Repercussão geral e as demandas sociais

05/01/2016 às 20:26
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Requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário. Mas qual sua função na representatividade dos anseios sociais?

  1. Introdução.

O instituto da Repercussão Geral é um instrumento processual inserido em nossa Constituição de 1988 pela Emenda n° 45, conhecida como a “Reforma do Judiciário”. Atualmente, por meio desta inovação processual, possibilita-se que o Supremo Tribunal Federal filtre os Recursos Extraordinários que irá apreciar, a partir de critérios de relevância jurídica, política, social ou econômica. 

Ainda que breve a exposição acerca do tema, o leitor inquisitivo pode instigar-se quanto à forma que é feita a referida análise de admissão do Recurso Especial, já que os critérios “jurídicos, políticos, sociais e econômicos” são amplos e uma análise simplória destes requisitos pode gerar faltas graves perante a sociedade, pela não prestação jurisdicional por parte do Superior Tribunal Federal.

Nossa pretensão não é defender a apreciação pelo STF de toda e qualquer causa, pois se assim o fosse, impossível seria ao Tribunal se pronunciar com qualidade em relação ao enorme volume de demandas recebidas e ainda incentivaria o aumento de recursos meramente protelatórios. O que tentaremos demonstrar com esse trabalho é que essa análise é subjetiva, e a falta de critérios práticos podem tolher direitos fundamentais do cidadão em prol da busca da otimização da “máquina judiciária”, pela celeridade processual.

Como já explicitado, tal instituto tem a nobre tarefa de direcionar a atenção de nossa Suprema Corte apenas aos casos que forem, de maneira geral, relevantes para nossa sociedade, transcendendo-se o interesse das partes. Porém, levando-se em conta a prática e experiência do cotidiano e deixando-se de lado o romantismo em crer que o Estado sempre atua em prol das demandas sociais, e ainda, atinado mais a nossa realidade político-social, é flagrante a hipótese que uma demanda recorrente na sociedade nunca chegue a ter qualquer tipo de apreciação judicial. Isso, por inúmeros motivos, que vão desde o baixo poder aquisitivo das partes em contratar um advogado, passando pela falta de informação e descrença do cidadão no Poder Judiciário, indo até à deturpações mais graves, em que decisões judiciais são veladas por interesses políticos.

Assim, se os ministros que compõem nossa máxima Corte Jurisdicional se fecharem ao que de fato ocorre em nossa sociedade e não perceberem quais são as demandas sociais em voga, enclausurando-se no espaço físico do Supremo Tribunal Federal e não atinando ao que realmente está ocorrendo nas dinâmicas sociais, correremos todos o risco do Estado falhar em relação ao cidadão por não lhe conceder o direito da prestação jurisdicional. Não é porque determinadas demandas não são recorrentes no Poder Judiciário que não repercutem necessariamente de maneira ampla na sociedade, devendo a discussão dessa preliminar ser cautelosamente analisada pelos doutos ministros do STF.

O desenvolvimento da presente monografia iniciará por meio das considerações preliminares acerca do instituto da Repercussão Geral, traçando seu perfil histórico, fundamentação e inserção no ordenamento jurídico. Posteriormente entraremos na questão que transcende o conceito técnico do referido instituto, passando para uma questão mais ampla acerca da das demandas sociais e, por fim, tentaremos propor modificações em relação ao grande volume de recursos que chegam ao STF, sem que seja necessária a utilização de estratégias que fulminem o direito de defesa do cidadão.

Não temos a pretensão com esse trabalho de esgotar o tema, porém objetivamos abordar tal instituto de forma precisa e aprofundada, e, a partir de uma análise crítica, propor modificações consistentes acerca da repercussão geral.

  1. Fundamento e histórico do instituto da Repercussão Geral.

O Supremo Tribunal Federal foi instituído pela Constituição Republicana de 1891 em substituição ao antigo Supremo Tribunal de Justiça do Império. Com o passar dos anos teve suas atribuições, tanto originárias quanto recursais ampliadas de maneira exacerbada.

