3. Pode-se falar em dimensões de Direitos Fundamentais 13?
Em razão de todas essas críticas, a doutrina recente tem preferido o termo "dimensões" no lugar de "gerações" 14, afastando a equivocada idéia de sucessão, em que uma geração substitui a outra.
No entanto, a doutrina continua incorrendo no erro de querer classificar determinados direitos como se eles fizessem parte de uma dada dimensão, sem atentar para o aspecto da indivisibilidade dos direitos fundamentais. Na verdade, não é adequado nem útil dizer, por exemplo, que o direito de propriedade faz parte da primeira dimensão. Também não é correto nem útil dizer que o direito à moradia é um direito de segunda dimensão.
O ideal é considerar que todos os direitos fundamentais podem ser analisados e compreendidos em múltiplas dimensões, ou seja, na dimensão individual-liberal (primeira dimensão), na dimensão social (segunda dimensão), na dimensão de solidariedade (terceira dimensão) e na dimensão democrática (quarta dimensão). Não há qualquer hierarquia entre essas dimensões. Na verdade, elas fazem parte de uma mesma realidade dinâmica. Essa é a única forma de salvar a teoria das dimensões dos direitos fundamentais.
Veja-se, a título de exemplo, o direito à propriedade: na dimensão individual-liberal (primeira dimensão), a propriedade tem seu sentido tradicional, de natureza essencialmente privada, tal como protegida no Código Civil; já na sua acepção social (segunda dimensão), esse mesmo direito passa a ter uma conotação menos individualista, de modo que a noção de propriedade fica associada à idéia de função social (art. 5º, inc. XXIII, da CF/88); por fim, com a terceira dimensão, a propriedade não apenas deverá cumprir uma função social, mas também uma função ambiental 15.
A mesma análise pode ser feita com os direitos sociais, como por exemplo, o direito à saúde. Em um primeiro momento, a saúde tem uma conotação essencialmente individualista: o papel do Estado será proteger a vida do indivíduo contra as adversidades existentes (epidemias, ataques externos etc) ou simplesmente não violar a integridade física dos indivíduos (vedação de tortura e de violência física, por exemplo), devendo reparar o dano no caso de violação desse direito (responsabilidade civil). Na segunda dimensão, passa a saúde a ter uma conotação social: cumpre ao Estado, na busca da igualização social, prestar os serviços de saúde pública, construir hospitais, fornecer medicamentos, em especial para as pessoas carentes. Em seguida, numa terceira dimensão, a saúde alcança um alto teor de humanismo e solidariedade, em que os (Estados) mais ricos devem ajudar os (Estados) mais pobres a melhorar a qualidade de vida de toda população mundial, a ponto de se permitir, por exemplo, que países mais pobres, para proteger a saúde de seu povo, quebrem a patente de medicamentos no intuito de baratear os custos de um determinado tratamento, conforme reconheceu a própria Organização Mundial do Comércio, apreciando um pedido feito pelo Brasil no campo da AIDS 16. E se formos mais além, ainda conseguimos dimensionar a saúde na sua quarta dimensão (democracia), exigindo a participação de todos na gestão do sistema único de saúde, conforme determina a Constituição Federal de 1988 (art. 198, inc. III).
O direito ao meio ambiente também pode ser visualizado em múltiplas dimensões. Em uma dimensão negativa, o Estado fica, por exemplo, proibido de poluir as reservas ambientais. Por sua vez, não basta uma postura inerte, pois o Estado também deve montar um aparato de fiscalização capaz de impedir que os particulares promovam a destruição do ambiente, a fim de preservar os recursos naturais para as gerações futuras. Além disso, já caminhando em uma quarta dimensão, o Estado deve proporcionar a ampla informação acerca das políticas ambientais (educação ambiental – art. 225, §1º, inc. VI, da CF/88), permitindo, de modo direto, a participação dos cidadãos na tomada de decisões nessa matéria, democratizando o processo político, através da chamada cidadania sócio-ambiental.
