INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem a premissa de analisar a problemática referente aos limites da técnica de reenvio total, constantes nas leis penais em branco própria ou heterogênea. Busca-se apresentar do conceito de lei penal em branco criado por Karl Binding e a modalidade de reenvio normativo imprópria ou homogênea, criada por Edmund Mezger.
Busca-se apresentar a chamada banalização do Direito Penal na contemporaneidade, acarretando a temerária “administrativização” e expansão do direito Penal, concernente ao direito penal do risco. O uso abusivo de leis penais em branco, para a manutenção de poderes inerentes a Administração Pública, com a criminalização de condutas que deveriam ser reguladas pelos demais ramos do direito, afronta o Princípio da Subsidiariedade do Direito Penal.
Procura-se demonstrar a correlação de princípios constitucionais, especialmente, no tocante às leis penais em branco heterogêneas, que apresentam duvidosa constitucionalidade, quando ocorre a remissão total à norma de complementação extrapenal, pois, esta delineia a base descritível do injusto, por conter conteúdo proibitivo e não meramente regulamentativo do tipo penal, em afronta direta aos Princípios da Legalidade, Reserva Legal e Separação dos Poderes.
Será analisado o problema específico do núcleo essencial da proibição e a possibilidade da ocorrência do erro de proibição, e a consequente exclusão da culpabilidade constante no terceiro elemento do conceito analítico de crime. A falta dos elementos caracterizadores de certeza no tipo penal e a total remissão à norma extrapenal, acarreta a falta de concepção do proibido pelos destinatários da lei penal, como bem assevera José Cirilo Vargas “as condutas descritas pelo tipo permitem ao cidadão orientar-se no sentido de conhecer o que é desaprovado ou não” (VARGAS.2008, p.165).
Finalmente, em decorrência da falta de posicionamento da jurisprudência brasileira, acerca dos critérios limitadores de remissão das leis penais em branco heterogêneas, apresenta-se a sentença 127/1990, proferida pelo Tribunal Constitucional espanhol, que fixou limites de constitucionalidade à técnica de remissão das leis penais em branco. No cenário atual do Direito Penal, com viés garantista, a obrigatoriedade da lei penal conter elementos necessários em defesa da garantia do tipo é de grande importância, para que todos os destinatários da norma penal incriminadora entendam o que o Direito Penal concebeu axiologicamente, como proibido, e por conseguinte, mereça reprimenda do Estado, em conformidade com a concepção garantista apresentada pelo grande autor italiano Luigi Ferrajoli.
1 BREVE HISTÓRICO, DEFINIÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E A BANALIZAÇÃO DAS LEIS PENAIS EM BRANCO NA CONTEMPORANEIDADE
1.1 O conceito de Karl Binding: as leis penais em branco heterogêneas, próprias ou em sentido estrito
As denominadas leis penais em branco (Blankettstrafgesetz) trata-se de expressão criada por Karl Binding, concebidas como normas que embora cominem sansão penal descrita no preceito primário do tipo penal incriminador, dependem de complementação por outra norma, geralmente de nível inferior, tais como regulamentos, portarias ministeriais, decretos, entre outros, a modo de precisar-lhe o significado e o conteúdo do preceito primário. A gênese conceitual apresentada por Binding refere-se às leis penais branco heterogêneas, objeto da presente pesquisa científica.
Binding sistematizou a diferenciação de norma e lei penal. A norma penal funcionava como um mandamento, uma proposição alheia ao direito posto, tratando-se de um imperativo que se fundamentava no fazer (ação) ou não fazer (omissão), e que é derivado da primeira parte da lei penal, que se entende como preceito primário. A lei penal continha regras gerais constante no direito positivado, com a descrição fática da ação e a pena correspondente ao delito praticado, o que atualmente concebe-se como preceito primário e preceito secundário constante no tipo penal.
AntonioDoval Pais menciona que “la expressión ley penal en blanco (que se corresponde con la tradución del término Blankettstrafgesetz) se debe a Binding. Este autor la propuso por primera vez en 1872.” (PAIS.1999, p.96). Binding criara esta técnica legislativa muito peculiar e largamente utilizada na atualidade, principalmente em países ditos autoritários, que a unicidade do poder encontra-se com o Poder Executivo. A expressão leis penais em branco, criada pelo mencionado autor, foi difundida pelos tribunais na Alemanha, especialmente Tribunal de Reich, também com a denominação de “leis penais cegas.”
Sobre as leis penais em branco criada por Binding, Antonio Doval Pais menciona que “para hacer referência e un particular grupo de normas que recogíael Código penal en las que, aunque se preveía la sanción a aplicar, se asignada a supuestos de infracción de disposiciones establecidas por autoridades administrativas” (PAIS. 1999,p.96). O renomado autor espanhol se refere às leis penais em branco criadas Binding, que apresentavam algumas características importantes, tais como a como a proibição estabelecida seria complementada por uma autoridade federal, local ou por outra autoridade de um poder legislativo particular[1].
Para Binding, a lei penal em branco tratava-se de um corpo errante em busca de sua alma, pois, a autoridade administrativa correspondente complementaria o preceito primário da lei penal, que se encontrava incompleta. Assim, Binding criava as leis penais em branco heterogênea, de duvidosa constitucionalidade na atualidade, em especial, quanto a remissão total à norma de complementação heterovitelínea.
Segundo Luiz Flávio Gomes e Antonio Garcia- Pablos de Molina, as leis penais em branco heterogêneas, em sentido estrito (ou própria) “são aquelas que exigem um complemento normativo que emana de outra instância legislativa (ou seja, outra instância distinta do legislador). Exemplo: Lei de Drogas (arts. 28 e 33 da Lei 11.343/2006)” (GOMES; MOLINA.2012, p.559). Portanto, tal definição refere-se às normas penais em branco heterogêneas, que Binding se referia, como legesimperfectae, complementada por autoridade não imperial, que poderia acrescentar à matéria da proibição.
1.2 O desenvolvimento apresentado por Edmund Mezger e as leis penais em branco homogêneas, impróprias ou em sentido lato
Como demonstrado, Karl Binding apresentou como importante inovação às leis penais em branco heterogêneas, quando “el complemento provegna de instancias normativas inferiores” (PAIS.1999, p.101). Todavia, Edmund Mezger contribuiu para o desenvolvimento das leis penais em branco, antes apresentadas por Binding. Para o autor alemão, a norma de complementação se encontrava em normas de nível inferior. Entretanto, Mezger apresentou outras possibilidades de técnica de reenvio das leis penais em branco, sendo esta realizada por outra lei emanada da mesma instância legislativa, pautando-se pela homogeneidade da fonte material de produção da lei penal.
Binding se limitou a se referir às leis penais em branco em sentido estrito ou heterogêneas, todavia, Mezger criara outra modalidade denominada leis penais em branco em sentido amplo ou homogêneas, colocando-as no âmbito da teoria do tipo penal. Para Mezger, o complemento normativo poderia advir da mesma lei que estava à norma complementada ou de outra lei, contudo, de uma mesma fonte material.
O objeto desta pesquisa cientifica se concentra nas leis penais em branco heterogêneas, por apresentar maiores problemas de técnica legislativa. Contudo, o desenvolvimento apresentado por Mezger foi de grande importância para a ciência do Direito Penal, contribuindo com criação de uma nova técnica de reenvio normativo.
Ainda, Mezger classificou os tipos penais em tipos penais abertos e tipos penais fechados. O tipo penal fechado são aqueles que possuem a descrição completa da conduta típica proibida, todavia, Mezger elencou a lei penal em branco como regra jurídica de tipo penal aberto, pois, necessitaria de complemento que viria de instrumento jurídico externo ao próprio tipo penal (BUSATO, 2013).
