O Judiciário, quando for julgar causas sensíveis, deve ser igualmente sensível para o tipo de decisão que irá oferecer à sociedade. Sensível será uma causa em que estão fortemente em tensão contrária interesses afetos a direitos fundamentais.
Muitas vezes, pensa-se em defender mais fortemente os direitos fundamentais, ratificando, de antemão, sua força normativa em sentido abstrato. Esquece-se, que aqueles não só existem como categorias normativas abstratas, como animam-se pelo exercício da atividade humana. É o exercício com base neles que tensiona-os. A se pensar, diferentemente, uma Constituição ruiria com sua própria e esperada força normativa, porque estaria internamente em "eterna guerra" de direitos com statu fundamental.
Está-se fazendo alusão à recente decisão da 33ª Vara Criminal da Capital do Rio de Janeiro (medida cautelar inominada nº 0030603-92.2016.8.19.0001[1]), que conferiu liminar, a pedido do Ministério Público, proibindo a comercialização e veiculação do livro de Adolf Hitler escrito nos anos 20[2]. Naquele escrito, Hitler destilou toda sorte de ódio contra uma esquerda comunista e um grupo étnico que acabou por ser perseguido, junto a outros grupos sociais, como os ciganos (como exemplo), e que animou a terrível beligerância da Segunda Guerra Mundial. O pensamento hitlerista de defesa de um Estado "puro" contaminou uma sociedade que ainda sentia as consequências da Primeira Guerra Mundial.
Não obstante, é possível intuir-se que daquela época para os dias atuais, os questionamentos não devem ser mais focados somente sobre a epistemologia do ódio contida naquele livro, que a doutrina estadunidense cunhou como parcela jurídico-ideológica do denominado "hate speech" (nos EUA tratado como contido no âmbito normativo da liberdade de expressão, diferentemente do tratamento jurisprudencial brasileiro conferido ao “discurso odioso”[3]). Na sociedade contemporânea, as consequências hauridas de escritos preconceituosos são sentidas em campos por vezes não desvelados, inclusive em um país dito plural, como o Brasil, e que nunca adotou política estatal de segregação, como ocorreu na África do Sul.
Retorne-se ao exame daquela decisão da Justiça fluminense. Sem o condão de encerrar a questão, pelo contrário, desde já, diga-se, que se uma liminar é um exame considerado raso sobre determinado caso concreto, raso não pode ser o fundamento para sua concessão. E, estando-se diante de um caso que envolva flagrante choque entre direitos fundamentais (muitas vezes com reflexos sociais de interesse), deve-se pôr em alerta que uma decisão judicial não pode nunca ser tendencialmente passível de exames descomprometidos, ainda que fundamentados em decisões da Suprema Corte.
Uma liminar que proíba a veiculação de um pensamento claramente proscrito na História contemporânea e internacional parece mais uma decisão política que, de fato, em defesa de direitos fundamentais. Uma tal decisão aspira, sem declarar expressamente, que é possível a um Poder de Estado, como o Judiciário, imiscuir-se sobre as idiossincrasias da condição humana. Uma tal decisão pretende afirmar que é possível obstaculizar os desejos incontidos e inconfessos de preconceito, como ocorre no Brasil, e em qualquer país do mundo; vai-se além na afirmação, da própria humanidade, seja em que país a ideia pré-concebida psicologicamente se aloque. A liberdade e a autonomia do pensar (ainda que de modo tosco, aos moldes de Hitler) e do escolher (os possíveis consumidores do livro) são cotejadas como possíveis de serem podadas.
Afirme-se que uma decisão como a daquele órgão de competência criminal possui uma pretensão de ubiquidade de refração do pensamento considerado atualmente minoritário (em verdade, desprezado na ordem jurídica internacional), em viés quase metafísico. Mais claramente, argui-se que uma decisão judicial ousa ser capaz de calar a ideologia considerada minoritária e reputada indevida, ora preconceituosa, ora criminosa, calcada numa ordem de valores que não é a mesma que a então considerada consagrada na Lei Fundamental de Bonn pelo Tribunal Constitucional alemão, no já famoso e tantas vezes citado pela doutrina jurídica caso Lüth[4].
Pois bem, é isso que um pedido e uma decisão no sentido da proibição da veiculação daquela obra acaba por inspirar. Foi isso que, também, inspirou a decisão do STF, em 2003, no HC 82.424/RS, já citado em nota anteriormente. Lá e cá, seja 2003, seja 2016, o argumento de que o Brasil é signatário de tratados internacionais contra atos discriminatórios, e é regido pela Lei 7.716/89, que criminaliza a prática, a indução ou o incitamento da ideia discriminatória, ainda que por meio de uma publicação, não possui base jurídica suficiente para retirar do conhecimento público a obra (faça-se questão de enfatizar, esdrúxula) de Adolf Hitler. Voltar-se-á sobre esse ponto, ao final desse ensaio, mas tem-se em conta o peso axiológico, de cariz jusfundamental, de princípios e direitos como da liberdade e da autonomia na ordem constitucional brasileira.
