1.0 – INTRODUÇÃO
Após a entrada em vigor da Lei 11.689/08, surgiram novas regras para o procedimento do Tribunal do Júri Popular pátrio, as quais promoveram alterações de caráter substancial no nosso processo penal.
Dentre as várias alterações no procedimento do Júri, podemos citar o instituto do desaforamento, objeto de análise neste trabalho. A nova lei acrescentou algumas regras, que não existiam na legislação pre existente, como: “a legitimidade do MP para requerer o desaforamento, suspensão do julgamento pelo relator, distribuição imediata do pedido de desaforamento, desaforamento em virtude do excesso de serviço, incidente de aceleração do julgamento e a possibilidade de desaforamento na pendência de recurso contra a decisão de pronúncia”.
Desse modo, será objeto de analise deste trabalho o desaforamento do Júri, não abrangendo as demais modificações, abordando então suas hipóteses de ocorrência e algumas críticas à sistemática da nova Lei.
2.0- DESAFORAMENTO: CONCEITO E HIPÓTESES DE OCORRÊNCIA
Sabe-se que, em regra, a competência jurisdicional, em matéria penal, será “determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução” (inteligência do artigo 70 do Código de Processo Penal). Desse modo, a maioria da doutrina penal estabelece que o réu deva ser julgado no distrito da culpa, ou seja, onde cometer a infração penal. Vejamos o que menciona Júlio Fabbrini Mirabete:
"Em regra, a competência é determinada pelo lugar em que se consumou a infração (art. 70), de modo que o réu deve ser julgado no distrito de sua culpa, ou seja, onde cometeu o delito e a ordem social foi violada”.
Entretanto, em atenção aos artigos 427 e 428 do Código de Processo Penal, frutos das alterações trazidas a êxito pela Lei nº 11.689, de 2008, é possível verificar que essa regra de competência prevista no artigo 70 do CPP não é absoluta.
Nos crimes de competência do Tribunal do Juri Popular poderá haver um deslocamento de competência do julgamento para outra Comarca da mesma região.Configura-se, com isso, o chamado desaforamento, que nada mais é do que um instituto previsto no rito do Tribunal do Juri, nos artigos 427 e 428 do Código de Processo Penal.
Nas palavras de Aury Lopes Júnior, o desaforamento pode ser definido como: “uma medida extrema (até porque representa uma violação da competência em razão do lugar), no qual o processo é (des)aforado, ou seja, retirado de seu foro, daquela comarca originariamente competente para julgá-lo, é encaminhado para julgamento em outro foro”
Assim, tem-se que o desaforamento “é um instituto exclusivo do Direito Penal, mas só pode ocorrer quando os processos forem de competência do Tribunal do Júri, não havendo amparo legal para os processos de competência do juiz singular, sendo este, o entendimento da jurisprudência brasileira”.
Entrementes, é imperioso mencionar que o desaforamento, ocorrerá em quatro hipóteses. São elas: a) interesse da ordem pública; b) dúvida sobre a imparcialidade do júri, c) a segurança do réu exigir; d) comprovado excesso de serviço, Vejamos cada uma delas separadamente:
2.1 - Interesse da ordem pública:
Na opinião de Aury Lopes Júnior, o interesse da ordem pública se confunde com o interesse público, “formula imprecisa e indeterminada, que encontra seu referencial semântico naquilo que o juiz ou tribunal quiser, [...], ou seja, é uma clausula guarda-chuva”. Sob o elástico argumento da proteção do interesse da ordem publica podem ser trazidas à tona o fundamento da comoção social ou até mesmo, a inexistência de um local adequado para realização do júri. Pode-se ainda, com base nesse principio, desaforar o julgamento quando houver receio em relação a segurança dos jurados.
2.2 - Dúvida sobre a imparcialidade do júri:
É uma causa de desaforamento difícil de ser reconhecida, na pratica forense. Aury Lopes destaca que a duvida sobre a imparcialidade do júri geralmente decorre do “mimetismo midiático, ou seja, o estado de alucinação coletiva (e contaminação psíquica, portanto) em decorrência do excesso de visibilidade e exploração dos meios de comunicação.” .