Todavia, os institutos dos tipos penais abertos e as leis penais em branco não podem ser confundidos, como ocorre com vários estudiosos do Direito Penal. Portanto, as leis penais em branco não são tipos penais incompletos no sentido de tipos abertos. Em síntese, nos tipos penais abertos o juiz como intérprete realiza a completude da regra jurídica, por meio de critério axiológico, enquanto nas leis penais em branco, a norma de complementação que realiza a completude da lei, que Binding chamava de imperfeita.
1.3 As leis penais em branco e o convite à banalização do direito penal: o fenômeno da “administrativização” do direito penal
A mutabilidade das relações jurídicas e a morosidade do processo legislativo brasileiro demonstram a viabilidade legislativa das leis penais em branco heterogêneas. Todavia, a utilização das técnicas de reenvio deve ter como parâmetro o bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal, ainda, a remissão deve ser excepcional e estritamente necessária, em proteção à função garantidora do tipo penal. Assim, concebe Antônio Doval Pais “la ley em blanco como un instrumento absolutamente excepcional por resultar estrictamente necesario, imprescindible, y no meramente conveniente para a regulación de ciertas materias” (PAIS. 1999, p.145).
Como mencionado, as várias mudanças das relações jurídicas aliada à criatividade delitiva dos agentes, faz com que o legislador adote providências intervenientes em matéria penal, em concordância com as aspirações sociais, pela a intervenção da grande mídia ou pelo agir pautado em interesses políticos partidários, com clara concepção Lassaliana[2].
Independentemente do fim a ser perseguido pelo legislador, as leis penais em branco heterogêneas podem ensejar uma rápida intervenção legislativa, por simples alteração do conteúdo das resoluções, portarias ou demais atos administrativos, contudo, desde que satisfeitas as exigências de certeza do tipo penal, consoante ao núcleo essencial da conduta proibida ou ordenada.
O modelo minimalista do Direito Penal contemporâneo deve ser perseguido, juntamente com observância de garantias políticos-criminais a limitar o poder punitivo do Estado, pela legalidade estrita, assim, a excepcionalidade da técnica de remissão às normas de complementação das leis penais em branco heterogêneas, deve ser orientada por parâmetros legislativos garantistas, conforme as exigências do Estado Democrático de Direito e de Princípios Constitucionais.
Todavia, a técnica de reenvio legislativo apresenta largas utilizações na era contemporânea, fruto de uma banalidade administrativa do Direito Penal. Segundo Eugênio Raul Zaffaroni “quando assim se teorizou as leis penais em branco eram escassas e insignificantes: hoje, sua presença é considerável e tende a superar as demais leis penais, como fruto de uma banalização e administrativização da lei penal.” (ZAFARONI. 2003, p.205).
Portanto, o uso indiscriminado de normas penais em branco apresenta clara tentativa de manutenção dos poderes da Administração Pública, em especial, no que tange ao Poder de Polícia, constante no art.78 do Código Tributário Nacional, aplicável como norma complementadora ao Direito Administrativo.
Com maestria, Jesús Maria Silva Sánchez assevera que o direito penal “que reagiria a posteriori contra um fato lesivo individualmente delimitado, se converte em um direito de gestão de riscos gerais e, nessa medida, está “administrativizado” (SANCHEZ.2011, p 48). Assim, o uso banal e irrestrito das leis penais em branco, faz com que os destinatários da norma penal em branco encontrem-se em uma situação de direito penal do risco, que não condiz com a nova concepção garantista de política criminal proposta por Luigi Ferrajoli.
Nesta linha, a Lei 9.605/98, que define os crimes ambientais, demonstra o uso excessivo de normas penais em branco pelo legislador ordinário, nos mais variados tipos penais incriminadores. Com aparente tentativa de “administrativizar” o Direito Penal. Assim, reclamava-se à época da edição da mencionada lei ambiental a ineficácia de normas meramente administrativas, todavia, o legislador ambiental excedeu no uso de tipo penal em branco, com aparente inconstitucionalidade de alguns dispositivos penais.
Assim, na remissão à norma de complementação na mencionada lei ambiental, o legislador utilizou abusivamente de termos no preceito primário do tipo penal, tais como, licenças, permissões, autorização ambiental, leis e regulamentos administrativos, denotando se tratar de lei penal em branco heterogênea, todavia, com viés administrativo-penal, que afronta claramente o Princípio da Intervenção Mínima.
Guilherme de Souza Nucci esclarece que “a lei penal não deve ser vista como primeira opção (prima ratio) do legislador para compor os conflitos existentes em sociedade e que, pelo atual estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade, sempre estarão presentes.” (NUCCI. 2013, p.19). Portanto, o Direito Penal não deve atuar primariamente ou juntamente com o Direito Administrativo, devido ao seu caráter subsidiário, deve ser invocado em ultima ratio, quando somente os demais ramos do direito se tornarem insuficientes, em consonância com o Princípio da Fragmentariedade.
Em suma, o fenômeno da “administrativização” do Direito Penal, trata-se, em síntese, do chamamento deste, para auxiliar nas resoluções de contingências sociais, que deveriam ser resolvidos preliminarmente pelos demais ramos do direito.
Assim, o Direito Penal deve ser invocado em ultima ratio, importando-se com a proteção dos bens jurídicos mais importantes e necessários à vida em sociedade. E, por conseguinte, deve a lei penal interferir o mínimo possível na vida dos cidadãos e não deve esta, transmudar-se em direito de gestão de riscos gerais, como mero instrumento de manutenção dos poderes da Administração Pública, ou seja, com a finalidade de inibir condutas administrativas de caráter fiscalizatório ou como meio de arrecadação de tributos para os cofres públicos.
2 PRINCÍPIOS LIMITATIVOS À TÉCNICA DE REMISSÃO À NORMA DE COMPLEMENTAÇÃO HETEROGÊNEA
2.1 O Princípio da Reserva Legal e a matéria penal
O Direito Penal, como todo ramo do Direito, possui princípios e peculiaridades que lhe são próprios, propiciando autonomia em relação aos demais ramos da ciência jurídica. Todavia, a fonte de produção do Direito Penal coincide com os demais ramos do Direito. O Poder Legislativo da União possui competência legislativa privativa para legislar em matéria penal, portanto, a fonte material do Direito Penal encontra-se previsão constitucional no art. 22, I, da Constituição da República Federativa do Brasil, com possibilidade de delegação aos estados federados por intermédio de edição de Lei Complementar.
O fundamento do Princípio da Reserva Legal reside na possibilidade do Poder Legislativo (Congresso Nacional), legislar em matéria penal, somente por Leis Ordinárias ou por Leis Complementares, assim, assevera Rogério Greco que, quando ocorre a “menção ao Princípio da Reserva Legal estamos limitando a criação legislativa, em matéria penal tão somente às leis ordinárias-que é a regra geral- e as leis complementares” (GRECO. 2011, p. 104).
Com efeito, tal postulado veda que Medidas Provisórias, Leis Delegadas ou Atos Administrativos criem tipos penais. Assim, a lei penal em branco que realiza a remissão total à norma de complementação infringiria o Princípio da Reserva Legal, pois, o Poder Executivo legislaria em matéria penal, todavia, os tribunais superiores no Brasil, não se posicionaram a este respeito.
Em suma, as leis penais em branco heterogêneas utiliza-se de técnica de reenvio à norma de complementação pertencente a poder distinto daquele que produziu materialmente a regra jurídica, ou seja, a completude da norma advém de fonte diversa daquela que editou a norma que necessita ser complementada.