Os exemplos se seguem em todos os direitos fundamentais, inclusive os de cunho instrumental (direitos processuais). O direito de ação, por exemplo. Na visão tradicional, a ação tem aquele cunho individualista, representando a mera faculdade de acionar o Poder Judiciário. Com a segunda dimensão, o processo deixa de ser mero instrumento de proteção de direitos subjetivos, passando a ter uma conotação mais social, abrangendo as lides coletivas e exigindo do Estado uma postura mais ativa no sentido de facilitar o acesso à Justiça, sobretudo para as camadas mais pobres da população. Ganha também o processo uma conotação democrática (quarta dimensão), devendo ser abertos os canais de participação popular no debate judicial, a fim de pluralizar a discussão, garantindo, assim, uma maior efetividade e legitimidade à decisão, que será enriquecida pelos elementos e pelo acervo de experiências que os participantes do processo poderão fornecer 17. Essa democratização da atividade jurisdicional deve afetar, inclusive, a própria administração da Justiça, tornando, por exemplo, o processo de escolha dos membros do Judiciário mais transparente e legítimo.
Como se observa, a teoria da dimensão dos direitos fundamentais, vista com essa nova roupagem, possui implicações práticas relevantes, já que obriga que se faça uma abordagem de um dado direito fundamental, mesmo aqueles ditos de primeira dimensão, através de uma visão sempre evoluída, acompanhando o desenvolvimento histórico desses direitos 18.
Além disso, essa nova visão baseada na multidimensionalidade dos direitos fundamentais permite a superação da classificação dos direitos por status, desenvolvida por Jellinek, que é uma das responsáveis pelo entendimento de que os direitos sociais não seriam verdadeiros direitos, mas simples declarações de boas intenções destituídas de exigibilidade.
3. Conclusão
No presente trabalho, foi demonstrado que a teoria das gerações dos direitos fundamentais não é correta. As críticas desenvolvidas não tiveram, logicamente, a pretensão de desmerecer por completo a teoria. Pelo contrário. Pretendeu-se, apenas, apresentar alguns equívocos e perigos que ela pode acarretar para a concretização dos direitos considerados de gerações subseqüentes.
Não se nega a sua importância didática e simbólica. É fundamental que se busque sempre o reconhecimento de novos direitos, bem como que se tenha a consciência de que os direitos fundamentais não são valores imutáveis. Nesse ponto, a teoria facilita a compreensão do processo evolutivo dos direitos fundamentais, embora essa evolução demonstrada pela teoria não se aplique a todas as situações históricas.
Por último, é preciso reforçar a mudança de paradigma que deve ser feita. Não se deve procurar incluir tal ou qual direito em uma determinada geração (melhor dizendo: dimensão), como se as outras dimensões não afetassem o conteúdo desse direito. Todos os direitos fundamentais (civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, ambientais etc) devem ser analisados em todas as dimensões, a saber: na dimensão individual-liberal (primeira dimensão), na dimensão social (segunda dimensão), na dimensão de solidariedade e fraternidade (terceira dimensão) e na dimensão democrática (quarta dimensão). Cada uma dessas dimensões é capaz de fornecer uma nova forma de conceber um dado direito.
A liberdade sem o mínimo de igualdade pouco vale. Do mesmo modo, de nada adianta a igualdade se não há garantia de liberdade. A luta pela efetivação dos direitos fundamentais deve englobar todos esses direitos e não apenas os de uma determinada "geração", como se essa efetivação devesse ocorrer de forma progressiva de uma geração para outra.
Não se pode aceitar o discurso, tão em voga nesses tempos neoliberais, de que o papel do Estado é apenas garantir as liberdades básicas, cabendo à iniciativa privada a prestação dos direitos sociais e econômicos. Na verdade, se não houver uma intervenção estatal no sentido de promover a distribuição da riqueza, buscando a redução das desigualdades sociais (art. 3º, inc. III, da CF/88), através da concretização dos direitos sociais e econômicos, sobretudo para as pessoas mais carentes, a prometida "neo-liberdade" não passará de instrumento de escravização branca. Daí porque é cada vez mais importante quebrar essa dicotomia entre direitos de liberdade e direitos de igualdade, tratando todos os direitos fundamentais como valores indivisíveis e interdependentes.