A mídia, ao dar publicidade excessiva aos crimes de competência do tribunal do júri, faz com que exista sim dúvida sobre a imparcialidade do júri, isto porque os jurados, uma vez contaminados pelo sensacionalismo midiático, acabam por não ter condições de julgar o caso penal com “tranquilidade, independência e estranhamento”.
Ainda sobre a mídia, importante mencionar a opinião de Rodrigo Tourinho Dantas:
“Como é sabido, a imprensa, quase que invariavelmente, corrobora para despertar na população esse sentimento de antipatia, sobremaneira através de reportagens sensacionalistas, resultando, muitas vezes, na deturpação dos fatos. É importante frisar que, para requerer o desaforamento na hipótese de existir dúvida sobre a imparcialidade do Júri, é preciso que haja indícios necessários para que se suscite essa suspeita. A jurisprudência já se consolidou acerca dessa temática, afirmando que as dúvidas devem ser sérias, sendo vedadas as suspeitas vagas”
Todavia, os tribunais devem ter muita cautela, quando da concessão do desaforamento em razão da exposição midiática, pois, corre-se o risco de banalizar o instituto. “Também se deve considerar nessa rubrica o sentimento e prejulgamento gerado não pelo crime em si, mas pela pessoa sujeita ao julgamento”. O sentimento deve existir em relação à pessoa do acusado, e não ao crime que ele porventura cometeu.
2.3 - A segurança do réu exigir
Aqui deve ser considerado o risco de linchamento, e todos os atos que possam atentar contra a vida do acusado, especialmente pela falta de segurança adequada na Comarca onde deveria ocorrer o julgamento.
2.4 - Comprovado excesso de serviço:
Essa causa de desaforamento está prevista no artigo 428 do CPP e faz ligação direta com o direito fundamental de ser julgado em um prazo razoável (artigo 5, LXXVIII, da Constituição Federal). Cabe aqui analisar o que determina o artigo 428 do CPP.
O desaforamento por excesso de serviço poderá ser suscitado quando, de acordo com o artigo suso mencionado, o julgamento não puder ser realizado no prazo de seis meses, contado do transito em julgado da sentença de pronúncia (art. 428, caput, CPP).
O prazo, antes das alterações da Lei nº 11.689, de 2008 era de um ano, contado do recebimento do extinto libelo, conforme determinava o artigo 424, parágrafo único, revogado.
Pois bem, esse comprovado excesso de serviço, “não mais justifica a (de)mora jurisdicional, pois não se pode confundir comprovado excesso de serviço com justificada demora” . Esse dispositivo (art. 428, CPP) acaba por apresentar uma verdadeira solução processual para o acusado, porque confere a possibilidade de retirar o processo do foro inicialmente competente.
O artigo 428 ainda estabeleceu a possibilidade do “pedido de imediata realização do julgamento”. Isso não caracteriza o desaforamento, justamente porque é uma situação diferente daquele, que desloca a competência do lugar do julgamento. Alguns doutrinadores, como Aury Lopes, por exemplo, mencionam que esse pedido, por não se tratar de desaforamento, deveria ser tratado num dispositivo diferente, ou seja, em outro artigo, pois, aqui, não há o deslocamento da competência originária de julgar o processo. Esse pedido apenas ocorre em decorrência da já mencionada demora injustificada (não é excesso de serviço) no julgamento do caso penal.
Ressalta-se ainda, que “se o pedido de desaforamento for por excesso de serviço e dilação indevida (superior a seis meses) [...], o tribunal, em não aceitando o argumento de excesso de serviço, poderá determinar a imediata realização do julgamento, ainda que isso não tenha sido solicitado expressamente” .
3.0 – O PROCESSAMENTO DO PEDIDO DE DESAFORAMENTO
Cabe mencionar inicialmente, quando da análise do procedimento necessário para se “pedir” o desaforamento, que esse instituto possui natureza jurídica de “incidente processual de deslocamento da competência relativa”
O pedido de desaforamento poderá ser solicitado pelos seguintes legitimados: Ministério Publico, o querelante (nos casos de ação penal subsidiária), assistente de acusação, pelo réu, pelo Juiz presidente do Tribunal Popular do Júri, de oficio diretamente ao Tribunal. Inexiste uma previsão legal de dilação probatória para demonstrar as causas arguidas no pedido de desaforamento, de modo que a prova para suscitar o incidente deverá ser pré constituída.