Todavia, a técnica legislativa adotada pelo legislador ordinário (remissão total ou parcial à norma de complementação), que definirá a possibilidade de ofensa ao Princípio da Reserva Legal, com a respectiva transferência de competência material privativa ao Poder Executivo, que não tem autorização constitucional para escusa finalidade mencionada.
Nesta linha, Luiz Flávio Gomes e Antonio Pablos de Molina defendem que não se pode permitir que o “caráter delituoso de uma conduta possa ser determinado por uma autoridade que, constitucionalmente, não está facultada para isso” (GOMES; MOLINA. 2012, p. 565).
2.2 O Princípio da Legalidade Penal e a Lei Penal como fonte formal imediata
A Lei Penal é considerada pelos doutrinadores, fonte formal imediata do Direito Penal, assim, somente a Lei em sentido estrito poderá criar crimes e cominar penas, estruturalmente, por meio do tipo penal incriminador (preceito primário e preceito secundário). O legislador ordinário preliminarmente, ao editar a regra jurídica, realiza valoração da conduta que seria objeto de reprimenda penal, assim, prescreve a ação ou a omissão de acordo com o imperativo da norma e orientado por questões de política criminal define o delito, com a obrigatória observância ao Princípio do Devido Processo Legislativo.
O Princípio da Legalidade está previsto no art.5º, inciso XXXIX, da Constituição da República Federativa do Brasil, que menciona “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL.1988). Alguns autores atribuem o Princípio da Legalidade à Magna Carta de 1215 de João Sem Terra, na Inglaterra.
O autor que primeiro tratou acerca do Princípio da Legalidade foi Anselm von Feuerbach, no século XIX, criando a fórmula nulla poena nullum crimen sine lege, para descrever o mencionado postulado ligado ao Positivismo Jurídico.
Segundo Luigi Ferrajoli a menciona fórmula “atua como norma de reconhecimento de todas as prescrições penais legalmente vigentes ou positivamente existentes, e somente delas, tem para o jurista o valor de uma regra meta-científica” (FERRAJOLI. 2002, p.302). Acrescenta Ferrajoli, que “somente as leis (e não também a moral ou outras fontes externas) dizem o que é delito” (FERRAJOLI. 2002, p.302). Portanto, o Princípio da Legalidade inadmite que outras fontes, que não seja a Lei Penal prescrevam condutas delitivas que mereçam a reprimenda penal do Estado.
O Princípio da Legalidade possui funções importantes, que refletem na órbita do Direito Penal, funções estas fundamentais, que estão intimamente ligadas ao Estado Democrático de Direito, que visam limitar o poder punitivo do Estado, protegendo os indivíduos contra as condutas arbitrárias das autoridades investidas de poder estatal.
O Princípio da Legalidade proíbe a retroatividade da lei penal, salvo para beneficiar o acusado, a proibição de criação de crimes e penas pelos costumes, o emprego de analogia para criar delitos e incriminações, salvo em benefício do réu, e em especial, as incriminações vagas e indeterminadas, pois, nesta seara reside às leis penais em branco heterogêneas com remissão total à norma de complementação objeto da presente pesquisa científica, porque o tipo penal incriminador carece de elementos de certeza e segurança jurídica aos destinatários da norma penal.
2.3 A Lei certa: O problema da Regulatividade e Taxatividade nas leis penais em branco heterogênea
O Princípio da Legalidade funciona como instrumento de limitação do poder punitivo do Estado, em face dos destinatários da lei penal. Portanto, a lei penal deve ser certa, conforme preleciona o brocado romano nullum crimen nulla poena sine lege certa. Assim, o Princípio da Legalidade obriga que os elementos constantes do tipo penal incriminador contenha definição precisa do proibido. Como bem assevera Misabel de Abreu Machado Derzi, “na tipicidade, se assentam os princípios básicos da segurança e da estabilidade das relações jurídicas” (DERZI. 2007, p.31). Assim, o tipo penal deve ser delineado de forma que os destinatários da lei penal entendam o conteúdo proibitivo da norma penal e a sua precisa regulação.
Historicamente, o século XX foi palco da chamada crise do Princípio da Legalidade estrita, pois, países totalitários abusaram na utilização de elementos normativos do tipo, autorizaram a interpretação da lei penal utilizando-se analogia in malam partem e, principalmente, das leis penais em branco heterogêneas, com o fim de concentrar no Poder Executivo a tipificação da conduta delitiva ou a interpretação axiológica do tipo, conforme o caso concreto. Nesta linha, Ferrajoli descreve que:
Na Alemanha nazista uma lei de 28 de junho de 1935 substituiu o velho art.2º do Código Penal de 1871, que enunciava o principio da legalidade penal, pela seguinte norma: será punido quem pratique um fato que a lei declare punível ou que seja merecedor de punição, segundo conceito fundamental de uma lei penal e segundo o são sentimento do povo. Se, opondo-se ao fato, não houver qualquer lei penal de imediata aplicabilidade, o fato de punir-se-á sobre a base daquela lei penal cujo conceito fundamental melhor se ajuste a ele (FERRAJOLI. 2002, p. 309).
O Código da República Russa de 1922 seguiu esta mesma sistemática, que perdurava à época, visando a afastabilidade da legalidade estrita no ordenamento jurídico russo.
A utilização de elementos normativos do tipo e de leis penais em branco (esta última criada pelo jurista alemão Binding, como mencionado), produziu uma crise do princípio da legalidade em decorrência de comportamentos autoritários que pairou sobre o século passado. Somente após a Segunda Guerra Mundial, com instrumentos idealizadores de direitos humanos, a elevação da dignidade da pessoa humana com viés ético Kantiano, que o Princípio da Legalidade penal fora reafirmado e sedimentado pela maioria das nações.
As leis penais em branco, seja heterogênea ou homogênea, como qualquer outra lei penal trata-se de normas penais regulativas, que segundo Ferrajoli é “a norma que regula comportamento qualificando-o deonticamente como permitido, proibido ou obrigatório e condicionado à sua comissão ou omissão a produção de efeitos jurídicos que prevê.” (FERRAJOLI.2002, p.402). Assim, as leis penais em branco, tem caráter regulador, e por conseguinte, necessita de clareza e certeza jurídica para o devido cumprimento do mandamento normativo de caráter obrigatório, constante em quaisquer normas jurídicas penais.
Robert Alexy ao realizar uma construção acerca do conceito e validade do Direito e contrapor ao positivismo jurídico de Hans Kelsen, menciona que “Every Law or rule is command[3]” (ALEXY. 2011, p.20), assim, as leis penais devem ser taxativas e estas devem delinear o comando a ser seguido. Por se tratar de normas regulativas que possuem qualificação deontológica, que pautam pelo permitido, proibido ou obrigatório, dos comportamentos valorados que devem ser seguidos pelos destinatários.
Nesta senda, as leis penais em branco heterogêneas, com remissão total à norma de complementação, carecem de taxatividade (lex certa), pois, os destinatários da norma penal não conseguem entender a regulação do proibido imperativo da norma, que será complementada pela norma de complementação de natureza administrativa, ensejando, portanto, insegurança jurídica e incerteza quanto a aplicação da norma em branco e da sua incidência.
3 O PROBLEMA DA TÉCNICA DE REENVIO ABSOLUTO DAS LEIS PENAIS EM BRANCO HETEROGÊNEAS
3.1 O tipo penal como valoração do comportamento humano
O tipo penal está intimamente ligado à concepção de valor. O legislador por escolha de Política Criminal, tutela determinados valores e os transforma em bens jurídicos, considerados mais importantes a serem protegidos pelo Direito Penal, em consonância com o Princípio da Subsidiariedade.
