1. Introdução
O ser humano, como elemento complexo, dotado de capacidade de raciocínio e dominador dos elementos naturais, depende dos bens existentes a sua volta para se manter, se abrigar e para utilizá-los nas mais diversas atividades. Para tanto, se apropria dos bens, gerando relações jurídicas e sociais patrimoniais.
No aspecto jurídico, ensina José Afonso da Silva que o direito de propriedade inicialmente foi concebido como uma relação entre uma pessoa e uma coisa, o que posteriormente se mostrou absurdo, haja vista que as relações jurídicas se estabelecem entre pessoas (SILVA, 1998).
Na sequência, o direito de propriedade passou a ser entendido como uma relação entre o indivíduo e um sujeito universal integrado por todas as pessoas, gerando um sentido de que referido direito é oponível a toda a sociedade.
Para a satisfação patrimonial no caso de cobrança de dívidas contraídas, foi criado o mecanismo da execução judicial, cabendo salientar que o ordenamento jurídico clássico, especialmente o direito romano, concebia a execução como privação pessoal do devedor, o qual respondia por suas dívidas com a prisão ou mesmo com a morte, conforme ensina o professor Daniel Neves (NEVES, 2012).
Atualmente, os direitos patrimoniais vêm sendo concebidos no mesmo plano dos direitos da personalidade, concepção esta que fundamenta a tese do patrimônio mínimo, desenvolvida brilhantemente por Luiz Edson Fachin (FACHIN, 2001).
2. O direito de propriedade como direito fundamental previsto na CF/88
A Constituição Federal de 1988 prevê, no artigo 5º, caput, a garantia do direito à propriedade e, no inciso XXIII do mesmo artigo, determina que esta cumpra sua função social.
Mas não só o dispositivo citado prevê o direito fundamental à propriedade, outras normas inseridas na Carta Constitucional também preveem referido direito, a exemplo: artigo 170, incisos II e III; artigos 176, 177, 178, 182, 185.
Uma interpretação sistemática da Constituição da República possibilita alçar o direito de propriedade ao status de direito fundamental, intimamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no inciso III do artigo 1º da Carta Magna.
E a conclusão não poderia ser diferente, pois o ser humano depende da utilização de bens, dos quais se apropria, visando garantir uma existência digna.
Frise-se que direitos fundamentais e mínimo existencial não se confundem, conforme entendimento do doutor Ingo Wolfgang Sarlet:
“Muito embora amplamente reconhecida a relação entre o assim chamado mínimo existencial com os direitos fundamentais sociais, importa sublinhar que comungamos do ponto de vista de que os direitos fundamentais sociais não se reduzem ao mínimo existencial (ou à dignidade humana), conquanto as dimensões que densificam o mínimo existencial certamente guardem (maior ou menor) relação com o núcleo essencial de grande parte dos direitos sociais, ainda mais se consideradas as peculiaridades e a extensão com que foram positivados pela Constituição de 1988. Em síntese, embora o mínimo existencial esteja em contato com os diversos direitos sociais individualmente considerados e existam zonas de convergência quanto aos respectivos conteúdos (âmbito de proteção), não se pode afirmar que o mínimo existencial equivale (isto é, se confunde com) ao conteúdo essencial dos direitos sociais. Aliás, aplica-se aqui (embora as peculiaridades dos direitos sociais) linha de argumentação similar a que se utiliza para a relação da dignidade da pessoa humana com o conteúdo essencial dos direitos fundamentais: ambos guardam maior ou menor relação (por vezes nenhuma!), mas não se confundem.” (SARLET, 2012)
3. Da proteção ao patrimônio mínimo
A lei infraconstitucional trouxe previsão de impenhorabilidade de bens patrimoniais que garantem o mínimo existencial, a fim de protegê-los da expropriação decorrente da execução judicial.
O artigo 649 do Código de Processo Civil de 1973 trouxe um rol de bens absolutamente impenhoráveis.
No mesmo sentido, a Lei nº 8.009/90 estabelece a impenhorabilidade do bem de família.
Por oportuno, saliente-se que o novo Código de Processo Civil também trouxe em seu artigo 833 rol de bens considerados impenhoráveis.
Contudo, referidos bens, por vezes, são arrolados em processos judiciais, sem a observância da impenhorabilidade por parte de credores financeiros.
Nesse caso, cabível a alegação de impenhorabilidade do bem. Mas, a indagação que se apresenta é: haveria prazo para a arguição de impenhorabilidade? Poderia o devedor opor-se à expropriação do bem, ainda, que ultrapassado o prazo de oferecimento de embargos?
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é controversa. O Tribunal da Cidadania já entendeu que o titular do direito poderia renunciar à proteção legal da impenhorabilidade, exceto na hipótese de bem de família (STJ, 4ª Turma, AgRg nos Edcl no REsp 787.707/RS, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 14.11.2006, DJ 04.12.2006).
Posteriormente, determinou a irrenunciabilidade da proteção em qualquer hipótese, com fundamento na dignidade da pessoa humana (STJ, 2ª Turma, REsp 864.962/RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 04.12.2010, DJe 18.02.2010).
Contudo, utilizando-se o arcabouço constitucional, cuja estrutura fundamental está calcada na dignidade da pessoa humana, princípio que deve reger todas as normas jurídicas, imperiosa a conclusão pela natureza de ordem pública da impenhorabilidade desses bens protegidos para garantia do mínimo existencial.