Uma das possíveis razões que justificam esse crescimento recursal pauta-se no próprio “espírito” de nosso modelo jurídico. O direito brasileiro inspirou-se na perspectiva romano-germânica, que tem como uma de suas características a excessiva demanda recursal. Contrariamente ao que se percebe no direito anglo-saxão, onde se busca a pacificação da lide, em nosso direito, as partes, quando irresignadas da decisão judicial, em regra, buscam recorrer da decisão desfavorável até se esgotarem todas as possibilidades. Tal fato, atrelado a outros fatores, tais como a melhoria do acesso ao Judiciário, o aumento da litigiosidade, o desenvolvimento da economia e até mesmo o aumento populacional do país, engendrou um desequilíbrio crônico entre o número de feitos protocolados e o volume processual julgado.

Tendo por base estas especificidades, é sabido que o Supremo Tribunal Federal, a partir da década de 50, sofreu um aumento vertiginoso em sua carga de trabalho, tendo como principal “culpado” o recurso extraordinário. Para barrar o volume processual, na década de 60 surgiram as súmulas, como instrumentos que delimitavam o cabimento ou não de recursos extraordinários. Na década seguinte, visto que a demanda recursal ainda era gritante, utilizou-se de outros instrumentos processuais, dentre estes se destaca a chamada argüição de relevância da questão federal.

    Este instituto, precursor da repercussão geral, foi uma estratégia processual que condicionava o conhecimento do recurso extraordinário à demonstração obrigatória de reflexos na ordem jurídica e aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais, relativos à causa, julgados como incidente prévio por uma seção secreta e irrecorrível.

    A argüição de relevância da questão federal inserida em um contexto de Estado de exceção foi demasiadamente severa, desrespeitando inclusive o princípio do devido processo legal. Em contrapartida, finda a ditadura militar no Brasil, a Constituição de 1988 veio instituir um novo paradigma no Estado, o democrático de direito. Este teve como aspecto relevante o caráter revanchista, elevando os direitos individuais e sociais contra possíveis abusos de poder. Para tanto, repeliu-se a argüição de relevância da questão federal, não a consagrando no novo texto constitucional.

    Em nossa Constituição compromissária, garantista, consagrou-se modificações sensíveis em relação ao Supremo Tribunal Federal. A mais relevante foi a criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja atribuição desincumbiu o STF do julgamento de inúmeras causas, vez que aquele passou a ser responsável pelo julgamento das ações com fulcro na legislação federal, tratando o STF do processamento dos feitos que discutissem apenas questões constitucionais.

    A estratégia de dividir as matérias de julgamento em constitucionais e infra-constitucionais, a partir de órgãos distintos para o julgamento, foi eficiente e eficaz, porém não se apresentou como sendo um subterfúgio suficiente para aplacar a chamada crise do Judiciário. A demanda processual ainda era muito maior do que a possibilidade de julgamento com a qualidade devida, nesse sentido, outros meios foram levantados para solucionar o excesso de demanda nos Tribunais.

    A Emenda Constitucional n° 45/2004 inaugurou duas inovações de destaque nesse cenário, as súmulas vinculantes e a necessidade de se demonstrar, em sede de recurso extraordinário, a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso concreto. Este instituto, herdeiro da antiga argüição de relevância da questão federal, será alvo de nossos estudos, enfocando em suas características e reflexos perante as demandas sociais contemporâneas. 

  1. A arguição de relevância em contraposição à repercussão geral.

    A fim de demonstrarmos as possíveis congruências percebidas entre a argüição de relevância, surgida do período militar e a repercussão geral, vigente em nosso ordenamento jurídico, se faz necessária uma análise pormenorizada e apartada desses institutos, para posteriormente confrontá-los e evidenciar suas semelhanças e distinções.

  1. Arguição de relevância da questão federal.

    Esta foi criada pelo STF por meio de uma emenda ao seu regimento, passando a ser utilizada no início da década de 70. A novidade, porém, apenas seria constitucionalizada com a Emenda Constitucional n° 7/77, que atribuiu ao STF a competência para legislar sobre processo, por meio de seu regimento interno, passando a disciplinar à questão nos artigos 327 a 329 do RISTF.