Os valores tutelados pela norma são valores de natureza jurídica, na medida em que entra em contato com a órbita da ciência do Direito. Como bem assevera José Cirilo de Vargas, “isso não quer dizer que fora dessa relação ele não tenha também outro significado: antes de ser um valor jurídico é um valor social” (VARGAS. 2008, p.4).
Assim, anterior à fase propriamente jurídica de elaboração da lei penal, tem-se uma análise contextual histórico-social do comportamento humano. A inserção de valores sociais em determinados grupos de indivíduos é preponderante para a construção do tipo penal incriminador. Portanto, para o mencionado autor, “é obvio que o Direito não tutela senão aquilo que já foi objeto de valoração: em outras palavras, a valoração precede a tutela” (VARGAS. 2008, p.6).
Para que os cidadãos compreendam o fato punível em sua integralidade, levando em conta a realidade social e comportamental dos indivíduos, os acontecimentos que circundam a vida em sociedade e a sua respectiva realidade fática, o legislador ao elaborar a lei penal valora as condutas que serão objeto do tipo penal incriminador.
Nesta linha, a ordem jurídica necessita formular de maneira mais exata possível os seus juízos de valores, tarefa esta que não se pode estar tão somente afeta a atividade do julgador, tal como ocorre em tipos penais que contenham elementos normativos[4], vindo a acarretar aos destinatários da lei penal incontestável insegurança jurídica, por ocasionar imprecisão tipológica, e por conseguinte, a utilização de especial juízo de valor do intérprete.
Portanto, a criação legislativa, tem-se em primeiro momento a aferição dos comportamentos humanos, considerados importantes pelo legislador, que lesam ou expõem a risco de lesão de valores considerados importantes pelo Direito Penal, transmudando estes valores em bens jurídicos penais.
De acordo com cada momento histórico-social, o legislador prescreve, axiologicamente, os comportamentos que serão punidos, por intermédio de normas proibitivas ou mandamentais. Assim, utiliza-se do tipo penal, que é o instrumento que garante ao Estado e aos cidadãos orientar-se de acordo com prescrição constante nos preceitos que o compõe.
A prescrição tipológica deve respeitar o Princípio da Legalidade, apresentado pela conhecida fórmula nullum crimen sine lege, que obriga o legislador ordinário (nos limites de suas atribuições constitucionais), a imposição de condutas obrigatórias aos destinatários da norma penal. Assim, extrai-se que o Direito funciona como um sistema de limites, todavia, a ciência do Direito visa com a incidência da regra jurídica, a eficácia social e a correção material (ALEXY, 2011).
Assim, acerca do tipo penal Rogério Greco menciona que “quando a lei em sentido estrito descreve a conduta (comissiva ou omissiva) com o fim de proteger determinado bem cuja tutela mostrou-se insuficiente pelos demais ramos do direito, surge o chamado tipo penal” (GRECO.2011, p.155). O Princípio da Legalidade juntamente com o tipo penal, representam limitações do poder punitivo do Estado e funciona com a base descritível do delito.
Acrescenta, José Cirilo de Vargas “não basta que o comportamento do agente seja uma negação de valores de maneira reprovável, para que automaticamente, seja imposta a pena, é necessária que a ação seja típica” (VARGAS. 2008, p.20). A conduta prescrita no tipo penal, além de ser formalmente típica, deve conter a exata descrição do comportamento humano, situação que não ocorre na técnica de remissão total à norma de complementação heterogênea, devido a omissão do núcleo essencial da proibição.
Enfim, o problema da remissão total à norma de complementação das leis penais em branco heterogêneas residem nesta senda, e por conseguinte, pela falta de taxatividade na lei penal, pois, não se tem a precisa descrição do comportamento humano valorado pelo Direito Penal como proibido, no preceito primário do tipo penal.
Neste tipo de técnica de reenvio, quem prescreverá a conduta proibida é o Poder Executivo, por meio de resoluções, decretos e demais atos administrativos, assim, os destinatários da lei penal não conseguem conceber o proibido ou permitido constantes nestas lex imperfectae, pois, o preceito primário da lei penal, além de necessitar de complementação, carece de explícita demonstração no tipo penal do comportamento ilícito, com afronta temerária a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, no que tange ao Princípio da Reserva Legal e ao Princípio da Separação de Poderes, sendo este último apresentado pelo Barão de Montesquieu em sua importante obra[5].
3.2 O conhecimento do injusto e as exigências de certeza no tipo penal nas leis penais em branco heterogêneas
Em países que adotam a matriz Civil Law, a lei se apresenta como fonte imediata do Direito Penal, apresentando função norteadora, por ser concebida de generalidade e abstração. A lei em sentido formal se dirige a todos os indivíduos, sem distinção, tais como particulares, magistrados, membros do Ministério Público e demais autoridades públicas.
Em matéria penal, para que os destinatários da lei saibam se determinada conduta praticada é proibida pelo Estado, deve-se recorrer exclusivamente à Lei, pois, somente a lei penal em sentido estrito (Lei Complementar ou Lei Ordinária), incumbe a tarefa de proibir comportamentos, sob a ameaça de coerção estatal, em consonância com o Princípio da Legalidade.
Assim, após o legislador valorar condutas consideradas importantes pelo Direito Penal e elevá-las ao status de bem jurídico penal, utiliza-se da lei penal para a prescrição do injusto. Contudo, não basta a mera edição da lei, esta deve estar em conformidade com o Princípio da Taxatividade, comumente apresentado pela fórmula nullum crimen nulla sine lege certa, os elementos constantes no tipo penal incriminador devem conter a precisa definição do proibido.
No que se refere às leis penais em branco heterogêneas, devido a incompletude tipológica e a necessária remissão à norma de complementação, proveniente de fonte de produção distinta do Poder Legislativo, o modelo da conduta proibida deve ser precisa e apresentar certeza quanto a incidência da lei penal, para que se possa ser entendido os limites da proibição por todos os destinatários da lei penal.
Em suma, a conduta considerada reprovável pelo Estado, constante nas leis penais em branco heterogêneas, deve ser demonstrada de forma expressa e mais completa possível pelo tipo penal, pois, a conduta delituosa precisa ser formalmente típica e materialmente lesiva a bens jurídicos valorados pelo Direito Penal. Além de conhecida previamente pelos destinatários da lei penal, conforme o Princípio da Legalidade (Lex praevia).
Assim, excepcionalmente, o legislador deve recorrer à utilização das chamadas leis penais em branco, pois, tais normas penais não apresentam exigências de certeza, em proteção a função de garantia do tipo e do Princípio da Taxatividade, que deve permear as leis penais.
3.2.1 O que é núcleo essencial da proibição?
A técnica de reenvio normativo das leis penais em branco deve ser pautada pelo elemento de certeza na descrição da lei penal. O tipo penal, além de prever a pena, deve conter o núcleo essencial da proibição. Segundo Antonio Doval Pais “el legislador penal fije em la Ley lo que se ha denominado como el núcleo essencial de la prohibición y se satisfagan las exigencias de certeza” (PAIS.1999, p.165).
Não obstante que, a conduta considerada delituosa, fique suficientemente precisa com o complemento indispensável da norma heterogênea à que a lei faz remissão, trazendo a possibilidade de que os destinatários tenham total conhecimento do que será objeto de proteção do Estado.
