de Québec disciplina o direito à integridade física, particularmente quanto à disposição de partes do próprio corpo, o direito à integridade psíquica, relativamente a internação e exame psiquiátrico, o direito de proteção aos menores, o direito à reputação, o direito à vida privada, o direito à imagem, o direito ao nome, o direito ao sigilo de correspondência e afins, o direito à retificação de dados (artigos 10 a 49).

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Danos morais e direitos da personalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 121, 31 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4445. Acesso em: 21 nov. 2024.

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