Convenha-se que é necessário pugnar-se por uma melhor reflexão argumentativa: querer confundir a liberdade dos cidadãos para tomar criticamente a letra fria de um livro tão despropositado, subsistente nos dias atuais, com as ideias propaladas por alguém que foi protagonista do maior ato contra a humanidade, como se estivesse vivo, abre espaço para que novas interpretações sobre liberdade de veiculação de pensamento sejam consideradas hermeneuticamente suficientes para um só tipo de raciocínio argumentativo e jurídico – nota mental: lembrar-se do Mandado de Segurança nº 30.952/DF[5], que corre no STF e tem a relatoria atual do Min. Luiz Fux, que, indiretamente, quer vitimar a literatura de Monteiro Lobato com base em uma similar construção de raciocínio. No presente caso, do malfadado livro de Hitler, a despeito da considerada liberdade e autonomia do ser humano, poderia se pensar que pretende-se formular teórica e judicialmente uma espécie de responsabilidade penal objetiva, pois só uma ilação nesse sentido pode querer atribuir às editoras e livrarias a propagação de ideias discriminatórias contidas num livro de uma figura histórica que se encontra morta, desde há muito (consta que Hitler morreu em Abril de 1945), como um “fantasma”, para utilizar-se de uma figura fantasiosa típica de livros. Indo-se, além, então talvez fosse melhor alterar-se os livros de História e mandar-se suprimir os nomes e feitos macabros de Hitler, Lênin, e seus congêneres.
Quando o Judiciário atua nesse quadro, passíveis serem veiculadas críticas contundentes contra um tal “ativismo judicial”. Decisão desse tipo beneficia opiniões acerca de um mal exercício da função de Poder (alguns mencionariam o "judicialismo"[6]), ainda mais quando uma decisão jurisdicional pretende-se arvorar na defesa de direitos fundamentais. Por isso se mencionou alhures, que uma decisão como a do Judiciário fluminense namora mais com questões políticas, que jurídicas – considerando-se como jurídicas aquelas suficientemente calcadas no Estado Constitucional brasileiro, que não está contextualmente em mesmo patamar histórico, cultural e jurídico que a Lei Fundamental alemã.
Ousa-se colocar ao debate que entre a liberdade de propagação da ideia literária (repita-se, claramente proscrita) e a alegada defesa de um grupo étnico e sua memória (contra o medo e o "poder" do discurso odioso) deve-se preferir, além da suscitação de maior dialogia na sociedade, o conceito contido na liberdade plena e responsável dos cidadãos na condução de sua vida e de suas escolhas pessoais. Ratifique-se que em face daquela liberdade (de veiculação de obras literárias: de bom ou mal gosto, isso não cabe ao Judiciário apontar) haverá outra, que é justamente baseada na escolha pessoal de cada cidadão: ou conhecer a citada obra (reconhecidamente naufragada no ideário da defesa dos direitos humanos), ou renegar sua aquisição solapando, já na raiz, ideia tão vexaminosa contida naquele escrito.
Ao fim e ao cabo, numa sociedade atual tão imbrincada nos meios eletrônicos, somente uma visão estatal muito ingênua pensaria que seria possível não conhecer a obra “Mein Kampf” por outras fontes. Oferta-se, embora reconheça-se a dificuldade imanente e entronizada na sociedade, a reflexão.
Referências
BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numProcesso=2016.001.024910-6. Acesso em 12.02.2016.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC 82424/RS, Rel. Min. Moreira Alves, data de julgamento: 17.09.2003, Tribunal Pleno, DJ 19.03.2004. Fonte: http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2052452. Acesso em 11.02.2016.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS 30.952/DF, Rel. atual Min. Luiz Fux. Fonte: http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4165433. Acesso em 11.02.2016.
G1.GLOBO.COM.TJ-RJ proíbe venda e divulgação de 'Mein Kampf', autobiografia de Hitler. http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/02/tj-rj-proibe-venda-e-divulgacao-de-mein-kampf-autobiografia-de-hitler.html. Acesso em 09.02.2016.
MESA, Gloria Patricia Lopera. La Aplicación del Derecho en Los Sistemas Jurídicos Constitucionalizados. Cuadernos de Investigatión – Universidad EAFIT, Cuaderno 16, Medellín, Marzo 2004. Fonte: http://publicaciones.eafit.edu.co/index.php/cuadernos-investigacion/article/view/1325/1196. Acesso em 15.12.2015.
SCHWABE, Jürgen (col.). Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org. e introd. Leonardo Martins. Trad. Beatriz Hennig (et ali). Prefácio de Jan Woischnik. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer, Oficina Uruguay, 2005.
[1] Para consulta do andamento: BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.do?v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numProcesso=2016.001.024910-6. Acesso em 12.02.2016
[2] Para um rápido conhecimento do caso: G1.GLOBO.COM.TJ-RJ proíbe venda e divulgação de 'Mein Kampf', autobiografia de Hitler. http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/02/tj-rj-proibe-venda-e-divulgacao-de-mein-kampf-autobiografia-de-hitler.html. Acesso em 09.02.2016.
[3] A propósito, BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC 82424/RS, Rel. Min. Moreira Alves, data de julgamento: 17.09.2003, Tribunal Pleno, DJ 19.03.2004. Fonte: http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2052452. Acesso em 11.02.2016.
[4] Consulte-se o famoso caso Lüth (BverfGE 7, 198 [1958]) em SCHWABE, Jürgen (col.). Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org. e introd. Leonardo Martins. Trad. Beatriz Hennig (et ali). Prefácio de Jan Woischnik. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer, Oficina Uruguay, 2005. pp. 381-395.
[5] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS 30.952/DF, Rel. atual Min. Luiz Fux. Fonte: http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4165433. Acesso em 11.02.2016.
[6] MESA, Gloria Patricia Lopera. La Aplicación del Derecho en Los Sistemas Jurídicos Constitucionalizados. Cuadernos de Investigatión – Universidad EAFIT, Cuaderno 16, Medellín, Marzo 2004. Especialmente, pp. 60-64. Fonte: http://publicaciones.eafit.edu.co/index.php/cuadernos-investigacion/article/view/1325/1196. Acesso em 15.12.2015.