Boa-fé objetiva em matéria contratual

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O estudo do instituto da Boa-Fé se faz bastante relevante desde os mais remotos tempos até a sua positivação no CC/02. Com a inserção deste princípio em nosso ordenamento ficou mais prática a aplicabilidade do mesmo pelos juízes e tribunais.

INTRODUÇÃO

Com a crescente transformação das relações sociais e, consequentemente, também das relações jurídicas, cada vez mais tem sido necessária a edição de novas leis e até mesmo novas formas de interpretações das normas, a fim de que se adequassem às atuais dinâmicas sociais. Com a dificuldade de enxergar a má-fé nos casos concretos houve a necessidade de implantar e aplicar o princípio da boa-fé objetiva a sociedade com o intuito de resguardar os direitos dos indivíduos e amenizar os impactos negativos causados de forma a frear a deliberação exacerbada da autonomia da vontade.

Então, o fito deste princípio é resguardar e proteger os direitos dos indivíduos em uma relação jurídica? Sim, pois para que seja harmoniosa, de forma geral, a vida do homem na sociedade é exigível que se atenda ao cumprimento de condutas leais e honestas. Tal princípio deve ser observado em todas as relações jurídicas, devendo as partes guardar a lealdade e confiança.

Por isso, se faz necessário o entendimento conceitual do Princípio da Boa-fé objetiva, como também de suas modalidades de forma a compreender a relação do homem e suas relações jurídicas, e identificar os atos de má-fé ou atos ilícitos inseridos nestas relações, mais precisamente nas relações contratuais, sob a ótica deste princípio.

É importante frisar que a boa-fé objetiva viabiliza uma dinamização no que se refere a aplicação do direito, assim permitindo uma prestação jurisdicional à sociedade, de acordo com cada caso concreto e com os valores que a própria sociedade acolhe.

Com a compreensão do conceito do ato ilícito podemos identificar quais modalidades, ou desdobramentos deste princípio e como se adequam nos casos concretos. Em termos latos, temos os seguintes desdobramentos da boa-fé objetiva: o supressio, surrectio, tu quoque, exceptio doli, duty to mitigate the loss e venire contra factum proprium.

Estes institutos tem função integrativa, ao passo que suprem as lacunas do contrato e traz deveres implícitos às partes contratuais. Eles foram reconhecidos por um enunciado da V Jornada de Direito Civil, mais precisamente o Enunciado 412.

A escolha deste tema se deu por se tratar uma matéria bastante relevante e que tem ganhado mais evidência ao passar dos anos, visto que reiteradas vezes os Tribunais têm-se utilizado de novas formas de interpretações, embasando-se em normas à luz do princípio da Boa-Fé Objetiva ensejando em decisões favoráveis a essa ótica.

O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

Uma das mais importantes mudanças que fora introduzida no Código Civil de 2002 é a previsão evidente do princípio da boa-fé contratual, que no código anterior, o de 1916, não o tinha. Vale lembrar, que antes do atual código, tal princípio tinha uma concepção subjetiva, ou seja, estava relacionada com o intento do sujeito de direito.

No Direito romano já se tinha uma ideia de uma outra faceta da boa-fé, a objetiva, que estava ligada à conduta das partes, e não por um estado de ignorância da pessoa. Com o advento do jusnaturalismo, da boa-fé subjetiva saltou-se para a objetiva, sendo então consolidada nas codificações privadas.

Hoje, nosso atual código entende que o Princípio da Boa-fé Objetiva se trata de um conceito jurídico, sendo uma regra de comportamento de revestimento ético e de exigibilidade jurídica, que visa garantir a estabilidade e segurança no mundo dos negócios jurídicos.

A previsão desse instituto em nosso ordenamento jurídico se deu pela crescente transformação das relações sociais e, por conseguinte das relações jurídicas, que como já fora falado se trata de uma regra comportamental de fundo ético e moral. Com a dificuldade de enxergar a má-fé nos casos concretos houve a necessidade de implantar e aplicar o princípio da boa-fé objetiva a sociedade com o intuito de resguardar os direitos dos indivíduos e amenizar os impactos negativos causados de forma a frear a deliberação exacerbada da autonomia da vontade.

