A prisão daqueles que matam no trânsito é a solução?

24/02/2016 às 21:45
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Da simples análise da reportagem em questão, é possível inferir que os entrevistados são unânimes em defender a prisão daqueles que dirigem embriagados e matam no trânsito. Entretanto...

De acordo com uma reportagem exibida no Jornal Nacional (da Rede Globo) do dia 18 de janeiro de 2016[I], “a legislação brasileira não é clara na hora de punir um motorista embriagado quando tira a vida de alguém em um acidente. Por isso, casos parecidos podem ter desfechos muito diferentes.”

Diante disso, para possibilitar a apresentação de uma resposta ao questionamento em apreço, além de trechos da reportagem a seguir reproduzidos, é importante observar o que se segue.

Pois bem, inicialmente, o vídeo (da reportagem) apresenta dois casos de homicídio praticados por condutores que dirigiam sob o efeito de álcool.

No primeiro deles, dois homens que pintavam uma ciclofaixa na Zona Norte de São Paulo foram atropelados por uma condutora que dirigia seu veículo em alta velocidade. Ela responde em liberdade, por homicídio culposo[II].

Já no segundo, após avançar o sinal vermelho num cruzamento da Zona Leste de São Paulo, um condutor bateu seu veículo em outro, culminando na morte de uma mulher e na lesão corporal de seu marido. O condutor está preso desde o acidente e vai a júri popular, por homicídio doloso[III] (dolo eventual[IV]).

Nos dois casos, segundo a reportagem, “o teste do bafômetro indicou que os motoristas tinham bebido mais do que o dobro que a lei permite. Mas delegados e juízes tiveram interpretações diferentes.”

Neste ponto cabe um esclarecimento: ao contrário do que mostra a reportagem (no vídeo), não existe “tolerância” de 0,34 mg/L. Aliás, ao atingir este nível (ou superior) de álcool por litro de ar alveolar expirado, além de ser autuado no art. 165[V] do Código de Trânsito Brasileiro - CTB, o condutor poderá ser condenado pelo crime do art. 306[VI] do mesmo diploma legal, com base no estabelecido pela Resolução n. 432/2013[VII] do Conselho Nacional de Trânsito.

O primeiro entrevistado, Guilherme de Souza Nucci, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, diz que “nós estamos hoje vivendo uma loteria que é: alguns operadores do direito dizem que quem mata na direção, embora alcoolizado, tem que ser encaixado no Código de Trânsito a uma pena pequena. E outros dizendo não. Do que nós estamos precisando? De um meio termo.”

Para evitar esse tipo de “loteria” (divergência), é oportuno registrar que sempre fui contra a inserção dos “crimes de trânsito” no Código de Trânsito Brasileiro, conforme consta do Manual Faria de Trânsito – As infrações de trânsito e suas consequências[VIII], de minha autoria.

Durante a entrevista, o nobre desembargador assevera que “nós precisamos de um tipo penal específico para quem mata na direção embriagado, mas que não precisa ir para o Tribunal do Júri pegar oito anos e também não merece pegar dois e sair no regime aberto, que é ir pra casa dele. Esse é o problema. A pena do indivíduo que dirige embriagado e mata precisa ficar em um patamar intermediário entre o homicídio doloso e a culpa comum, mas com regime sério.” (negritei)

O segundo entrevistado, Ailton Brasiliense Pires, “especialista em legislação de trânsito, explica que o código de trânsito define regras de comportamento para os motoristas - por exemplo, parar no sinal vermelho. Mas quando o motorista bebe, dirige e mata, ele comete um crime. Neste caso, é o código penal que deveria ser aplicado, e não o código de trânsito.”

Por fim, o terceiro entrevistado, Mauricio Januzzi Santos, presidente da Comissão do Sistema Viário OAB/SP, enfatiza que “da forma como está hoje e se nada for feito, nós vamos repetir várias e várias vezes esta entrevista e aquele que mata no trânsito será efetivamente colocado em liberdade.”

Consta (da reportagem) que “os órgãos de trânsito não sabem quantas pessoas morrem vítimas de motoristas embriagados no Brasil; a Justiça também não sabe dizer o que acontece com eles, quantos estão cumprindo pena ou esperando julgamento. São números que dariam a dimensão do problema e que poderiam apontar soluções.”