A argüição de relevância teve como fundamento processual a intenção em se reduzir o volume de feitos a serem analisados pelo Supremo Tribunal Federal. Este instituto inspirou-se no direito norte-americano e no alemão, tendo por fundamentação a concepção de que a máxima corte nacional deve apenas se pronunciar em questões que interfiram de forma relevante frente à sociedade, não cabendo, por conseqüência, seu pronunciamento acerca de questões rotineiras, que apenas tenham importância para as partes que compõem a lide, a qual a decisão seja inter partes.

    A intenção de reduzir o volume processual a ser analisado pelo STF fundamentava-se no distanciamento da Suprema Corte com as “questões triviais”. Assim, supostamente esta poderia direcionar seus esforços para as questões que de fato repercutem socialmente, produzindo decisões altamente fundamentadas, que serviriam como modelos, guias no entendimento do direito.

    Nesse sentido, nos esclarece BAPTISTA, embasando-se no estudo do Min. Victor Nunes Leal

(...) “a relevância, para esse efeito, será apurada especialmente do ponto de vista do interesse público. Em princípio, qualquer problema de aplicação da lei é de interesse público. Mas, na prática, muitas questões têm repercussão limitada às partes, ou a pequeno número de casos, e há problemas legais cujas conseqüências são muito reduzidas, mesmo para as partes, servindo antes como um pretexto para manobras protelatórias ou que visam a subtrair o mérito do litígio ao direito aplicável. Muitas controvérsias sobre o direito processual estão compreendidas nesta última hipótese”.

Pelo que se deduz dos estudos no célebre Ministro, a relevância enquanto requisito de admissibilidade seria um mecanismo hábil para aperfeiçoar os trabalhos realizados pelo STF, tanto em relação à economia processual quanto à celeridade no julgamento das causas com “prioridade social”, além de afastar a possibilidade de utilização da Suprema Corte como um instrumento protelatório em sede de recursos vazios.

 Nesse sentido, José Carlos BARBOSA MOREIRA sistematizou as hipóteses que configurariam a argüição de relevância: i) decisão capaz de influir concretamente, de maneira generalizada, em grande quantidade de casos; ii) decisão capaz de servir à unidade e ao aperfeiçoamento do Direito, ou particularmente significativa para seu desenvolvimento; iii) decisão que tenha imediata importância jurídica ou econômica para círculo mais amplo de pessoas ou para mais extenso território da vida pública; iv) decisão que possa ter como conseqüência a intervenção do legislador no sentido de corrigir o ordenamento positivo ou de lhe suprir lacunas; v) decisão que seja capaz de exercer influência capital sobre as relações com os estados estrangeiros ou com outros sujeitos do Direito Internacional Público.

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O julgamento era realizado pelo Tribunal Pleno, reunido em “conselho”, sem a presença das partes e de seus advogados, publicando-se o resultado no Diário de Justiça da União apenas com a indicação de “acolhida” ou “não acolhida.” Em resumo, o que era debatido pelo conselho do Tribunal não era aberto ao público, não servindo assim de paradigma para outras ações de igual teor ou similares. Por conseqüência, salienta Theotonio NEGRÃO que a argüição de relevância tornou-se um “obstáculo praticamente intransponível a que qualquer causa chegasse ao Supremo Tribunal Federal”, tendo como conseqüência quase o desaparecimento “da possibilidade de uniformização do Direito Federal”.

Por todas essas peculiaridades este instituto mostrou-se incondizente com a democracia, para tanto não foi recepcionado pela Constituição de 1988, conhecida como a Constituição Democrática.

  1. Repercussão Geral

O instituto da repercussão geral, por sua vez, surgiu com a EC n° 45/2004, que inovou em matéria de cabimento de recurso extraordinário. De acordo com a redação do novo dispositivo, cabe ao recorrente o ônus de demonstrar a “repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei”, a fim de que “o tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos seus membros”. Na seqüência, surgiu a Lei 11.418 de 19.12.2006 que disciplinou a flagrante eficácia contida da norma, devido a expressão “nos termos da lei”, acrescentado ao CPC, nos artigos 543-A e 543-B.