Pablo Stolze e Pamplona nos traz justamente essa ideia de que a Boa Fé Objetiva é um princípio de caráter moral e ético, mas que ganhou alcance de natureza jurídica, sendo então exigível nas relações jurídicas, conforme conceito transcrito abaixo dos autores supracitados: “[...] a boa-fé é, antes de tudo, uma diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico. Vale dizer, a boa-fé se traduz em um princípio de substrato moral, que ganhou contornos e matiz de natureza jurídica cogente”.

Para que se aprofunde mais no tema, se faz necessário a distinção da boa-fé subjetiva da boa-fé objetiva. Uma vez que àquela nos dizeres de Pablo Stolze e Pamplona, se trata de uma situação psicológica, um estado de espírito da parte que que está em uma relação jurídica, mas que desconhece o vício que a inquina. Ou seja, é um estado de ignorância do agente em dada situação, como por exemplo um possuidor de boa-fé que não tem ciência do vício que macula a sua posse. Enquanto que a boa-fé objetiva se trata de um princípio de teor jurídico, funcionando como uma regra de comportamento, de caráter ético e moral e de exigibilidade jurídica.

Outra questão importante a ser discutida é o que se refere a uma melhor compreensão do princípio da boa-fé objetiva. O que seria essa compreensão? Seria compreender esse caráter ético e moral. Esse caráter deve ser um presente imperativo, ou seja, constante nas relações jurídicas. Se trata de as partes guardarem entre si a lealdade e o respeito mútuo.

Esse respeito mútuo para ser guardado depende da observância a certos deveres, deveres esses chamados de anexos ou de proteção. São eles: lealdade e confiança, assistência, informação, confidencialidade ou sigilo. Estes, devem ser cumpridos por ambas as partes, tanto pelo polo ativo, como pelo polo passivo, que serão abordados mais claramente na monografia.

Cumpre-nos observar que o princípio da boa-fé objetiva possui funções. A primeira função é a interpretativa e de colmatação, em que os negócios jurídicos, no caso os contratos, devem ser interpretados de acordo com os fins sociais e as imposições do bem comum, conforme transcreve o art. 113 do atual Código Civil Brasileiro: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.

Há, também, a função criadora de deveres anexos, como citados acima, que são considerados “invisíveis” mesmo que existam no plano jurídico.

E por última, a função delimitadora do exercício de direitos subjetivos. Esta, visa obstar as práticas abusivas dos direitos subjetivos, em que a quebra ou o desrespeito à boa-fé objetiva conduz a responsabilidade civil, e essa não depende de culpa.

O tema de aplicação da boa-fé objetiva será tratado de forma mais aprofundada na monografia em relação aos contratos, onde será analisada todas as fases do contrato e o art. 422 do atual Código Civil. Mas em síntese, o referido artigo estabelece que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé”.

Tal dispositivo em análise, como atesta Judith Martins Costa, se trata de um princípio geral, uma cláusula geral e que será utilizado pelo aplicador do Direito de acordo com o caso concreto. Mas de uma forma geral, consagra a necessidade de ambas as partes conservar, em todas as fases contratuais, a lealdade e a probidade. A boa-fé traz consigo, implicitamente, funções específicas como a equidade, a razoabilidade, a cooperação, enfim, expressões que manifestam os deveres anexos.

A boa-fé é um preceito de ordem pública, reconhecido pelo Enunciado n. 363 do CJF. Há outros comandos legais que também a prevê, um deles é art. 167 § 2º do CC em que: “Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contratantes do negócio jurídico simulado”. Contudo, o negócio simulado é agora nulo, tal nulidade está prevista no art. 167, caput, do CC.

Uma dúvida recorrente, sobre o art. 422 do CC é se a boa-fé tratada pelo comando legal se trata da objetiva, que está ligada a boa conduta de colaboração, ou a subjetiva, que está relacionada a ignorância do vício, a boa intenção. Em resposta, o dispositivo consagra o princípio da boa-fé objetiva, que tanto observa a probidade e a lealdade, e também a boa intenção, abarcando então a boa-fé subjetiva. Flávio Tartuce se utiliza de uma fórmula matemática para auxiliar na conceituação da boa-fé que apresento a seguir:

Art.422 CC – Princípio da Boa-fé Objetiva:

Boa-fé Objetiva = Boa-fé Subjetiva (boa intenção) + (e) Probidade (Lealdade).

Outra dúvida bastante presente é quanto a fase pré-contratual já que não tem previsão legal. Será então que há necessidade de aplicação da boa-fé objetiva na fase preliminar? Quais seriam as consequências advindas da sua falta de aplicação nesta fase? Seria um abuso de direito para aquele que não respeita este princípio?