Acrescenta o mencionado autor, que “las leyes em blanco dependerá de que éstas limiten suficientemente las possibilidades de integracíon del branco estabelecendo una descripción precisa del comportamiento prohibido, y solo cuando existan razones técnicas y político criminales muy precisas y evidentes” (PAIS.1999, p.142).
Assim, a lei penal em branco necessita conter de elementos básicos, essências de demonstração daquilo que se proíbe. O núcleo essencial da proibição concebe ao tipo penal a exigência de certeza aos destinatários da lei penal. Como bem assevera, Antonio Doval Pais:
cabría entender que, por el caráter nuclear y essencial al que se refiere dicha exigencia, bastaria con que la Ley penal contuviera una referencia a la clase de conducta que se trata y que remitiera la determinación concreta de otros extremos (su contenido concreto, la ocasión em la que ha de ser realizada, etc) a las normas extrapenales. Pero, de proceder así, no determinaría propriamente, en términos de certeza, cuál es la conducta penalmente prohibida porque las referencias de este género tan solo pueden dar cuenta de la naturaleza del comportamiento y, acasom del sector de actividad al que se dirige la intervencíon penal (PAIS.1999, p. 165).
Todavia, como ocorre em alguns tipos penais constantes no ordenamento jurídico brasileiro, quando a lei penal em branco heterogênea omite ou permite que o núcleo essencial da proibição, seja complementado por ato administrativo oriundo do Poder Executivo, apresenta duvidosa constitucionalidade, por desrespeito ao Princípio da Reserva Legal, consagrado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Assim, para alguns cientistas do Direito, a devida utilização do núcleo essencial da proibição, contribui para com uma maior certeza em limitar a delegação de matérias penais a outros poderes que não possuem competência legislativa, pois, no Brasil, quem tem a competência privativa em legislar em matéria penal é o Congresso Nacional.
Em suma, o núcleo essencial da proibição deve estar constante em todos os tipos penais em branco, para que se satisfaçam as exigências de certeza e a função de garantia do tipo penal sejam preservados e a sua caracterização se funda, basicamente, na descrição de todos os elementos constantes do fato típico punível que será objeto de reprimenda estatal por intermédio do Direito Penal.
Todavia, a maioria dos autores defendem que as leis penais em branco devem conter o chamado núcleo essencial da proibição. Em contrapartida, a doutrina pátria e internacional, ainda não se debruçaram para a consecução de uma construção jurídica conceitual do mencionado instituto jurídico, para uma maior evolução da Ciência do Direito Penal, ocorre de forma simplória a menção do mencionado instituto.
O penalista Rogério Greco afirma que há prevalência no tocante à posição doutrinária, que “entende não haver ofensa ao Princípio da Legalidade quando a norma penal em branco prevê aquilo que se denomina núcleo essencial da conduta” (GRECO.2011, p.66). Como se vê no renomado autor não conceitua o instituto in casu, apenas cita o autor Juan Carlos Carbonelli, que prescreve:
A técnica das leis penais em branco pode ser indesejável, mas não se pode ignorar que é absolutamente necessária em nossos dias. A amplitude das regulamentações jurídicas que dizem respeito sobre as mais diversas matérias, sobre as que pode e deve pronunciar-se o Direito Penal, impossibilita manter o grau de exigência de legalidade que se podia contemplar no século passado ou inclusive a princípio presente. Hoje, cabe dizer que, desgraçada mas necessariamente, temos que nos conformar com que a lei contemple o núcleo essencial da conduta (GRECO.2011, p. 67).
Nesta linha, igualmente, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina, limitaram-se apenas em mencionar as seguintes decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional espanhol, com a respectiva remissão ao autor Luzón Peña, sem definir o que vem a ser o núcleo essencial da conduta proibida:
Nosso STF, na mesma linha do Tribunal Constitucional espanhol, tem convalidado o que acaba de ser descrito sempre que a lei penal em branco contenha por si só, “o núcleo essencial da conduta proibida”, ou seja, a conduta, o grau de afetação do bem jurídico etc. (Sentenças do Tribunal Constitucional espanhol 127/1990, de 5 de julho; 118/1992, de 16 de setembro; 111/1993, de 25 de março; 53/1994, de 24 de fevereiro etc.) (GOMES; MOLINA. 2012, p.565).
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, seja por meio de ação constitucional em controle difuso, controle concentrado de constitucionalidade (ADI), ou pela via do remédio heróico Habeas Corpus, não se manifestou acerca dos limites da remissão à norma de complementação das leis penais em branco (homogênea ou heterogênea), o que não corrobora com o apresentado acima pelos renomados autores.
Portanto, o núcleo essencial da proibição é amplamente citado pelos doutrinadores, todavia, não há atualmente critérios jurídicos científicos seguros, para definir que determinado tipo penal está maculado pela inconstitucionalidade, em desrespeito ao Princípio da Legalidade.
Assim, a problemática encontra-se na técnica de reenvio total à norma de complementação heterogênea. Por exemplo, a Lei 7.492/1986 que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, em seu art. 22, prescreve que “efetuar operações de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas no País” (BRASIL.1986). A norma de complementação encontra-se na Circular expedida pelo Banco Central do Brasil (BACEN).
Assim, para que os destinatários da norma entendam o proibido, devem recorrer a mencionada circular, o BACEN que definirá o proibido por intermédio de um simples ato administrativo, portanto, haverá clara violação do Princípio da Legalidade, Reserva Legal e Separação dos Poderes, e a consequente, declaração de inconstitucionalidade. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, mesmo diante da grande importância desta temática, ainda não se posicionou acerca dos limites a remissão à norma de complementação das leis penais em branco heterogênea.
3.2.2 O desconhecimento do injusto e a possibilidade de exclusão da culpabilidade por erro de proibição nas leis penais em branco heterogênea
O delito é concebido para a maioria dos autores{C}[6], como fato típico, ilícito e culpável, conforme o conceito analítico tripartite de crime. A corrente tripartida é amplamente majoritária na doutrina brasileira, abrangendo os casualistas, finalistas e funcionalistas. Importante pontuar que o Brasil adota a teoria finalista de Welzel, desde 1984, com a reforma ocorrida no Código Penal ainda vigente.
Neste momento, importa mencionar o terceiro elemento do conceito analítico de crime, ou seja, a culpabilidade. Segundo Guilherme de Souza Nucci, a culpabilidade trata-se de elemento essencial do conceito analítico de crime, por apresentar relevante fator ético para a concretização da figura delituosa, “visto representar o juízo de censura atribuível ao autor do fato típico e ilícito (injusto penal); sem a reprovação social, pouco importa haver injusto, pois, crime não é (NUCCI. 2013, p. 53).
Ainda, o direito impõe a todos o conhecimento da lei, a partir do momento em que esta é devidamente publicada no Diário Oficial e passado, conforme o caso, o período de vacatio legis, se previsto em lei. Após a mencionada publicação, torna-se a lei penal, em tese, presumivelmente conhecida por todos os destinatários.
Portanto, a culpabilidade pode ser entendida como a possibilidade de reprovação do agente no tocante a prática de um fato típico e ilícito. Quanto ausente a culpabilidade não há que se falar em delito.
A culpabilidade se encontra na fórmula nullum crimen sine culpa, que demonstra a impossibilidade de atribuir ao agente fato, que não esteja revestido de reprovabilidade social, verificado quanto a análise do terceiro elemento do conceito da analítico de crime. Assim, para que não ocorra a imputação de um delito culpável, deve-se recorrer ao chamado erro de proibição, que incide sobre a punibilidade do fato, pelo desconhecimento da infração constante na lei penal.