Agora o recorrente deve preencher um novo requisito para que seu recurso seja conhecido, não bastando somente a fundamentação embasada nas hipóteses do art. 102, III da CF/88. Para que haja recurso extraordinário, não basta que se discuta apenas matéria constitucional no julgado a que se recorre, o STF não reconhecerá do recurso “quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral” (art. 543 – A, caput). Discrimina a lei que a repercussão geral estaria presente nas questões que “ultrapassem o interesse subjetivo da causa”, por haver aspectos que transcendem o direito personalístico das partes que compõem a lide. 

    Segundo o professor Humberto THEODORO JUNIOR a fundamentação para a implementação deste instituto foi, sem dúvida, a necessidade de controlar e reduzir o sempre crescente e intolerável volume de recursos da espécie que passou a assoberbar o Supremo Tribunal, a ponto de comprometer o bom desempenho de sua missão de Corte Constitucional, que inspirou e justificou a reforma operada pela EC n° 45.

Na mesma direção, salienta André Ramos TAVARES:

“Importa que nem todas as decisões proferidas pelas demais instâncias, ainda que envolvam conceitos constitucionais, mas apenas aquelas relevantes, de interesse geral, realmente sejam objeto de apreciação pelos tribunais constitucionais. Neste passo, uma ampla abertura para provocar e exigir a manifestação de mérito de um Tribunal Constitucional deve ser evitada, sob pena de prejuízo sério no desenvolvimento a contento, por esse tribunal, das questões cruciais.”

    Pelo exposto, contrapondo-se os institutos por nós trabalhados, claramente percebe-se que ambos têm como fundamento a função de servirem como um filtro processual, a fim de se diminuir a demanda frente ao STF, para que este possa concentrar seus esforços nas questões de maior importância.

    No entanto, encontramos na doutrina divergências em relação ao parentesco e as semelhanças desses institutos, por vezes os igualando. Segundo Juvêncio Vasconcelos VIANA a exigência da repercussão geral representa “o regresso da velha argüição de relevância apenas com uma nova roupagem jurídica; um velho instituto com novo rótulo, apenas isso.”

No mesmo sentido, afirma Flávio YARSHELL ao se referir à repercussão geral que “o instituto, ao que parece, pretende estabelecer algo análogo à extinta argüição de relevância de questão federal, que, no passado, vigorou quando o Supremo Tribunal Federal ainda apreciava a matéria que, hoje, é própria de recurso especial e, portanto, de competência do Superior Tribunal de Justiça.

Embora a doutrina mais severa iguale os institutos, ao que pese as semelhanças entre esses, também encontra-se distinções que os distanciam. Primeiramente, no que tange à matéria, na argüição de relevância, eram discutidas diversas questões, inclusive as que se referiam à legislação federal, o que acabou com o advento do Superior Tribunal de Justiça, nascido com a CF/88.

Em relação a forma de atuação desses mecanismos processuais, ressalta Araken de ASSIS outras diferenças:

“A argüição de relevância funcionava como um mecanismo de inclusão, tornando admissível o recurso originalmente inadmissível; a falta de repercussão geral da questão constitucional atua como elemento de exclusão do recurso. É flagrante que o instituto da repercussão geral filia-se à corrente do pragmatismo judiciário – a fonte de inspiração depõe nesse sentido – e visa ao aprimoramento da atividade judicante do STF como corte constitucional. Ademais, a argüição de relevância dependia da instauração de incidente próprio no procedimento do recurso extraordinário, subordinado à iniciativa do recorrente que, deste modo, antecipava-se à alegação do recorrido ou à declaração ex ofício da admissibilidade. Ao invés, a repercussão geral prescinde de incidente específico, cabendo ao STF examinar a existência dessa condição, preliminarmente, no âmbito do juízo de admissibilidade. O STF apreciava a argüição de relevância, distribuída independentemente do sorteio de relator, em sessão secreta, reunindo-se o tribunal em conselho, e publicava o resultado irrecorrível em ata, dispensada a motivação. Para avaliar a existência de repercussão geral, distribuir-se-á o recurso extraordinário a um relator, após a verificação das condições gerais de admissibilidade na origem. E a análise da repercussão geral há de ser motivada, em sessão pública, publicando-se o resultado através de súmula que valerá como acórdão (art. 543 – A, § 7°, in fine).