Mesmo não tendo expressa menção no nosso atual Código Civil, como já fora falado outrora, os Enunciados 25 e 170 do CJF reconhecem a aplicação da boa-fé objetiva nas fases pré-contratuais. Um dos primeiros entendimentos jurisprudenciais quanto a essa matéria, e que ficou conhecido em todo o Brasil como o “caso dos tomates” referente a empresa CICA. Esta, distribuía sementes a pequenos agricultores gaúchos prometendo-lhes de comprar a futura produção. Isso ficou ocorrendo por repetidas vezes, que acabou gerando expectativas nos agricultores, achando que sempre seria celebrado o contrato da compra e venda da produção. Certa vez, as sementes foram distribuídas, mas a mesma não adquiriu a produção. Então os agricultores ingressaram com demandas indenizatórias, alegando a quebra da boa-fé por parte da CICA, e mesmo não havendo contrato feito, teve êxito.

O Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu uma sentença nesse sentido:

Seguro facultativo de veículo. Roubo. Negativa de cobertura. Cláusula contratual que prevê a perda do direito à indenização em caso de pendência administrativa. Existência de restrições financeira e judiciais, no caso. Descabimento. Abusividade. Aplicação do princípio da boa-fé contratual na fase pré-contratual, assim como em sua execução. Art. 51, IV, CDC c.c. art. 765, CCivil. Pagamento da indenização devido. Hipótese dos autos que, ante o gravame financeiro (alienação fiduciária) e as restrições judiciais (penhoras decorrentes de quatro processos distintos), recomendam o depósito judicial. Apelo provido, com determinações.

DESDOBRAMENTOS DA BOA-FÉ OBJETIVA

Adentrando mais no assunto, cabe-nos salientar sobre desdobramentos da boa-fé objetiva, que em matéria contratual, a aplicação destes gera significativos efeitos, nas mais diferentes áreas. Os desdobramentos são considerados subprincípios, que serão analisados a seguir.

O Venire contra factum proprium é a primeira repercussão do princípio da boa-fé objetiva que consiste em uma vedação do comportamento contraditório. Na sua tradução literal significa vir contra fato próprio. Logo, entende-se que o indivíduo não pode praticar um ato ou vários atos, e logo após, realizar conduta totalmente contrária a seus atos. No campo contratual, os contratantes devem agir de forma coerente, já que pela confiança depositada se tenha boas expectativas quanto aos seus comportamentos. Um exemplo reside no art. 330 do CC, em que o credor que aceitou, durante a execução do contrato, o pagamento em lugar diverso do combinado, não podendo surpreender o devedor com a exigência literal do contrato e então alegar descumprimento por parte deste.

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Outro relevante desdobramento é a supressio. Se trata de uma expressão alemã que significa a perda de um direito pela falta de seu exercício por certo lapso temporal. Verifica-se, de pronto, que se trata de instituto de prescrição, ou seja, de refere à perda da própria pretensão. A supressio é um comportamento omissivo, que exercendo o direito posteriormente se torna incompatível com as expectativas geradas. Por conta de uma inatividade gera a perda da eficácia, não podendo mais ser exercido. Um exemplo prático é o uso de área comum por um condômino em exclusividade por um período considerável, que importa a supressão da pretensão de cobrança de aluguel pelo tempo de uso. É importante ressaltar que supressio é diferente de prescrição, pois esta se perde pretensão somente pelo prazo, enquanto aquela depende de se constatar que o comportamento da parte não era mais aceitável devido o próprio princípio da boa-fé.

 A surrectio é o oposto, é a outra face do supressio. Se neste há perda de um direito pela não atuação, aquele se refere ao surgimento de um direito com exigibilidade por decorrência de um comportamento por uma das partes. É um nascimento de um direito. Podemos utilizar o mesmo art.330 do CC para considerarmos um exemplo. Se, o credor aceitou, durante a execução do contrato, local de pagamento diverso do pactuado, há tanto a supressio por parte do credor de exigir o adimplemento do contrato, como a surrectio por parte do devedor que ganhou o direito de adimplir o contrato em local diverso.