Diante de todo o exposto, encontra-se a problemática das leis penais em branco heterogêneas com remissão total à norma de complementação. Existem tipos penais no ordenamento jurídico brasileiro que apresentam duvidosa constitucionalidade, por clara omissão do núcleo essencial da conduta proibida.
Exemplifica-se, como mencionado no tópico anterior, a Lei 7.492/1986 que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, em seu art. 22, prescreve que “efetuar operações de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas no País” (BRASIL.1986). A autorização encontra-se em norma de complementação expedida pelo Banco Central do Brasil (BACEN), por intermédio várias Circulares expedida pelo mencionado órgão[7], vindo a acarretar o fenômeno da sucessão das leis penais em branco no tempo. As Circulares mencionadas, apresentavam tecnicismo exacerbado dificultando, portanto, o conhecimento destas por parte dos destinatários da lei penal em branco.
O mesmo ocorre com o art. 34 da Lei 9.605/1998, que define os Crimes Ambientais, ao mencionar “art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente” (BRASIL.1998). Igualmente, não clara demonstração do elemento de certeza, conforme preleciona o Tribunal Constitucional espanhol, pois, a depender do caso concreto, incorreria o pescador em erro de proibição, diante do desconhecimento constante na lei penal e pela baixa reprovabilidade da conduta. O órgão ambiental competente, que pertence ao Poder Executivo, mencionará se o ato de pescar, que para o homem médio é lícito, se tornará ilícito a depender da sua discricionariedade, contendo o ato administrativo conteúdo proibitivo, que enseja, como já mencionado neste trabalho, ofensa aos Princípios da Legalidade e Reserva Legal.
Assim, a remissão total à norma de complementação das leis penais em branco heterogêneas, pode ensejar conforme o caso, escusável desconhecimento da ilicitude do fato, e a consequente entendimento pela inexistência de crime.
Defende-se nos casos apresentados, duvidosa constitucionalidade das leis penais em branco heterogêneas, com remissão absoluta à norma de complementação administrativa.
Portanto, se demonstrada a inexistência do núcleo essencial da proibição no tipo penal e a técnica de reenvio normativo ocorrer de forma absoluta, atribuindo a norma de complementação heterogênea (de natureza administrativa) toda a base descritível do delito, e não meramente regulamentativo ou complementário. Assim, poderá o agente incorrer em erro de proibição, além de violação ao princípio da reserva legal e ao princípio da legalidade no tocante a lege certa.
3.3 A técnica de reenvio total à norma de complementação heterogênea e a função de garantia do tipo penal
A maioria dos doutrinadores no Brasil, advoga a constitucionalidade das leis penais em branco, por apresentarem viabilidade legislativa. A flexibilização na formulação dos tipos penais apresentam ponto positivo à mencionada técnica. Acerca das leis penais em branco, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina prelecionam que:
Em determinados âmbitos da moderna criminalidade (contra o meio ambiente, urbanismo, ordenação do território, atividade socioeconômica e financeira, funcionamento dos mercados, consumo e qualidade de vida, etc.) a técnica das leis penais em branco constitui uma fórmula imprescindível de abertura e coordenação do Direito penal para os distintos setores e subsistemas do ordenamento onde os novos bens jurídicos emergentes encontram a sua prima ratio jurídica (GOMES; MOLINA. 2012, p.564).
As leis penais em branco heterogêneas representam técnica de remissão às disposições regulamentares de categoria inferior, distinta do Poder Legislativo. Na modernidade, devido ao fenômeno da “administrativização” do Direito Penal surgiram inúmeras técnicas de remissões à norma de complementação, tais como, a remissão a legislação supranacional (estadual), a remissão a outra norma para efeito de determinar penalidade (lei penal em branco ao revés), e a temerária técnica de remissão em bloco.
Todavia, as técnicas mais usuais no ordenamento jurídico brasileiro, são as que propiciam remissão total e parcial à norma de complementação heterogênea. Acerca das mencionadas modalidades de técnica de reenvio normativo, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina mencionam que a disposição legal constante no preceito primário pode “deixar total ou parcialmente de expressar a integralidade da situação fática e faz remissão a (ou pressupõe a existência de) outras disposições que hão de cobrir-lhe o vazio.” (GOMES; MOLINA. 2012, p.559).
Entretanto, a remissão a disposições regulamentares de categoria inferior, apesar de aparentemente útil, devem ser pautada pela excepcionalidade e o cumprimento de certos limites apresentados pela jurisprudência internacional, principalmente pelo que será apresentado no tópico seguinte, pelo Tribunal Constitucional espanhol.
A técnica de reenvio parcial à norma de complementação heterogênea, não apresentam maiores problemas (desde que sejam observadas exigências garantistas), tais como constar no preceito primário a previsão de determinação legal do tipo penal e o núcleo essencial da proibição que “y sólo em la medida em que remitan la regulación de aspectos no essenciales relativos a la conducta prohibida” (PAIS.1999, p.150).
Quando o legislador optar pelo uso da técnica legislativa de remissão total à norma de complementação, a partir de uma necessária excepcionalidade, para Luiz Flávio Gomes e Antônio García- Pablos de Molina, ao mencionar o autor Luzón Pena, declaram “que só se justifica quando a ratione materiae seja o único modelo técnico possível para delimitar o proibido (GOMES; MOLINA.2012, p. 566), ainda considera:
Inadmissível as remissões in toto (remissão absoluta, em bloco) à normativa extrapenal, que, a seu juízo, nunca são necessárias, já que a lei penal em branco sempre há descrever, já não só o núcleo essencial da conduta proibida, senão todos os elementos típicos objetivos e subjetivos que delimitam o seu significado, sem mais exceção que aqueles que só possam se precisar pela via regulamentar (GOMES; MOLINA.2012, p.566).
Portanto, a remissão absoluta à norma de complementação extrapenal, que só se justificaria quando a razão da matéria, seja a única possível para delimitar o âmbito do proibido. Assim, a proibição de remissão total à norma de complementação, reside que no tipo penal em branco deve descrever todos os elementos essências para a determinação do injusto.
Antonio Doval Pais menciona que “sólo debe adoptarse la técnica de la ley penal em blanco como instrumento absolutamente excepcional por resultar estrictamente necesario, imprescindible, y no meramente conveniente para la regulación de ciertas materiais” (PAIS.1999, p.145).
Alguns autores sustentam que os elementos mínimos de descrição delito, ou seja, os seus pormenores constantes na figura típica, deve estar taxativamente delineado no preceito primário do tipo, não obstante, as normas de complementação administrativas, não poderiam de forma exclusiva enunciar detalhadamente o proibido.
Pois, o critério definidor da base do delito e a respectiva demonstração do desvalor, no que tange ao descumprimento normativo, encontra-se tão somente no tipo penal, conforme a fórmula nullum crimen nulla sine lege certa, tratando-se, portanto, de necessária estrita remissão à norma de complementação em ultima ratio. Ernest Von Beling acerca do tipo penal preleciona:
Pero mientras éstas le sierven sólo para demilitar la conducta presupuesta em el sentido de las clases de delito correspondientes, conservan su función “descriptiva” y nada anticipan de las circunstancias que están más allá de su carácter especial y de las cuales dependedá si la conducta así descripta está reglada como antijurídica (BELING. 1944,p.17).
O tipo penal em branco com remissão absoluta à norma de complementação heterogênea, devido apresentar o caráter de incompletude, incerteza e insegurança jurídica, denota maior problema acerca da descrição precisa do delito. Assim, deve o tipo conter os elementos objetivos e subjetivos do injusto, para que os destinatários da lei penal possam orientar-se de acordo com a legalidade, e por conseguinte, conheçam quais comportamentos são considerados ilícitos pelo Estado, em defesa da função de garantia do tipo consoante questões de Política Criminal.
