O processo penal como espécie de processo coletivo.

Alguns paradoxos da teoria crítica

02/02/2016 às 00:36
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Pretende-se, de maneira simples, identificar um componente situacional jurídico no âmbito do direito processual penal, de modo a situá-lo como espécie de processo coletivo.

1. Introdução

O título do presente “artigo”1 certamente não é dos mais palatáveis para maioria dos acadêmicos do processo penal. Por mais hardcore que possa parecer o título, a ideia aqui – que fique bem claro – não é a de tentar aniquilar a autonomia científica do direito processual penal, muito menos de contaminá-lo com as doenças venéreas do direito processual civil2.

O que se pretende, em realidade, de maneira simples, é tentar identificar um componente situacional jurídico no âmbito do direito processual penal, que é conduzido, via de regra, pelo Ministério Público, órgão que, por excelência, substitui/presenta a sociedade (ou alguém) em seus interesses.

Sendo mais claro, o questionamento que importa aqui é o seguinte: existe algum direito (ou interesse/posição jurídica) por trás do processo penal? Se, sim, de quem? A resposta a essa pergunta, como não poderia deixar de ser, está a depender do recheio que lhe preenche: o direito penal.

O que parece bem nítido – adianto – é que, abstratamente, o poder punitivo estatal hodierno, tal como nos tempos absolutistas remotos, poderia ser exercido diretamente, sem que fosse necessário gastar tanto tempo (e dinheiro!) com o processo judicial. Tal constatação nos revela algo importante: a finalidade maior do processo penal não parece ser a busca pela verdade (?) dos fatos, mas, sim, a contenção do poder estatal, tutelando-se direitos e garantias do acusado.


2. O processo penal é instrumento de que?

Seguindo-se a linha do ponto anterior, temos que a finalidade típica do processo penal consiste na contenção do poder estatal, tutelando-se direitos e garantias do acusado. Aliás, em termos abstratos, a finalidade de qualquer – repito: qualquerprocesso é a contenção do poder. Valendo-me dos terríveis exemplos “manualescos”, explico: se Tício e Mévio entram em conflito em torno da propriedade de um determinado bem, o caminho lógico é que, ausente acordo, algum deles compareça a juízo, promovendo uma ação (possessória ou petitória). Mas nem sempre foi assim. Na era mesozoica, se Tício e Mévio (vamos manter os nomes por uma questão de decoro aos civilistas) entrassem em conflito, a saída seria bem diferente. Seguramente, Tício (ou Mévio) resolveria seu problema utilizando-se de um tacape ou uma pedra, atirada precisamente na cabeça do outro “litigante”. Pronto. Morto o inimigo, ganha estaria a causa.

A indecência da justiça privada levou o Estado (abstratamente) a atribuir para si o monopólio da jurisdição, que se realiza pelo processo.

Assim, temos que o processo é o ambiente adequado para que se decida algo (ou, na linha do mestre Calmon de Passos, a técnica para a produção de uma norma jurídica, seja ela individual ou geral). O processo, por excelência, existe para que o poder e a violência, qualquer que seja a sua natureza, não prevaleça, formando-se uma norma em um caminho democrático.

No processo penal, agregamos a isso o garantismo de Ferrajoli, visualizando-se o acusado como a parte mais fraca diante do poder Estatal, evitando-se uma ambiência kafkiana. Nele (o processo), devem ser tuteladas as garantias penais estatuídas.

Não podemos deixar de pontuar, contudo, que tal visão do processo penal se desenvolveu a partir de um contexto que não é exatamente o mesmo dos regimes atuais. Não se nega a realidade dantesca do cárcere no Brasil, nem dos incontáveis exemplos esdrúxulos que existem por aí: juízes decidindo prisões preventivas através de formulários padrões, réus cumprindo penas além daquelas fixadas em sentença, mulheres cumprindo pena em penitenciárias masculinas etc. Tais exemplos expõem uma realidade que se aproxima – e muito – dos tempos remotos. Mas há um diferencial.

