Filosofia cristã

15/01/2016 às 22:46
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Os ideais da filosofia cristão na Idade Média, em especial pela justificação do uso da força como meio de castigo e a transição para a filosofia moderna, bem como o nascimento de um expoente na aplicação das penas: Cesare Beccaria.

     O cristianismo preconizado por Jesus Cristo e posteriormente propagado pelos discípulos e apóstolos, se expandiu após ser reconhecido como religião oficial do Império Romano do Oriente, através do Édito de Milão baixado pelo Imperador Constantino no ano de 313 d.C, por meio do qual foram proibidas as perseguições aos cristãos e concedida liberdade de culto aos mesmos. A doutrina do Cristianismo foi ganhando cada vez mais espaço, e em 390 d.C o Imperador Teodósio proibiu o culto pagão e oficializou o Cristianismo.

     Com o passar do tempo o cristianismo adquiriu mais influência e poder. Porém foi durante o período medieval que exerceu todo o seu domínio, tanto no âmbito moral como político.

     Os ideais filosóficos da religião cristã tiveram forte influência de vários aspectos das doutrinas filosóficas platônicas e aristotélicas. A doutrina original do Cristianismo sofreu várias transformações, o controle absoluto da ética e da moral passou a ser visto sob o prisma da salvação da alma e da conservação dos dogmas da igreja. Tendo como ponto principal a justificativa de que a obediência aos princípios morais é um preceito fundamental para a salvação e para uma maior aproximação de Deus. Assim podemos ver no filme “O Nome da Rosa”, a presença marcante desses princípios, como é o caso do “riso”, em que era atribuída a quem praticasse tal ato a presença do demônio em si.

     Os “hereges” foram duramente perseguidos pela Igreja, por serem considerados “malfeitores da fé cristã ou pode-se dizer da fé em Cristo”, e justamente por contrariarem tais princípios que norteiam o meio cristão. Podemos ver claramente quando essas perseguições tomam o seu ponto culminante nas Cartas de 10 de março de 1208, onde o papa Inocêncio III se vale da afirmação do apóstolo São Paulo em (1° Co 11, 18 – 19), que trata do seguinte assunto: “Eia soldados de Cristo! Eia valorosos cavaleiros da milícia cristã [...]! Apressai-vos a abolir, como Deus vou revelará, a perfídia herética, atacando os seus sequazes com maior segurança que os serracenos, porque são piores que eles” (Mereú, Ítalo, “A morte como pena”, p.22). Dessa maneira o próprio papa convoca os “soldados de Cristo” para lutarem contra os “inimigos da ordem de Cristo” e assim instituir a ordem cristã.

     Durante toda a Idade Média perdurou a pena de morte, mutilações, venefícios e outras formas de aplicação de castigo para os “corrompidos”.

     As doutrinas cristãs de moral e ética foram profundamente influenciadas por dois grandes expoentes da filosofia cristã: Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Estes doutrinadores cristãos foram responsáveis pelo alto grau de aprofundamento e desenvolvimento da filosofia moral e ética cristã, sob a influência da filosofia platônica e aristotélica.

     Santo Agostinho adota a teoria das idéias de Platão, que seria o reconhecimento do homem de parcela da verdade por meio da razão, porém para se compreender a essência da verdade só seria possível por meio da fé. Conceitos como Deus, as forças do bem em confronto com o mal e o diabo, dominantes no período abordado pelo filme, são conceitos propagados por Santo Agostinho, através de sua obra “Cidade de Deus”. Santo Agostinho preceitua que os cristãos podem e devem tomar da filosofia grega pagã o que for importante e útil para o desenvolvimento da doutrina cristã, desde que esteja de acordo com a fé. Por isso o medo de que se descobrisse o livro “A Comédia” de Aristóteles, pois todos os livros estavam interpretados conforme a doutrina cristã medieval e esta obra estava fora do contexto, logo havia o temor de que chegasse ao conhecimento de muitos e o “temor a Deus” se perdesse entre os fiéis.