3.4 Elementos essenciais de constitucionalidade das leis penais em branco heterogênea conforme o posicionamento do Tribunal Constitucional espanhol
O Tribunal Constitucional espanhol, em 5 de julho de 1990, manifestou-se pela primeira vez[8] acerca dos limites acerca da leis penais em branco heterogêneas, estranhamente, a Suprema Corte brasileira ainda não se pronunciou acerca desta importante temática, com grande relevância jurídica, passível de repercussão geral, em uma possível interposição de Recurso Extraordinário, por ultrapassar claramente os interesses subjetivos da causa.
Outrossim, poderia a mencionada temática ser objeto de Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI), em controle concentrado, conforme previsão constitucional, mediante a provocação de quaisquer dos legitimados previstos no art. 103 da Constituição da República Federativa do Brasil.
Será utilizado o direito comparado no presente trabalho, em decorrência da falta de posicionamento da jurisprudência brasileira.
A sentença 127/1990 proferida pela Corte espanhola, à época, descreve um delito culposo conhecido como crime de imprudência temerária, com fundamento no art. 565 do Código Penal espanhol, combinado com o art. 347 do mesmo código, complementado pelo art. 92 da Lei de Águas, norma de natureza extrapenal.
Como consta na decisão abaixo, o delito fora praticado pelo Autor don Rafael Vargas Peñalva, por infringir uma lei penal em branco heterogênea, referente a lei ambiental espanhola, que vigorava a época do fato:
una norma penal en blanco, encuanto exige para la configuración del supuesto de hecho de un elemento normativo representado por la contravención de Leyes o Reglamentos protectores del medio ambiente, integrado en el presente caso por el art. 92 de la Ley de Aguas (Ley 29/1985, de 2 de agosto), que no estaba vigente cuando se produjeron los hechos enjuiciados (28 de octubre de 1985), ya que, según su disposición adicional tercera, su entrada en vigor se produjo el 1 de enero de 1986. (ESPANHA, Tribunal Constitucional Espanhol.Sentença 127, Presidente DomTomàs Y Valiente, 1990).
A acusação constante na sentença proferida pelo tribunal a quo, mencionava o seguinte:
En la citada Sentencia se declaró probado: «Que el día 28 de octubre de 1985, al producirse una avería em la noria principal de la fábrica que em la Azucarera del Esla posee, em el término de Villanueva de Azogue, el acusado, don Rafael Vargas Peñalva, mayor de edad y sin antecedentes penales, em calidad de Director de dicha fábrica, ordenó que se pusiese em funcionamiento la noria suplente, la cual contenía posos que determinaron el vertido de 4.000 litros de lechada de cal em el río Orbigo. En dicho día aparecieron muertas diversas especies piscícolas en cantidad de 1.000 kg en las inmediaciones de la zona, sin que se haya demostrado que la muerte fuera producida por el vertido de la sustancia anteriormente referida». (ESPANHA, Tribunal Constitucional Espanhol. Sentença 127, Presidente Dom Tomàs Y Valiente, 1990).
Diante do exposto, o Tribunal Constitucional fundamentou acerca dos critérios limitadores à técnica de remissão à norma de complementação heterogênea. A Suprema Corte espanhola invocou para si, utilizando-se de hermenêutica constitucional limitações constitucionais ao tipo penal em branco.
Peter Haberle esclarece que a interpretação constitucional “tomam parte apenas os intérpretes jurídicos “vinculados às corporações e aqueles participantes formais do processo constitucional” (HABERLE.1997, p. 13). Felizmente, a interpretação da Suprema Corte da Espanha, obedeceu aos postulados constitucionais consagrados, tal qual o Princípio da Legalidade. O fundamento inicial reside na menção da máxima nullum crimen nulla poena sine lege, (apresentado como postulado geral que constitui, a base da formulação jurisprudencial do Tribunal Constitucional espanhol), com os seus respectivos desdobramentos da Legalidade[9], conforme os axiomas apresentados de Luigi Ferrajoli[10]:
El derecho a la legalidad penal comprende una doble garantía: por una parte, de carácter formal, vinculada a la necesidad de una ley como presupuesto de la actuación punitiva del Estado en los bienes jurídicos de los ciudadanos, que exige el rango necesario para las normas tipificadoras de las conductas punibles y de previsión de las correspondientes sanciones, que en el ámbito penal estricto, que es del que se trata enel presente supuesto, debe entenderse como de reserva absoluta de ley, e, incluso, respecto de las penas privativas de libertad de ley orgánica; por otra, referida la seguridad a la prohibición que comporta la necesidad de la predeterminación normativa de las conductas y sus penas a través de una tipificación precisa dotada de la suficiente concreción en la descripción que incorpora. En definitiva, en términos de nuestra Sentencia 133/1987, el principio de legalidad penal implica, al menos, la existencia de una ley (lex scripta), que la ley sea anterior (lex previa) y que la ley describa un supuesto de hecho determinado (lex certa).(ESPANHA, Tribunal Constitucional Espanhol. Sentença 127, Presidente Dom Tomàs Y Valiente, 1990).
O tema central do presente trabalho, reside nos limites a técnica de remissão à norma de complementação heterovitelínea. Preliminarmente, os limites mencionados devem ser constitucionais, com devida conciliação à técnica de remissão escolhida pelo legislador penal. Todavia, se faz necessário apresentar as exigências apresentadas pela Suprema Corte espanhola:
Las exigencias expuestas no suponen que sólo resulte constitucionalmente admisible la redacción descriptiva y acabada en la ley penal de los supuestos de hecho penalmente ilícitos. Por el contrario, es posible la incorporación al tipo de elementos normativos (STC 62/1982) y es conciliable con los postulados constitucionales la utilización legislativa y aplicación judicial de las llamadas leyes penales en blanco (STC 122/1987); esto es, de normas penales incompletas en las que la conducta o la consecuencia jurídico-penal no se encuentre agotadoramente prevista en ellas, debiendo acudirse para su integración a otra norma distinta (...)(ESPANHA,Tribunal Constitucional Espanhol. Sentença 127, Presidente Dom Tomàs Y Valiente, 1990).
Acrescenta, o Tribunal Constitucional espanhol:
(...) siempre que se den los siguientes requisitos: que el reenvío normativo sea expreso y esté justificado en razón del bien jurídico protegido por la norma penal; que la ley, además de señalar la pena, contenga el núcleo esencial de la prohibición y sea satisfecha la exigencia de certeza o, como señala la citada STC 122/1987, se dé la suficiente concreción, para que la conducta calificada de delictiva quede suficientemente precisada con el complemento indispensable de la norma a la que la ley penal se remite, y resulte de esta forma salvaguardada la función de garantía de tipo con la posibilidad de conocimiento de la actuación penalmente conminada.(ESPANHA, Tribunal Constitucional Espanhol. Sentença 127, Presidente Dom Tomàs Y Valiente, 1990).
Inicialmente, a decisão proferida se mostra, em parte insuficiente, para delinear os critérios de limitação à norma de complementação das leis penais em branco heterogênea.
A Corte Constitucional espanhola fixou o critério referente a estrutura do tipo penal em branco, ou seja, que a penalidade descrita no preceito secundário esteja descrita na própria lei penal. Desta forma, não pode atribuir a norma extrapenal a descrição da pena a ser aplicada, sob pena infringência ao Princípio da Legalidade.