Note-se, por exemplo, o que expõe Hauke Brunkhorst, ao tratar da crise europeia e dos “paradoxos da constitucionalização do capitalismo democrático”. Referindo-se à atual crise na Europa, afirma que “O Estado fiscal que controla o capitalismo tornou-se um Estado devedor, que é controlado pelo capitalismo”3, o que revela que, muitas vezes – a exemplo de um ambiente em que se objetiva reprimir delitos -, o Estado é que é o hipossuficiente, em comparação ao poder econômico4. Mas isso é uma outra discussão.

A pergunta que importa, aqui, é a seguinte: para além das garantias do réu, o processo penal tutela alguma outra coisa? Mais perguntas surgem: será que é possível falar em um verdadeiro direito penal subjetivo, um direito de punir do Estado? Haveria algum outro direito ou garantia por trás do processo penal?


3 Os fins da pena e o paradoxo da processualística penal contemporânea

Ao tutelar as garantias do réu, o processo penal, numa visão teórica, contribui para que seja estabelecida uma sanção (na maioria das vezes, uma pena) adequada ao caso concreto. Surgem, a partir desse simples raciocínio, duas perguntas: o que justifica a imposição de uma pena ao autor de um delito? A quem interessa isso?

A pena, sabemos, é espécie de sanção penal, esta concebida como a resposta estatal ao responsável pela prática de um crime ou de uma contravenção penal.

Classicamente, sob um aspecto ideal, são atribuídas três grandes finalidades à pena: prevenção (geral ou especial; negativa ou positiva, numa lógica utilitarista), retribuição (imposição de um castigo ao condenado, retribuindo-se o mal causado com um mal proporcional) e ressocialização (uma forma de prevenção especial positiva).

Não se pretende, no momento, o aprofundamento no estudo da teoria da pena. A ideia é, apenas, observar o seguinte: seguindo-se o discurso oficial, a imposição de uma pena adequada ao réu não é algo que interesse apenas a ele, mas, também, à vítima e à sociedade como um todo.

Não por acaso, o art. 1º da Declaração da Costa Rica sobre Justiça Restaurativa dispõe que “Processo restaurativo é aquele que permite vítimas, ofensores e quaisquer outros membros da comunidade, com a assistência de colaboradores, participar em conjunto, quando adequado, na busca da paz social.”.

Qualquer que seja a finalidade da pena, da ressocialização à vingança, de Ferrajoli a Zaffaroni, é certo que a sua adequada aplicação não é um interesse exclusivo do réu. E, como tal, a presença do Ministério Público nos revela que o órgão se faz presente, no processo, como um agente destinado à tutela de interesses que não são seus, fenômeno típico de processos coletivos5. Se pensamos na função preventiva da pena, por exemplo, rapidamente perceberemos que se trata de um interesse indivisível, afeto a pessoas indetermináveis, a configurar uma forma de interesse difuso. Por outro lado, se pensarmos exclusivamente no processo penal como forma meio de evitar vinganças desproporcionais, os interesses parecem repousar nos indivíduos que compõem o processo.

Podemos ir além. A partir de uma ótica restaurativa, o crime passa a ser concebido como um ato contra a comunidade, contra o próprio agente e contra a vítima – destacando-se o empoderamento desta. Justamente por isso, a justiça restaurativa objetiva, sobretudo, o reequilíbrio das relações entre agressor e agredido, com foco conciliador. Predominando-se, aqui, a disponibilidade da ação penal, o processo penal assume uma inquestionável feição privatista.

Aqui reside um enorme (aparente?) paradoxo: um dos principais argumentos contrários à concepção de uma teoria geral do processo reside na “indevida contaminação do processo penal com aspectos privatistas do processo civil”, em detrimento das garantias do acusado. Ocorre que, numa ótica restaurativa, cada vez mais, o viés “privatista” – que reside no foco conciliador – se aproxima do processo penal, em benefício do acusado. Ou estou equivocado ao presumir que interessam ao réu institutos como a composição civil dos danos, transação penal, suspensão condicional do processo e até mesmo a delação premiada?

Não faltam exemplos de negócios jurídicos penais, a demandar, além de uma análise pragmática – à luz da teoria dos jogos, p. e.x -, uma análise teórica – a luz da teoria do direito e, portanto, teoria geral do processo. E qual a serventia da teoria do processo, afinal? Dar maior certeza aos jogadores sobre os institutos do direito, evitando-se um processo penal “às escuras”.