      Em relação à defesa do uso legítimo da violência pela Igreja católica, o autor de “Cidade de Deus” é considerado “o grande teólogo do fim que justifica os meios” (Mereú, Ítalo p.).  Segundo ele não devemos considerar a violência em si mesma, mas o fim pela qual essa violência é usada. Acrescenta “nem sempre as perseguições são injustas, mas muitas vezes são obras de justiça” (Mereú, Ítalo p.). O Bispo de Hipona firma suas bases filosóficas acerca da perseguição a quem não quiser obedecer aos preceitos emanados da Igreja Católica.

     Santo Tomás de Aquino, outro grande representante da doutrina cristã, muito influenciado pela doutrina de Aristóteles, traz a concepção de que a finalidade do homem é a “felicidade”. Ele formula quatro leis, que são: “lei eterna, lei natural, lei humana e lei divina”.

     Em relação à doutrina católica de perseguição aos hereges ele foi um dos grandes aperfeiçoadores desta, pois defendeu a pena de morte e as mutilações como maneira de preservar o “bem comum”. Segundo Ítalo Mereú em sua obra “A morte como pena”, “se Inocêncio III, com a sua Vergentis in senium, legitimara o emprego da pena de morte por parte do poder secular, será Tomás de Aquino quem fornecerá as razões científicas, ou melhor, racionais – da sua aplicabilidade” (idem, p.28).  Assim escreve o ilustre filósofo: “o bem comum vale mais do que um bem de um único indivíduo. Por conseguinte, esse bem particular deverá ser sacrificado para a salvação do bem comum, ou seja, para que haja ordem na sociedade humana, eles poderão ser mortos” (idem, ibdem). E acrescenta ele “ora, qualquer uma das partes está destinada ao todo. Eis porque, se a saúde do corpo inteiro exige, é louvável e salutar recorrer ao corte de um membro pútrido e gangrenoso. Logo, cada indivíduo está para sua comunidade como a parte está para o todo. Portanto, se um homem com os seus pecados é perigoso e desagregador para a coletividade, é louvável e salutar suprimí-lo, para a conservação do bem comum. De fato, como diz São Paulo, um pouco de fermento pode corromper todo o trigo” (idem, p.30).

     Os princípios de uso da violência pela Igreja são justificados por estes dois grandes doutrinadores cristãos. E será dessa justificativa que se utilizará o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição numa grande perseguição pela Europa, castigando os “frutos podres da vinha de Cristo” e matando milhares de pessoas, sob a justificativa de que estão apenas cumprindo uma missão de manter a ordem e a moral cristã. “O tribunal inquisitorial inclinava sempre a condenação, torturava os suspeitos a fim de arrancar as confissões, mesmo os suspeitos inocentes que não agüentassem as torturas acabavam confessando mesmo inocentes” (www.cfh.ufsc.br).  Podemos ver esses ideais claramente no filme “O Nome da Rosa” quando os representantes de tal tribunal vão fazer os seus interrogatórios utilizam os todos os meios cruéis e também por acreditar que a jovem camponesa era a responsável pela presença do demônio no mosteiro resolvem condená-la para a morte na fogueira, pois ela estava “corrompendo os servos de Deus”.

Transição da Filosofia Cristã para a Filosofia Moderna

     Com o declínio da Idade Média, o advento dos Estados Nacionais, Renascimento e o Iluminismo, as formas de aplicação de castigo e da pena de morte pelo Tribunal da Inquisição vão sendo gradativamente questionadas por intelectuais da época. Esses questionamentos ganham contorno quando Cesare Beccaria edita sua brilhante obra “Dos delitos e das penas”, sendo ele favorável ao “abrandamento das penas e a abolição total da pena de morte” (idem, p.113). A obra de Beccaria está norteada por um pensamento humanitário e revolucionário para a época, pois “faz porta-voz dos protestos da consciência pública contra os julgamentos secretos, o juramento imposto aos acusados, à tortura, a confiscação, declara a pena de morte inútil e proclama a proporcionalidade das penas aos delitos, assim como a separação dos poder judiciário do poder legislativo (“virtualbooks.terra.com.br”, p.4,).