Pois bem, da simples análise da reportagem em questão, é possível inferir que os entrevistados são unânimes em defender a prisão daqueles que dirigem embriagados e matam no trânsito.

Aliás, a menos que eu esteja enganado, a prisão é considerada (e defendida por muitos) como sendo a melhor solução, um verdadeiro “remédio” para o caso em questão, desde que, por óbvio, seja destinada a outros (estranhos). Quando, porém, o destinatário (da prisão) é (ou for) um familiar, um ente querido ou até um amigo próximo, o “remédio” certamente passará a ser visto por (quase) todos como um (senão o pior) veneno.

Por isso, neste ponto, é importante lembrar que:

Somente dois em cada dez presos trabalham no Brasil[IX].

Cada preso no Brasil custa entre R$ 2,7 mil e R$ 3 mil por mês, conforme variação de Estado para Estado no País[X].

A “pena de prisão não ressocializa e nem reintegra o preso à sociedade. Ao contrário, ela embrutece, avilta e devolve à sociedade criminosos violentos e agressivos”, assevera Jeferson Botelho Pereira [XI].

Na maioria dos casos, a prisão serve tão somente para tornar alguém (às vezes) do bem em mais um marginal, a serviço do crime.

Como é sabido, há cidadãos que, embora do bem, trabalhadores e excelentes pais de família, eventualmente podem cometer um homicídio no trânsito, ao dirigir de forma imprudente e até irresponsável (sob o efeito de álcool ou não). E aqui, por óbvio, se incluem os jornalistas, juízes, advogados, promotores, policiais, professores, dentre outros profissionais.

A propósito, há um vídeo do PATETA NO TRÂNSITO[XII] que, apesar de antigo, serve para demonstrar o que um ser humano (mesmo sóbrio) ainda é capaz de fazer nos dias atuais, principalmente quando está ao volante de sua “armadura protetora”, cego pela forte, porém, falsa, sensação de poder.

Ademais, todos sabem, atualmente há uma conduta (doentia e preocupante) tão perigosa quanto (ou até mais que) dirigir sob o efeito de álcool. Trata-se da conduta de dirigir utilizando o celular para qualquer fim[XIII].

Em razão disso, a seguinte questão se impõe:

Quando algum familiar, amigo ou ente querido estiver utilizando o celular ao volante, com o veículo em movimento (para falar com você, caro leitor) e, em decorrência dessa conduta, vier a atropelar e matar alguém no trânsito (um pedestre, por exemplo), qual será o melhor caminho a ser seguido pelo Poder Judiciário: Condená-lo à prisão? Ou, por exemplo, condená-lo ao pagamento de uma pensão mensal[XIV] (a ser instituída por lei) aos dependentes da vítima?

Lembre-se que em caso de condenação à prisão, além de se tornar um ser improdutivo (se, por óbvio, estiver trabalhando antes da prisão), o condutor poderá deixar ao desamparo os dependentes de sua vítima (caso não disponham de qualquer fonte de renda) e, consequentemente, a própria família (caso existente).

Trabalhando, por óbvio, o condutor terá, em tese, condições de pagar a referida pensão aos dependentes de sua vítima (ou à própria vítima, no caso de invalidez permanente), para que todos (inclusive a própria família) possam (sobre)viver com o mínimo de dignidade.

Assim, a família do condutor nem precisará requerer o auxílio-reclusão, quando cabível. 

E o Estado, por sua vez, não precisará gastar o dinheiro público (de todos nós) com a manutenção de condutores presos, reféns do crime.

Por tais motivos, em resposta ao questionamento inicial, e longe de querer defender quem dirige de forma imprudente e irresponsável, sob o efeito de álcool ou de qualquer substância psicoativa, digo que a prisão daqueles que eventualmente matam no trânsito nem sempre é (ou será) a melhor solução. Tudo, por óbvio, dependerá do caso concreto.

A meu ver, ao invés de cumprir a pena em regime fechado (defendido por muitos), em semiaberto ou até num “regime sério” (defendido pelo nobre desembargador acima mencionado), o condutor (sem antecedentes e não alcoólatra[XV]) condenado por matar alguém no trânsito deveria cumprir sua pena em regime aberto (devidamente monitorado), principalmente para continuar trabalhando (não como motorista, é claro), pagando pensão a quem de direito e, além disso, prestando serviços à comunidade (especialmente em hospitais públicos), para refletir sobre seus atos.