Logo, tratando-se de matéria de ordem pública, a arguição de impenhorabilidade absoluta, nesses casos, pode ser apresentada a qualquer tempo, não sofrendo limitações pela preclusão.
4. Exceções à proteção: alguns exemplos
Inicialmente, importante frisar que mesmo os direitos fundamentais podem sofrer limitações, entre outras hipóteses, quando confrontados com outros direitos fundamentais.
Nesse caso, aplicável o princípio da ponderação entre os direitos envolvidos. É o que ensina Canotilho:
“A pessoa é uma ‘unidade interactiva’, centro de referência de relações sociais, emancipada do domínio (BALDASSARE), e daí que a ‘sua auto-determinação e desenvolvimento’ se obtenha também através do reconhecimento de direitos fundamentais a certas formações sociais onde ela se insere. Por vezes, poderá existir uma relação de tensão entre estas duas dimensões, ou seja, entre um direito como direito do indivíduo e um direito da pessoa na sua qualidade de ‘unidade interactiva’ inserida em formações sociais, mas a CRP parece apontar, ainda neste caso, para o princípio da prevalência do caráter subjectivo individual (...). Esta relação de tensão é, de resto, compatível com a natureza principal dos direitos fundamentais, o que permitirá ‘juízos de ponderação’ (Abwãgung) entre os direitos em conflito, a aplicação dos princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação, e, em casos extremos, uma ponderação conducente a soluções diferentes das que resultariam da simples aplicação do princípio da concordância prática, tendo em conta as condições fácticas e jurídicas existentes no caso concreto”. (CANOTILHO, 1993)
Nesse contexto, o direito fundamental à propriedade considerado a partir do mínimo existencial indispensável à garantia da dignidade da pessoa humana também pode sobre limitações quando confrontado com outros direitos, também fundamentais.
Deve-se ter em mente, inclusive, que na execução patrimonial, há dois direitos patrimoniais em confronto: do credor e do devedor.
Assim, a despeito da proteção conferida aos bens patrimoniais que constituem o mínimo existencial necessário à dignidade da pessoa humana, há que se levar em consideração algumas exceções impostas pela lei e pela jurisprudência.
A própria lei traz exceções à proteção de referidos bens, quando ultrapassam o mínimo existencial ou quando a dívida que lhe atinge tiver origem específica.
No caso de vestuário ou pertences de uso pessoal, por exemplo, a lei excepcional a proteção, permitindo a expropriação daqueles de elevado valor.
No mesmo sentido, a quantia depositada em caderneta de poupança será protegida tão somente quando igual ou inferior a 40 (quarenta) salários mínimos.
Quanto ao bem de família impenhorável, a proteção sofre limitação, por exemplo, em razão da não essencialidade, no caso de veículos de transporte; do valor, no caso de obras de arte e adornos suntuosos; ou em razão da origem do débito que atinge o bem, como no caso de créditos fiscais ou trabalhistas relativos ao referido patrimônio.
A jurisprudência traz outras interpretações que demonstram os limites que devem ser impostos à proteção do direito em tela.
Uma das exceções pretorianas ocorre em relação ao valor depositado em conta poupança vinculada a conta corrente, ou quando a natureza da conta poupança é desvirtuada, ainda que os valores questionados estejam abaixo do teto fixado por lei.
Agravo de instrumento – Ação em fase de cumprimento de sentença – Valores depositados em conta poupança vinculada à conta corrente – Penhora – Possibilidade – Contas poupança e corrente que se confundem – Movimentação normal, inclusive com débito automático destinado ao pagamento de contas – Hipótese não amparada pelo art. 649, X do Código de Processo Civil – Precedente. Recurso desprovido.
(TJSP. Agravo de Instrumento nº 2152849-98.2015.8.26.0000. Relator(a): José Roberto Furquim Cabella; Comarca: Mogi das Cruzes; Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 28/10/2015; Data de registro: 29/10/2015)
“Prestação de serviços educacionais - Execução - Penhora on line – Conta poupança com saques frequentes - Descaracterização - Perda da impenhorabilidade (CPC, 649, X) corretamente decretada Agravo improvido.” (TJSP. AI 0585769-70.2010.8.26.0000, Rel. Des. Vianna Cotrim, j. 16.03.2011).
5. Conclusão
O direito à propriedade é um direito fundamental intimamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Ademais, necessária sua proteção, tendo em vista o mínimo existencial necessário à referida dignidade.
Conclui-se que, tratando-se de propriedade patrimonial consubstanciada em bens necessários ao mínimo existencial, observadas as exceções legais e jurisprudenciais, poderá o devedor arguir-lhe a impenhorabilidade, a qualquer tempo em processo jurisdicional, não prevalecendo a preclusão contra tal direito.
6. Referências Bibliográficas:
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed., revista. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 4ª ed., ver., atual. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2012.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed., rev., atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed, rev., atual. São Paulo: Malheiros, 1998.
STJ, 2ª Turma, REsp 864.962/RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 04.12.2010, DJe 18.02.2010.
STJ, 4ª Turma, AgRg nos Edcl no REsp 787.707/RS, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 14.11.2006, DJ 04.12.2006.