Tem-se ouvido falar, ultimamente, em crise moral e ética do povo brasileiro. A ideia que se tenta passar é que a corrupção, no âmbito da administração pública, decorre unicamente do processo de colonização desse povo retumbante.
Isso não é verdade e precisa ser desmistificado. O que possibilita o desvio de recursos públicos e estimula o desvio ético dos agentes públicos é o “modus operandi” (modo de operação) do projeto ilegítimo de manutenção de poder, materializado na máxima de que “é dando que se recebe”. É daí onde surge o excesso de oportunidades para o desvio de recursos públicos.
A escassez de recursos, motivando o desemprego, instou o povo a se manifestar e, hoje, estamos em via de superação da fase de que “é perdoando que se é perdoado”, a fase da complacência, portas abertas para a indecência. A luta contra a impunidade vai além da busca pela igualdade perante a lei. Essa luta tem como objetivo principal a subsistência do Estado Nacional e Democrático de Direito. Não há como adiar para amanhã.
Isso porque o crescimento assustador da prática dos intitulados “crimes de rua” tem revelado que se trata de reflexo da falta de implementação de políticas públicas eficientes, da falta de compromisso com segmentos importantes da administração pública, motivado, sobretudo, pelo desejo inconsequente de manutenção de poder, que tem como principal programa de governo a busca pelo voto.
Parece que chegamos ao tão sonhado tempo das consequências. Essa é, felizmente, a visão dos mais otimistas. Parece que o povo percebeu que prerrogativas não são privilégios e, por isso, devem ser exercidas em prol do interesse de todos, e não em prol dos interesses escusos de quem as exerce em nome do povo, o real titular do poder.
As instituições republicanas têm dado claras demonstrações de que o foro por prerrogativa de função não é mesmo foro privilegiado, não podendo, portanto, ser usado para cometer crimes, mas para evitar que eles sejam cometidos. É conduto para que a lei seja cumprida, e não meio de transgressão dela. Isso tem feito o povo perceber que uma verdadeira democracia não pode outorgar privilégios aos agentes públicos, independente da posição que eles ocupem na estrutura estatal hierarquizada.
Aos poucos, o povo vem percebendo que privilégios não se compatibilizam com o princípio da moralidade administrativa, e, talvez por isso, hoje, nas redes sociais, a utilização de carros públicos para fins particulares tenha sido motivo de repúdio e revolta.
A má aplicação dos recursos públicos, o parcelamento de salário dos servidores, a insegurança pública, a falta de respeito aos usuários dos hospitais públicos têm feito o povo perceber que o dinheiro que sobra para a manutenção dos privilégios é o que falta para garantir os serviços essenciais.
Não há como admitir mais, num país onde o litro de gasolina beira quatro reais, que o “chefe do chefe” tenha um carro com motorista ao seu inteiro dispor, que carros públicos permaneçam à disposição de agentes públicos 24 horas por dia, usando-os como se seus fossem, dando a eles a utilidade que acham conveniente, que atendam às suas necessidades pessoais, levando seus filhos às escolas, dando, desde cedo, o péssimo ensinamento de confundir o público com o privado.
A conta não fecha mais. A dívida só tende a crescer e comprometer, ainda mais, a manutenção da paz social.
O povo se atentou para o fato de que o gestor da coisa pública não é o dono da coisa pública e, por isso, não pode fazer da res publica um meio para exploração e satisfação de benefícios de interesses pessoais. A coisa pública não é coisa de ninguém. É coisa de todos.
O povo não tolera mais a ideia de que órgãos públicos sejam cabides de emprego e, talvez por isso, a ocupação indevida de cargos públicos venha recebendo um tratamento mais rigoroso por parte das instituições de controle, das instituições incumbidas do dever de reprimir e punir. A meritocracia passou da fase da abstração para a fase da concretude. É como se o Poder Público tivesse dito o que as empresas dizem há muito tempo: “Se não contribui, não serve para mim”.
Hoje, o critério é o da essencialidade. É regra básica de finanças que não se gasta o que não se tem. Não há como manter, portanto, ainda que esse seja o interesse dos beneficiários, que privilégio continue sendo garantido a quem tem o dever de agir em nome do interesse público.
Devemos ter em mente que o povo é o real titular do poder, é a razão de existir do Estado. Se o povo grita basta, o beneficiário de privilégios não pode fazer ouvido de mercador. Deve ouvir, refletir, agir e se adequar ao processo de transformação por que passa a administração pública brasileira. Agir de modo diferente disso é assumir o risco de ser vítima do próprio sentimento patrimonialista que insiste em permanecer albergado dentro de si. O apego à manutenção dos privilégios pode representar o camarote para assistir ao espetáculo “a casa caiu”.
Parafraseando Lulu Santos, esse novo começo de era fez o povo sair do muro, enxergar e acreditar na plena possibilidade de uma vida melhor no futuro. Isso vem fazendo a diferença. A história já revelou que não há arsenal que vença a luta contra quem tem ideais, quem tem missão de pacificação social. É, de fato, tempo de temer.
As circunstâncias da vida nos ensina que não há como cuidar bem do que não se gosta. Se não gostar "de" povo, não estará, por óbvio, apto para cuidar dele. Resistir às transformações, portanto, é uma clara demonstração de que não gosta de povo. E, se não gosta de povo, opte por deixar o serviço público, para onde, inclusive, nunca deveria ter ido.
É que até os acometidos da cegueira do bom senso já perceberam que as instituições vêm cumprindo suas missões constitucionais, mostrando que a “lei é pra qualquer um, seja quem for” e o povo percebeu que “usufruir do bom, do mel e do melhor é comum, pra qualquer um, seja quem for”, como já dizia Dominguinhos.
Resta-nos, por fim, seguir os ensinamentos de Geraldo Vandré e continuar “caminhando e cantando e seguindo a canção”, rezando para que todas as instituições republicanas nos permitam acreditar que realmente “somos todos iguais, braços dados ou não.”