Deixar alguém (ou muitos) ao desamparo, e manter aquele (condutor) que poderia suprir as suas necessidades atrás das grades, dando despesas para o Estado e aumentando ainda mais o exército de inúteis, é, na realidade, uma injustiça com a própria vítima e/ou com seus dependentes.

Não há justiça em (aliás, é um equívoco) condenar um ser humano do bem (produtivo) à prisão e transformá-lo num ser inútil, a serviço do crime.

A privação da liberdade deve ser reservada especialmente para aqueles que violam (ou vierem a violar) a pena imposta judicialmente, bem como àqueles que não conseguem, não merecem e não podem viver em sociedade, tais como: estupradores, traficantes, assassinos e corruptos de toda e qualquer espécie, ladrões do (nosso) dinheiro público. Estes últimos, aliás, são capazes de matar muito mais do que qualquer condutor embriagado ou imprudente. São capazes de matar uma nação inteira.

Para encerrar, antes de discordar do meu posicionamento, sugiro, com o devido respeito, a realização de uma pesquisa junto aos dependentes de vítimas fatais de trânsito (menos favorecidas, por óbvio) para saber como eles estão conseguindo sobreviver.

São Paulo, 24 de fevereiro de 2016.

 

 

 


[I] Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/01/juristas-explicam-dificuldade-de-punir-motoristas-embriagados-que-matam.html (acesso em 18/02/2016).

[II] O crime é considerado culposo “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia” (CP, art. 18, II).

[III] O crime é considerado doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” (CP, art. 18, I).

[IV] Quando o agente não quer o resultado, mas assume o risco de produzi-lo, estamos diante do famoso dolo eventual (CP, art. 18, I, segunda parte).

[V] Art. 165.  Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Infração - gravíssima; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. (Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012)

Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro(Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012)

Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses. (Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012)

[VI] Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012)

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

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§ 1o  As condutas previstas no caput serão constatadas por: (Incluído pela Lei nº 12.760, de 2012)

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou (Incluído pela Lei nº 12.760, de 2012)

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. (Incluído pela Lei nº 12.760, de 2012)

§ 2o  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.   (Redação dada pela Lei nº 12.971, de 2014)

§ 3o  O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia ou toxicológicos para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.   (Redação dada pela Lei nº 12.971, de 2014)

[VII] Disponível em http://www.denatran.gov.br/resolucoes.htm .

[VIII] G.A. FARIA DIAS - ME, 16ª edição, 2016, Q-62, p. 306.

[IX] Conforme notícia disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/02/1740933-somente-dois-em-cada-dez-presos-trabalham-no-brasil.shtml (acesso em 20/02/2016).

[X] Conforme notícia disponível em: http://www.brasilpost.com.br/2015/09/08/preso-paga-estadia-prisao_n_8105910.html (acesso em 18/02/2016).

[XI] PEREIRA, Jeferson Botelho. Falência da pena de prisão no BrasilRevista Jus Navigandi, Teresina, ano 21n. 461317 fev. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/46433>. Acesso em: 24 fev. 2016.

[XII] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RMZ3bsrtJZ0 (acesso em 24/02/2016).

[XIII] A respeito do assunto, há um artigo muito esclarecedor disponível no portal do Senado: http://www.senado.gov.br/senado/portaldoservidor/jornal/Jornal133/utilidade_publica_celular.aspx (acesso em 23/02/2016).

[XIV] Embora esse tipo de pensão esteja sendo imposta judicialmente, com base na responsabilidade civil, por ato ilícito (ver arts. 927 e seguintes do Código Civil), talvez fosse melhor instituir uma nova espécie de pensão mensal (com duração de até trinta anos, conforme o caso), alçada à categoria de pena criminal (restritiva de direitos), a exemplo da prestação pecuniária (CP, art. 43, I), com a possibilidade de ser convertida em privativa de liberdade quando ocorrer o seu descumprimento injustificado.

[XV] O alcoólatra, comprovadamente declarado como tal, por óbvio, precisa de ajuda profissional especializada e, conforme o caso, deve ser submetido à medida de segurança.

Sobre o autor
Gilberto Antonio Faria Dias

Advogado, pós-graduado em Direito Público,Subtenente veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo,autor do Manual Faria de Trânsito, 16ª edição, 2016

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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