     Beccaria trouxe a noção de acessibilidade às leis, pois assim diz ele: “enquanto o texto das leis não for um livro familiar, uma espécie de catecismo, enquanto forem escritas numa língua morta e ignorada do povo, e enquanto forem solenemente conservadas como misteriosos oráculos, o cidadão, que não puder julgar por si mesmo as conseqüências que devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre seus bens, ficará na dependência de um pequeno número de homens depositários e intérpretes das leis” (“Beccaria, Cesare, Dos Delitos e da Penas,p.24). O que foi usado durante todo o período medieval pela Igreja católica como forma de manipulação, em que apenas aos clérigos era permitido conhecer as escrituras, desse modo o povo somente iria receber a mensagem do evangelho por meio dos “sacerdotes de Cristo”. É o que podemos ver no filme “O Nome da Rosa”, em que no mosteiro havia um enorme acervo de livros de grandes autores e que muito contribuiria para o conhecimento e estavam guardados e só os “escolhidos” podiam ter acesso a essa biblioteca, ou seja, o povo continuaria recebendo apenas o que a Igreja considerava “verdade absoluta”. E não somente as escrituras sagradas foram negadas ao conhecimento do povo como também ás leis. Assim expõe Ítalo Mereú o pensamento de Pascal acerca de o povo ter acesso às leis: “é necessário que o povo não se aperceba da verdade da usurpação; foi concebida no passado de forma injusta, tornou-se justa. É preciso que seja considerada autentica eterna, e que se mantenha o segredo sobre sua origem, e não se queira que tenha logo fim” (Mereú, Ítalo, “A morte como pena”, p.98). Portanto Beccaria faz essa dura crítica a esse sistema oculto, que tem por fim manter o povo sob o controle do que a Igreja acreditava ser “verdade”.

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     Muito utilizado pelo Tribunal do Santo Ofício e duramente criticada por Cesare Beccaria é referente à questão que envolve a aplicação da tortura a um acusado enquanto se faz o processo. Segundo ele “é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo, e procurar fazer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do infeliz”! (Beccaria, Cesare, Dos Delitos e da Penas , 37)

     Ele também traz a concepção de que “um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz” (idem, p.39), o que dá a entender que o “principio da presunção da inocência” tem a sua origem em Beccaria.

     O mais interessante na obra desse ilustre intelectual, foi no aspecto da “proporcionalidade das penas”. Pois o que se via no período medieval eram os indivíduos condenados aos mais cruéis castigos em muitas vezes por uma simples “suspeita” de que teria pacto com o demônio ou que praticou algum ato contrário à doutrina e a fé cristã. Para o Marquês de Beccaria deve “haver uma proporção entre os delitos e as penas” (idem, p.69).

     Portanto pode ser visto a grande contribuição do autor de “Dos delitos e das penas” para o desenvolvimento e humanização, na aplicação de penas e castigos.

     Poder ser visto também que não apenas Beccaria tratou acerca da abolição da pena de morte, como também houve vários intelectuais que trataram sobre este assunto. Dentre esses intelectuais podemos citar Giuseppe Compagnoni, que trouxe e seguinte pensamento: “a sociedade, não tem jamais, por nenhum motivo o direito de matar” (Mereú, Ítalo, “A morte como pena”, p.115). A sua obra “Elementos de Direito Constitucional Democrático”, publicadas em Veneza em 1797, queimados em Ferrara em 1799, diante da “infame arvore da liberdade na presença de todo o corpo docente, e desde então nunca mais reeditados” (idem, ibdem). Apenas sobraram alguns exemplares e apenas algumas bibliotecas italianas o possuem.

     Assim, o período que compreendeu a transição da Idade Média para a Moderna, caracterizou uma mudança do pensamento em relação à aplicação de castigos e da pena morte.

Bibliografia

Morris, Clarence, “Os Grandes Filósofos do Direito”, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1° Edição.

Beccaria, Cesare, “Dos Delitos e das Penas” (Tradução de Torrieri Guimarães), Ed. Martin Claret, São Paulo.

Mereú, Ítalo, “A morte como pena”, Ed. Martins Fontes, São Paulo.

virtualbooks. terra.com.br/freebook/ colecaoridendo/Dos_delitos_e_das_penas.

www.cfh.ufsc.br/~simposio/novo/Filos_Medieval.htm

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Sobre o autor
Darlison Gomes de Lima

Graduado em Direito pelo Centro Universitário - IESB. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes. Autor do artigo "Modulação dos efeitos das decisões do STF no controle de constitucionalidade". Servo do Deus Altíssimo.

Informações sobre o texto

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