Finalmente, o acolhimento da arguição de relevância, superando os obstáculos regimentais, assentava-se no voto de quatro ministros (art. 308, VII, do RISTF, revogado), seguindo o modelo norte-americano. A opinião da minoria preponderava sobre a maioria. O reconhecimento da repercussão geral basear-se-á na posição majoritária de quatro ministros (art. 543 – A, § 4°), mas a declaração de inexistência dessa repercussão exige o pronunciamento de dois terços dos integrantes do STF (art. 102, § 3°, da CF/88, na redação da EC n°45/2004), ou seja, oito votos convergentes”.

Desta feita, percebe-se uma relação evidente entre ambos os institutos processuais, tendo estes tênues diferenças. Ademais, como estão inseridos em contextos históricos diferentes, a forma de atuação destes também é distinta, se por um lado na decisão a respeito da existência ou não da argüição de relevância ficava restrita à determinação do STF, não cabendo a possibilidade de qualquer discussão, a repercussão geral se mostra mais democrática, exigindo a fundamentação da decisão e inclusive possibilita a participação popular nesse processo.

  1. A Repercussão Geral e os Direitos Fundamentais.

Como anteriormente exposto, a justificativa maior deste instituto funda-se na intenção de suprimir o grande volume processual perante o STF, para que este possa concentrar seus esforços nas questões mais relevantes para Estado. Porém, esse entendimento engendra uma discussão pertinente e muito relevante para a sociedade: a garantia dos Direitos Fundamentais.

A dicotomia existente entre a potencialização dos trabalhos de nossa Suprema Corte e o acesso a Justiça pela população tem se mostrado complexa e de difícil resolução. O questionamento que se faz se inspira na equação que contrapõe princípios como a celeridade, a economia processual e a eficiência com uma possível privação de direitos individuais do cidadão em caso de recusa da admissibilidade de seu recurso por inexistência de Repercussão Geral.

A Constituição de 1988 trata dos direitos fundamentais a partir do artigo 5° no título II “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. A postura de tratar esse tema logo no início da Constituição demonstra uma contraposição sistemática às Constituições anteriores, que tratavam do tema a partir do artigo 100. Esse entendimento revela uma maior preocupação com o indivíduo, colocando o Estado como um meio de efetivação dos interesses sociais. 

A percepção do indivíduo como sendo o fim do Estado advém de uma conquista histórica, tendo como marco fundamental a Revolução Francesa. É nesse momento, na França, que se inicia o chamado Estado Liberal de Direito, acrescendo ao indivíduo prerrogativas frente ao Estado. Com a Revolução Francesa surgem os direitos de primeira geração, também denominados direitos civis e políticos, e representam as liberdades negativas, ou seja, se caracterizam pela limitação do Estado. 

Posteriormente, por volta de 1848, com o manifesto comunista, fortalecem os pleitos perante o Estado visando à igualdade material entre o povo. Desse movimento isonômico, surgem em 1917 a Constituição Mexicana e em 1919 a Constituição Alemã (Constituição de Weimar). Essas Constituições marcam o surgimento dos direitos fundamentais de segunda geração, delimitando a passagem do Estado Liberal para o Estado Social. Dos direitos inspirados no princípio da igualdade, decorre a isonomia material em relação aos direitos básicos, como o acesso a saúde, educação, trabalho, previdência social, dentre outros.

No Brasil, os direitos fundamentais de segunda geração são inseridos na Constituição de 1934. Atualmente, estes são encontrados no artigo 6° de nossa Carta Magna, sob o prisma dos “direitos sociais”.

Adiante, com a criação da ONU (Organização das Nações Unidas) somado ao período pós II Guerra Mundial, surge a intenção de se ampliar os direitos fundamentais. Nasce então o Estado Democrático de Direito e com ele os direitos fundamentais de terceira geração, abarcando-se os direitos metaindividuais e os direitos coletivos (direitos relativos à existência do ser humano, ao destino da humanidade, à solidariedade, etc.).

Os direitos fundamentais foram conquistados ao longo de nossa história moderna após inúmeros acontecimentos, reivindicações, lutas e guerras. Atualmente, o pleito se concentra na efetivação destes direitos conquistados. 