Para mencionarmos o próximo desdobramento, relembremos uma frase historicamente conhecida: “Tu quoque, Brutus, fili mi!”. Essa frase foi dita por Júlio César, quando fora traído por seu filho Brutus. O Tu quoque é um dos mais comuns institutos da boa-fé objetiva. Se verifica em situações em que há um comportamento que rompe com a confiança, ou seja, surpreende uma das partes, colocando-a em situação de injusta desvantagem. Verifiquemos o art.180 do CC como exemplo para tal desdobramento, em que “menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”.

Há também a exceptio non adimpleti contractus ou a exceção do contrato não cumprido, estando previsto no código civil nos arts.476 e 477. De acordo com o primeiro, a exceção do contrato não cumprido só pode ser aplicado aos contratos bilaterais, ficando excluído os unilaterais. Este instituto tem como fito fazer a parte devedora quitar o seu débito para que, então a parte credora cumpra com a sua 

obrigação no contrato, podendo ser invocado a qualquer momento. Um ponto interessante neste desdobramento é que a função social do contrato está acima dos interesse individuais das partes. Como assim? Por exemplo, o caso de um médico que presta serviços a um hospital público, e este mesmo hospital não adimple com seu salário. O medico, em questão, não poderá deixar de cumprir com sua obrigação alegando a falta de pagamento do seu salário. O interesse público aqui, que no caso é a saúde, fala mais alto. Segundo o autor Silvio Rodrigues, o indivíduo ao exercer seu direito encontra uma limitação, devido o interesse público se sobrepor ao seu próprio interesse. Em seus dizeres: “Todavia essa Liberdade concedida ao indivíduo, de contratar o que entender, encontrou sempre limitação na ideia de ordem pública, pois, cada vez que o interesse individual collide com p da sociedade, é o desta última que deve prevalecer”.

E por fim, o duty to mitigate the loss, ou o dever de mitigar o próprio prejuízo, tem inspiração no direito anglo-saxônico. Aqui, para o contratante credor deve obter medidas adequadas para que o dano do devedora não seja agravado. O Enunciado 169 do CJF enuncia que “Art.422: O Princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. Ou seja, é o dever de mitigar, minimizer o âmbito de extensão do dano. Utilizemos de um caso hipotético. Ocorre uma colisão de veículos automotores, em que o proprietário do carro abalroado tem o direito de ser indenizado por aquele que causou o prejuízo. Por enquanto, que aquele que causou o ilícito foi acionar o guincho, o prejudicado nota que há algumas fagulhas saindo do motor, e ao invés de providenciar o extintor de incêndio, deixa as fagulhas se espalharem para que sua indenização seja maior, e ocorrendo a perda total do veículo, o motorista que lhe causou a batida deverá lhe pagar um carro novo. O dever do prejudicado não é aumentar o seu dano com o fito de melhor se beneficiar, e sim, contribuir para a minimizar o prejuízo, que nesse caso hipotético, deveria ter feito o uso do instintor de incêndio.

CONCLUSÃO

Em suma, a conjugação de todos estes institutos descritos como desdobramentos ou modalidades de exercícios abusivos de direitos, são derivados de uma cláusula geral: a boa-fé objetiva. Em todas as conjecturas, há uma violação do princípio da boa-fé objetiva que acaba derivando um ato ilícito, que é um comportamento reprovável ao plano jurídico.

Com todo apontamento e explicações feitas, concluímos que o princípio da boa-fé objetiva funciona como um modelo capaz de nortear as relações jurídicas, especificamente as contratuais, devendo tal princípio estar articulado coordenadamente com as outras normas do nosso ordenamento, afim de alcançar a adequada concreção. Em relação aos contratos, no que tange a boa-fé, haverá, necessariamente, um balanceamento entre os interesses privados do contrato e os interesses da sociedade, ensejando em um equilíbrio por via da boa-fé, de forma a amenizar a tensão entres polos e direções. Nesse sentido, o princípio da boa-fé se sistematiza em setores de funções, ao qual já falamos, como a função interpretativa, a integrativa ou criadora de deveres anexos e a de controle ou limitadora. E por fim, vimos que as modalidades ou desdobramentos da boa-fé objetiva são considerados subprincípios da mesma, e que consistem em exercícios abusivos de direitos e que gera extensos efeitos, em que a cláusula geral da boa-fé busca concretizar uma harmonização no plano das relações jurídicas.

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Sobre as autoras
Jessica Maria

Ensino Médio Completo. Ensino Superior Incompleto - Bacharelando em Direito.

Camilla Christina

Ensino Médio Completo Ensino Superior Incompleto - Bacharelando em Direito

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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