Entre o fim da década de 1990 e o início da de 2000, o Estado brasileiro criou e implantou um instrumento que permite que a satisfação de créditos contra ele constituídos na seara judicial se dê sem o moroso, opaco e frequentemente – pela inadimplência – estéril procedimento dos precatórios.
Mediante as chamadas requisições de pequeno valor (RPVs), o pagamento de dívidas judiciais se dá em prazo bem mais curto e com muito maior eficácia, até pela possibilidade de sequestro de quantias. Mas como consta da própria denominação do instrumento em exame, a possibilidade de valer-se dele é determinada pelo valor do crédito.
Mais: o valor que serve como linha divisória entre precatório e RPV não é único, posto que as três emendas constitucionais que disciplinaram o tema (30, 37 e 62) autorizaram a estipulação de parâmetros distintos em função da capacidade econômica de cada ente federativo (União, estados, municípios, Distrito Federal).
A União, mediante a Lei 10.259, estabeleceu para si e para seus credores, em 2001, o limite de 60 (sessenta) salários mínimos. Para o estados e municípios, mediante a EC 37, foram estipulados limites provisórios de, respectivamente, 40 (quarenta) e trinta (trinta) salários mínimos, enquanto cada um desses entes não dispusesse em lei própria sobre seu próprio e definitivo critério.
Recentemente, essa questão se tornou objeto de celeuma quando, respectivamente em 2013 e 2015, os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul reduziram para 10 (dez) salários mínimos a possibilidade de execução contra si por meio de RPVs. No caso do RS, as consequências da redução se afiguram particularmente graves, pois o notório e obstinado inadimplemento de seus precatórios transforma o que em tese seria uma linha divisória entre receber por um ou outro meio em ponto de corte entre receber ou não o crédito judicialmente constituído.
A exemplo do que fizera por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.868, referente ao estado do Piauí, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por seu Conselho Federal, ajuizou outras duas ações dessa espécie (5.100 e 5.421) contra, respectivamente, SC e RS.
O questionamento à constitucionalidade das leis catarinense e gaúcha se dá com base na capacidade econômica das duas unidades federativas, nos limite cronológicos para a edição de leis dessa natureza definidos nas emendas constitucionais que trataram do tema e na suspensão da competência estadual para sobre ele dispor enquanto viger o regime especial de pagamento de precatórios instituído por meio da EC 62. Quanto a tais aspectos, só o que há a fazer é recomendar a leitura das respectivas petições iniciais, em que a questão é exposta com a competência que se espera de quem move as ADIs.
Há, todavia, um aspecto que nem a OAB, nas referidas ADIs, nem os diversos entes federativos que emitiram normas estipulando teto para suas RPVs, ao elaborá-las, parecem ter considerado – ou então o fizeram de forma equivocada.
Desde 2009, a Constituição, por força da EC 72, contém, em seu art. 100 § 4º, outro parâmetro para estipulação desses limites além da capacidade econômica do pagador:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
§ 3º O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.
§ 4º Para os fins do disposto no § 3º, poderão ser fixados, por leis próprias, valores distintos às entidades de direito público, segundo as diferentes capacidades econômicas, sendo o mínimo igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social. (destaque do autor do artigo)
Nenhum ente federativo (União, estado, município, DF) pode, portanto, estipular para suas RPVs teto inferior ao maior benefício do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sistema administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Qual é o “valor do maior benefício” desse regime? Erra quem responder que é o do teto do salário-de-contribuição e do salário-de-benefício, hoje R$ 5.189,82.
Nem todos os proventos do RGPS são calculados com base no salário-de-benefício; e, mesmo entre os que são, é possível a ultrapassagem desse teto. As aposentadorias por invalidez podem superá-lo em até 25% quando seus titulares necessitarem assistência permanente de outra pessoa (art. 45, “a” da Lei 8.213), possibilidade que vem sendo jurisprudencialmente estendida aos detentores de aposentadorias de outras espécies. O salário-maternidade das seguradas empregadas e avulsas é igual à sua remuneração no trabalho, seja esta qual for (art. 72). O mesmo vale alguns benefícios acidentários anteriores à Lei 8.213 que ainda são pagos.
A Constituição reconhece expressamente essas situações, fixando, em seu art. 248, limite aos proventos que nelas se enquadram:
Art. 248. Os benefícios pagos, a qualquer título, pelo órgão responsável pelo regime geral de previdência social, ainda que à conta do Tesouro Nacional, e os não sujeitos ao limite máximo de valor fixado para os benefícios concedidos por esse regime observarão os limites fixados no art. 37, XI.
Assim, e como o art. 100 § 4º da Constituição não remete ao teto ordinariamente aplicável à maioria dos benefícios do RGPS, mas sim ao “valor do maior benefício” desse regime, deve ser considerado o parâmetro que efetivamente limita toda e qualquer prestação do RGPS, que é o do art. 248 da Constituição, e não o do art. 33 da Lei 8.213.
O limite fixado no art. 248, por remissão ao art. 37, XI, é o do subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), hoje R$ 33.763 (valor ainda não reajustado em 2016), também teto remuneratório do funcionalismo federal. Esse é, portanto, e sem margem a dúvidas, o piso constitucional para a estipulação de tetos para o pagamento de débitos judiciais via RPV.
São, assim, inconstitucionais também por esse motivo – à parte todos os outros – não só as leis 15.945 de 2013 de SC e 14.757 de 2015 do RS como todas as normas de quaisquer entes federativos que limitem a possibilidade de expedição de RPV a limites máximos inferiores ao subsídio mensal dos ministros do STF.