Mesmo se o pedido não for realizado pela defesa do acusado, esta deverá ser ouvida no processo, sob pena de nulidade da decisão que por ventura o determinar, como foi sacramentado na súmula 712 do Supremo Tribunal Federal. Vê-se, claramente, que essa é uma medida de efetivação plena do princípio constitucional do contraditório, corolário do direito processual pátrio.
Quando acusação ou defesa realizarem o pedido, o juiz presidente do Tribunal do Júri deverá ser ouvido, a não ser que seja ele quem formule o pedido. O relator pode, “liminarmente suspender o julgamento pelo júri. Essa medida liminar, antecipatória da questão de fundo, deve ser utilizada sem a timidez infelizmente reinante nos tribunais brasileiros”
É imperioso ressaltar ainda, que é vedada a possibilidade do pedido de desaforamento enquanto não precluir (sentença de pronúncia não prescreve). Somente depois do trânsito em julgado dessa decisão é que se poderá efetuar o pedido de desaforamento. O desaforamento não cabe quando já houver sido realizado o julgamento. A exceção dessa regra ocorre quanto a fatos ocorridos durante ou após a realização do julgamento, que porventura vier a ser anulado.
Uma vez admitido o pedido de desaforamento, pelo tribunal, o julgamento deverá ser transferido para uma Comarca da mesma região, preferindo-se, dentre essas comarcas, as mais próximas daquela onde deveria ser julgado, originariamente, o caso penal.
Entretanto, Aury Lopes Júnior entende que,nos casos de dúvida sobre a imparcialidade dos jurados, o deslocamento da competência para uma Comarca próxima pode não ser suficiente, “pois não impõe o afastamento necessário. Daí porque, se a decisão for pelo desaforamento, deve o tribunal adotar uma medida efetiva e não um mero paliativo despido de suficiente poder de distanciamento do foco do problema originador do pedido”
O eminente doutrinador menciona ainda que, em certos casos, extremos, em que a competência para julgamento for da justiça federal, não há motivo que impeça que o julgamento seja desaforado para outro estado, dentro da abrangência do mesmo TRF. Assim, deve-se considerar, nestes casos extremos, a possibilidade de desaforar o julgamento para uma Comarca distante, dentro da jurisdição territorial do tribunal competente para julgar o pedido.
Por fim, há que se falar., mesmo que brevemente, do instituto do reaforamento. Esse instituto tem uma importância apenas teórica, tendo em vista que não possui aplicação prática na doutrina. Rodrigo Tourinho Dantas o define do seguinte modo: “Preliminarmente, temos que entender que o reaforamento é uma espécie de segundo desaforamento, ou seja, retira o julgamento do foro para o qual tinha sido designado (face o desaforamento), retornando para o foro original, de modo que o réu é julgado onde deveria sê-lo inicialmente”
Assim, uma vez desaforado o julgamento, em tese, seria possível o reaforamento, que é o retorno do ao foro de origem em decorrência do desaparecimento das circunstancias que autorizaram o desaforamento, desde que isso ocorra antes da realização do júri. “Ainda que nunca tenha ocorrido, nem mesmo em tese é tranquila sua aceitação, porque os efeitos do desaforamento são definitivos”.
4.0 – REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANTAS, Rodrigo Tourinho. O desaforamento e o reaforamento no novo procedimento do júri. Disponível para acesso em: http://www.mpto.mp.br/cint/cesaf/arqs/180708023740.pdf.
MESQUITA, Luana. O cabimento do desaforamento e o respeito ao princípio do contraditório. Disponível para acesso em: http://textolivre.com.br/artigos/49667-o-cabimento-do-desaforamento-e-o-respeito-ao-principio-do-contraditorio. Site visitado em: 23/06/2014 às 09:51hs
MIRABETE, Julio Fabbrini. CPP interpretado. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2000
JR, Aury Lopes. Direito Processual Penal . 10 ed, Saraiva, São Paulo:2013