A concretização dos direitos fundamentais é uma meta a ser alcançada pelo Estado, sendo alicerce para qualquer atividade estatal e parâmetro em toda relação jurídica, seja entre particulares (eficácia horizontal) ou nas relações em que figuram particulares e o Poder Público (eficácia vertical). Por conseqüência, extrai-se sua importância dentro de um contexto de Estado Democrático de Direito no qual estamos inseridos.

Especificamente em relação ao processo, versa nossa Constituição sobre diversos princípios que devem ser obrigatoriamente observados, tais como a garantia do livre acesso ao Judiciário, previsto no artigo 5°, XXXV da CF/88. Desta maneira, nenhuma lei poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Consoante a esse entendimento, nos ensina Kazuo WATANABE:

"A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa” .

Ademais, outros princípios expressos em nosso ordenamento jurídico garantem a efetividade do processo de forma plena, dentre eles o direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, tal como observa-se no artigo 5°, LIV e LV da CF/88. A jurisdição e o processo são institutos indissociáveis, sendo esses conceitos indispensáveis a realização da Justiça. Desta maneira, expõe o mestre Humberto THEODORO JÚNIOR:

“Uma vez que o atual Estado Democrático de Direito se assenta sobre os direitos fundamentais, que não apenas são reconhecidos e declarados, mas cuja realização se torna missão estatal, ao processo se reconhece o papel básico de instrumento de efetivação da própria ordem constitucional. Nesta função, o processo, mais do que uma garantia da efetividade dos direitos substanciais, apresenta-se como meio de concretizar, dialética e racionalmente, os preceitos e princípios constitucionais. Desta maneira, o debate, em que se enseja o contraditório e a ampla defesa, conduz, pelo provimento jurisdicional, à complementação e aperfeiçoamento da obra normativa do legislador. O juiz, enfim, não repete o discurso do legislador. Faz nele integrar os direitos fundamentais, não só a interpretação da lei comum, como na aplicação ao quadro fático, e, ainda de maneira direta, faz atuar e prevalecer a supremacia da Constituição. O devido processo legal, portanto, pressupõe não apenas a aplicação adequada do direito positivo, já que lhe toca, antes de tudo, realizar a vontade soberana das regras e dos princípios constitucionais”.

Colidindo à tendência que privilegia os direitos fundamentais, encontra-se a prática dos tribunais, os quais argumentam que o grande volume processual emperra a possibilidade do término do processo em tempo razoável. Nesse sentido, a Constituição foi emendada em seu art. 5°, LXXVIII, pela EC n° 45/2004, assegurando a razoável duração do processo enquanto direito fundamental, nos seguintes termos: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

Assim, a nós, cabe questionar se nesse conflito entre direitos fundamentais existe um de mais relevo, que deva ser atendido precipuamente, ou seja, seria mais importante o acesso a justiça ou a celeridade processual? E mais, será que a demora no encerramento de um processo está estritamente relacionado ao volume processual ou existem outros fatores que potencializam esta situação?

No decorrer de nossos trabalhos, hipóteses serão levantadas, bem como possibilidades de melhorias em nosso sistema processual, que de fato necessita de mudanças para atender com maior qualidade os litigantes.

  1. Das alternativas ao sistema da Repercussão Geral

Como anteriormente assinalado, estabelece o § 1° do art. 543-A que “para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”. Aqui encontramos uma falha, vez que a norma inserida no ordenamento jurídico para aplacar a generalidade da EC n° 45, também atuou de maneira genérica, não definindo de modo pormenorizado as questões em que há de fato a repercussão geral. Desta maneira, o sentido da norma será fixado pelo entendimento dos próprios ministros da nossa Corte Suprema.

Barbosa MOREIRA nos ensina que, às vezes, a lei se serve de conceitos juridicamente indeterminados, ou porque seria impossível deixar de fazê-lo, ou porque não convém usar outra técnica. Nesse sentido, observamos que o processo de interpretação dos conceitos vagos vem adquirindo cada vez mais importância no mundo contemporâneo porque o uso destes conceitos consiste numa técnica legislativa marcadamente afeiçoada à realidade em que hoje vivemos, que se caracteriza justamente pela sua instabilidade, pela imensa velocidade com que acontecem os fatos, com que se transmitem as informações, se alteram as “verdades” sociais.