Notas
[1] Cf. entre outros, PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 28.
[2] Palestra proferida durante o "Seminário Direitos Humanos das Mulheres: A Proteção Internacional". Disponível on-line: https://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/Cancado_Bob.htm
[3] A propósito, v. BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Interessante notar que até o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de reproduzir a teoria das gerações dos direitos fundamentais, conforme se observa no seguinte voto do Min. Celso de Mello: "enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade" (STF, MS 22164/SP).
[4] Já se fala em direitos de quarta, quinta, sexta e até sétima gerações, surgidas com a globalização, com os avanços tecnológicos (cibernética) e com as descobertas da genética (bioética). Cf. HOESCHL, Hugo César. O Conflito e os Direitos da Vida Digital. Disponível on-line (1º/11/2003): https://www.mct.gov.br/legis/Consultoria_Juridica/artigos/vida_digital.htm
[5] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 524/525.
[6] Cf. MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição como Democracia. Tese de Doutorado, p. 15/17.
[7] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª Ed., Saraiva, São Paulo, 2003, p. 433, 532/533.
[8] DE LUCA, Tânia Regina. Direitos Sociais no Brasil, p. 472. In: História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, pp. 469/493.
[9] Logicamente, a teoria de Jellinek não é tão simples assim, até porque ele inclui outras categorias de status. No entanto, para os fins que ora se propõem, vale mencionar apenas essas duas categorias.
[10] Os gastos com segurança interna nos Estados Unidos passaram de US$ 18 bilhões para US$ 38 bilhões após os ataques terroristas, conforme noticiou a imprensa (fonte: https://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20030910/pri_mun_100903_118.htm).
[11] No mesmo sentido, assim discorre Ingo SARLET: "o direito à saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do Estado e terceiros na saúde do titular, bem como - e esta a dimensão mais problemática - impondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a população, tornando, para além disso, o particular credor de prestações materiais que dizem com a saúde, tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de medicamentos, realização de exames da mais variada natureza, enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realização concreta deste direito à saúde" (Algumas Considerações em Torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988, p. 98. In: Interesse Público n. 12, São Paulo: Nota Dez, 2001, pp. 91/107).
[12] MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição como Democracia. Tese de doutorado, p. 217.
[13] Fala-se em "dimensões" de direitos fundamentais em vários sentidos, por exemplo, dimensões subjetiva e objetiva, dimensões analítica, empírica e normativa, entre outras (v. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002). Neste trabalho, porém, o termo dimensão está sendo cogitado apenas para substituir o termo geração.
[14] Entre outros: GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução ao Direito Processual Constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 26; SARLET, Ingo Wolfgand. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 47; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 524/525.
[15] Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução ao Direito Processual Constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 26.
[16] A notícia sobre a quebra de patentes de remédios para a AIDS foi amplamente divulgada nos meios de comunicação. Tratava-se, no caso, de um processo movido pelos Estados Unidos contra o Brasil, que havia permitido a licença compulsória de medicamentos com base na Lei de Propriedade Industrial brasileira e no Acordo Internacional sobre Propriedade Intelectual (TRIPS Agreement), firmado pelos países membros da OMC. Ao fim do processo, os EUA aceitaram que o Brasil produza medicamentos genéricos anti-Aids, desde que se comprometa a avisar antecipadamente a concessão de licenças compulsórias de patentes registradas por indústrias farmacêuticas norte-americanas.
[17] Nesse sentido, Peter HÄBERLE, na obra Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: uma contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição, defende que cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública constituiriam valiosas forças produtivas da interpretação, cabendo aos juízes ampliar e aperfeiçoar os instrumentos de informação, especialmente no que se refere às formas gradativa de participação e à própria possibilidade de interpretação do processo constitucional (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, pp. 9/10).
[18] A respeito da natureza histórico-evolutiva dos direitos humanos, v. BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
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