Em seguida, a corte entendeu que o reenvio à norma de complementação seja justificado em razão do bem jurídico protegido pela lei penal. Acerca desse posicionamento, AntonioDoval Pais menciona que a justificação do reenvio normativo “se halle em bien jurídico protegido, conlo que parece reservar elempleo de lasleyespenalesenblanco a aquellos casos enlos que lamateria presenta especiales dificuldades para suregulácion por outros médios” (PAIS.1999, p. 160).
No Brasil, o art. 33 da Lei 11.343/2006{C}[11], demonstra a viabilidade da remissão à norma de complementação[12], pois, é praticamente impossível conceber um tipo penal que contemplasse todas as drogas e entorpecentes constantes na Portaria 344/98, demonstra-se, portanto, a especial dificuldade para a regulação do injusto, sendo assim, incontestavelmente constitucional o mencionado dispositivo legal.
Finalmente, o Tribunal Constitucional espanhol delineou que a lei penal em branco heterovitelínea, deve conter o núcleo essencial da proibição, para que satisfaça a função de garantia do tipo. Novamente, questiona-se o que vem a ser o núcleo essencial da proibição. Na tentativa de responder esta indagação tocante a decisão apresentada pela Corte espanhola, AntonioDoval Pais argumenta:
Lo essencial para el Tribunal es, a mi modo de ver, que la ley penal estabelezca una prohibición concreta y suficientemente precisa, para lo cual exige que como mínimo la ley penal fije el núcleo esencial de la prohibición. En efecto, aun cuando esta última propuesta de determinación del núcleo esencial ha sido la que mayor difusión y peridicamento ha alcanzado en la doctrina, debe observarse que va acompañada de aquella que requiere la satisfaccíon de la exigencia de certeza o, en definitiva, la posibilidad de conocimiento de la actuación penalmente conminada desde el propio texto de la ley penal (PAIS.1999, p. 161).
Em suma, compactuar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis branco heterogênea deve ser pautada de criteriosidade e serenidade. O reconhecimento da legitimidade da técnica de remissão das leis penais em branco, deve ser concebido por estrita cautela, como mencionado. Deve-se analisar os critérios aqui apresentados pelo Tribunal Constitucional espanhol, ou seja, que o reenvio normativo seja expresso e esteja justificado em razão do bem jurídico protegido pelo Direito Penal, a lei além de prever a pena, contenha o núcleo essencial da proibição e que esteja suficiente clara as exigências de certeza no tipo penal.
Entretanto, a norma extrapenal somente poderá regulamentar o que já fora inicialmente delineado pelo tipo penal em branco (remissão parcial à norma de complementação), com a enumeração, por exemplo, das substâncias entorpecentes proibidas e quais são as armas fogo de uso restrito[13], que possuem a finalidade de complemento regulamentar e não proibitivo.
Todavia, quando ocorrer à remissão total à norma de complementação extrapenal, incorre-se o legislador em violação aos princípio da legalidade, princípio da reserva legal e princípio da separação dos poderes, pois, nesta situação, quem diz o conteúdo proibido da norma penal é o Poder Executivo, e por conseguinte, estará omisso o núcleo essencial da proibição e a exigência de certeza apresentada pela Suprema Corte espanhola. A depender do caso, como exposto neste trabalho, poderá a defesa alegar erro de proibição.
Portanto, o uso das leis penais em branco heterogêneas deve ser racionalizada, utilizada com a maior cautela possível, sem quaisquer banalizações tendentes a administrativizar o Direito Penal. Em respeito a técnica legislativa, e principalmente visando salvaguardar Princípios Constitucionais.
Assim, o Supremo Tribunal Federal deve se manifestar de forma a delinear os limites à técnica de remissão as norma de complementação das leis penais em branco heterogênea, invocando para si, a função precípua de guardião da Constituição, em detrimento da falta de tecnicismo dos parlamentares brasileiros, na formulação de preceito primário do tipo penal.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema escolhido procurou demonstrar a problemática referente aos limites da técnica de reenvio absoluto à norma de complementação heterovitelínea. Buscou-se apresentar do conceito de lei penal em branco criado por Karl Binding e a posterior evolução apresentada por Edmund Mezger, na modalidade de reenvio normativo imprópria ou homogênea.
O presente trabalho perseguiu a apresentação do expansionismo penal, nos dias atuais, com a temida administrativização do Direito penal e a sua correlação com o direito penal do risco. A demonstração do uso abusivo das leis penais em branco heterogêneas denotam a tentativa de manutenção dos poderes inerentes a Administração Pública, especialmente, no tocante ao poder de polícia. A criminalização de condutas que deveriam ser em prima ratio, reguladas pelos demais ramos do direito, são prescritas pelo legislador ordinário, com clara violação ao princípio da subsidiariedade do Direito Penal.
A constitucionalidade das leis penais em branco é defendida pela parcela majoritária da doutrina e da jurisprudência. Todavia, o presente trabalho procurou demonstrar a correlação de princípios constitucionais, no tocante as leis penais em branco heterogêneas, que poderá ser passível de inconstitucionalidade a depender da técnica escolhida. A técnica de remissão absoluta à norma de complementação, apresenta duvidosa constucionalidade, pois, ofende os princípios da legalidade, reserva legal e tripartição de poderes.
Ainda, no que tange as leis penais em branco heterovitelíneas, não é passível de ofensa aos princípios acima citados, quando a norma de complementação heterogênea limita-se a descrever detalhes meramente elucidativos e complementários da conduta proibido pela lei penal, portanto, o complemento da norma extrapenal deve ser regulamentar e não proibitivo.
O presente trabalho procurou demonstrar o problema especial do núcleo essencial da proibição, tratando-se um elemento rotineiramente citado pelos doutrinados e não claramente definido, e por conseguinte, não há critérios jurídicos seguros para delinear a sua ocorrência. A análise da inconstitucionalidade, encontra-se na técnica legislativa de remissão utilizada, como mencionado. Assim, a ocorrência de inconstitucionalidade nas leis penais em branco, encontra-se na possibilidade de alguns princípios constitucionais consagrados pela Carta Magna forem lesados.
No tocante ao conhecimento do injusto, o presente trabalho apresentou a possibilidade da ocorrência do fenômeno do erro de proibição, e a consequente, exclusão da culpabilidade constante no conceito analítico de crime. Pois, a falta dos elementos caracterizadores de certeza no tipo penal e a total remissão à norma extrapenal, acarreta, como demonstrado na ocasião, na falta de concepção do proibido pelos destinatários da lei penal, quando ocorrer sucessão das leis penais em branco no tempo, e pela confusa e alta especialização dos atos administrativos complementários da lei penal.
Finalmente, foram apresentados elementos da sentença 127/1990, proferida pelo Tribunal Constitucional espanhol, devido à falta de posicionamento da jurisprudência brasileira, acerca dos critérios limitadores de remissão das leis penais em branco heterogênea. A Suprema Corte espanhola fixou limites de constitucionalidade da técnica de remissão das leis penais em branco heterogênea, com a obrigatoriedade da lei penal conter elementos necessários em defesa da garantia do tipo.
Em suma, o uso das leis penais em branco heterogênea deve ser racionalizada, utilizada com a devida caultela, sem quaisquer características banalizadoras ou escusas expansionistas do Direito Penal. Espera-se que o Supremo Tribunal Federal se manifeste de forma, a delinear os limites à técnica de remissão à norma de complementação extrapenal, invocando para si, a função de salvaguarda da Constituição e dos princípios constitucionais, em detrimento da falta de tecnicismo apresentado pelos legisladores, na formulação de alguns preceitos primário constante no tipo penal incriminador.
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