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Falando em teoria dos jogos, chegamos a outro (aparente?) paradoxo. Temos aqui um ramo da matemática (atribuído, sobretudo, aos estudos de John Neumann e Oskar Morgenstern) cuja aplicação primordial se dá no estudo da microeconomia. Seu objetivo maior, em uma síntese grosseira, consiste em estudar os processos de tomadas de decisão no âmbito de jogos não cooperativos – em que os jogadores estão em situações tais que impossibilitam que saibam, de antemão, qual será a jogada do outro.

Tenho pra mim que a introdução da análise econômica na ciência do direito - sem que isso se resuma a uma postura utilitarista extremada, descomprometida com valores éticos e morais – é algo muito importante. A superioridade de Pareto e o critério de Kaldor-Hicks, por exemplo, são antigos princípios que certamente podem ser levados em consideração na alocação de recursos para concretização de políticas públicas6.

Mas voltemos ao paradoxo: existe uma tendência (que também compartilho) de analisar o processo penal à luz da teoria dos jogos7. Ocorre que a invocação da teoria dos jogos é, quase que invariavelmente, acompanhada da negação da teoria geral do processo, mais uma vez, por resultar na importação mecânica, fria, de “institutos do direito privado” ao processo penal. Ora, existe algo mais “desprovido” de valor que a matemática (ou uma teoria técnica da microeconomia)? O risco maior não estaria em importar elementos utilitaristas da matemática e das ciências econômicas ao processo penal?

Penso que, à luz de uma teoria bem articulada – e estudada -, é plenamente possível estudar o processo penal com base tanto na teoria do processo8 quanto na teoria dos jogos – inclusive com os acréscimos teóricos do equilíbrio de Nash.

Chutando um pouco o balde do título originário, podemos concluir, singelamente, com a seguinte provocação: no âmbito do estudo do processo penal, a revolução (autorreflexão) precisa ser contínua, evitando-se o estacionamento das metafísicas. Para além de ideologismos, precisamos ser críticos em relação à crítica.


Notas

1 Coloco a palavra “artigo” entre aspas, pois, verdadeiramente, o que temos aqui é apenas uma livre exposição de ideias, com pouquíssimas citações e referenciais teóricos. Assim, diante de tal precariedade, sequer podemos dizer que haveria aqui, propriamente, um artigo acadêmico.

2 Cabe aqui um pequeno adendo: toda vez que se fala em teoria geral do processo, há, invariavelmente, uma repulsa dos acadêmicos do direito processual penal, que, com armas em punho, logo imaginam a importação de coisas inúteis à seara criminal, a exemplo da polêmica entre os juristas alemães Bernardo Windscheid e Teodoro Muther sobre o direito de ação. Diga-se, desde já, que a teoria do processo integra a teoria do direito, e não a teoria do processo civil. São coisas (bem) diferentes. Não parece sensato defender a ideia de que o processo penal sobrevive sem a teoria (geral) do direito, como uma ilha perdida.

3 Brunkhorst, Hauke. A decapitação do legislador: a crise europeia. Revista de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, v. 1, jan./jun. 2014, p. 105.

4 Ou já esquecemos das lamentáveis investidas contra o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, após a deflagração das investigações na “operação Lava Jato”?

5 Não por acaso, nos Estados Unidos, os processos criminais são marcados por expressões do tipo “The People vs (…)”.

6 Mas que fique claro: tal importação ocorre em um momento posterior ao estabelecimento dos valores primordiais do direito, que não podem ser fragilizados por uma alquimia utilitarista.

7 ROSA, Alexandre Morais da. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. 2ª ed. Empório do Direito, 2015.

8 Para ler mais sobre a teoria geral do processo, veja aqui: <https://www.ibadpp.com.br/1807/por-uma-teoria-geral-dos-processos-em-geral-por-joao-paulo-lordelo-05022015>

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Sobre o autor
João Paulo Lordelo

Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor em diversos cursos de graduação, pós-graduação e preparatórios para carreiras jurídicas. Procurador da República (1ª colocação). Ex-Defensor Público Federal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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