Nesse ponto, encontramos o tema problema de nosso trabalho. Se é o próprio STF quem definirá quais são as questões que cabem recurso extraordinário, necessário se faz a criação de critérios precisos e razoáveis, que sirvam de base para a fundamentação das decisões que neguem ou não a admissão destes recursos, para que estas não sejam marcadas pela discricionariedade.

Embora não estejamos frente a conceitos determinados cujos limites sejam facilmente delineados, existem limites que podem ser sugeridos de acordo com a razoabilidade e com o compromisso da Suprema Corte para com os interesses sociais. 

É de conhecimento amplo que o processo de aplicação da norma envolve pelo menos três procedimentos, quais sejam, a interpretação da norma e a busca de seu significado; a análise do caso concreto sob o qual a norma será aplicada e por fim a subsunção entre a norma e o fato, aplicando-a de forma devida. 

Pela técnica jurídica, sabemos que a aplicação da norma deve passar impreterivelmente pela análise do caso concreto, que pode ser inclusive um fato social. Assim, cabe ao STF uma análise pormenorizada dos recursos, pautando-se na realidade social, para averiguar se, aquela demanda, embora não seja acompanhada de diversas outras, de mesma natureza, não repercuta de fato na sociedade.

O que temos o intuito de frisar é que: uma análise quantitativa, levando em conta o número de requisições recursais, ao nosso entender, não é satisfatória para avaliar se determinada matéria repercute ou não socialmente, vez que diversos são os motivos que podem fazer com que uma demanda nem mesmo chegue a ser questionada judicialmente, como, por exemplo, a falta de condições financeiras para o ajuizamento da ação, o desconhecimento dos próprios direitos, a mitificação do Judiciário como sendo um Poder que atende somente aos “mais abastados”, dentre outros.

Modernamente, dentre os aspectos a serem considerados em relação ao exposto no § 1° do artigo 543 – A do CPC, Luiz Rodrigues WAMBIER embasando-se em critérios objetivos, delimita os casos em que haveria repercussão geral.

“Relevância social haveria numa ação em que se discutissem problemas relativos à escola, à moradia ou mesmo à legitimidade do MP para a propositura de certas ações. 

Relevância econômica haveria em ações que discutissem, por exemplo o sistema financeiro da habitação ou privatização de sérvios públicos essenciais, como a telefonia, o saneamento básico, a infra-estrutura, etc.

Repercussão política haveria quando, por exemplo, de uma causa pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com estados estrangeiros ou organismos internacionais”.

Na ausência de disposição legal, a doutrina vem delimitando o tema, elencando as matérias suscetíveis de exame em sede de recurso extraordinário. Esta postura é benéfica ao Direito, porém, não pode ser a única a ser adotada, vem que o entendimento do STF não está vinculado a esta.

 Nesse sentido, se faz necessário a criação de mecanismos de controle de uma possível discricionariedade pelo STF, a fim de se evitar que determinada demanda não seja recepcionada devido a questões políticas ou mesmo práticas, como por exemplo, demandas que não sejam de interesse da política governamental ou que irão abrir precedentes para o aumento recursal nesse juízo extraordinário.

Por tudo exposto, encontramo-nos em uma encruzilhada, se por um lado é válido que se criem mecanismos de controle para a filtragem de feitos em nossa Corte Constitucional, por outro também é justo que o cidadão tenha o direito de demandar, ou seja, mesmo que o cidadão não consiga alcançar o alvo de seu pleito, que ao menos este tenha o direito em reivindicá-lo.

    A nosso ver, a resposta para aplacar essa incongruência deve passar por quatro aspectos principais, quais sejam: i) a análise da cultura processual do nosso país; ii) a intensificação na fiscalização dos trabalhos nas instâncias inferiores; iii) a criação de mecanismos de controle da discricionariedade do STF; iiii) alternativas de pacificação da lide que esgotem a demanda recursal.

  1. Da cultura processual em nosso país:

Como anteriormente ressaltado, nossa cultura processual tem como embrião o direito Romano-germânico, e dessa herança observa-se como característica fundamental a insatisfação.

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