A obra do mestre Eugenio Rául Zaffaroni é constituída de sete capítulos, cada qual com o objetivo de proporcionar contribuições significativas no que tange à abordagem dialética entre o Estado de Direito e o de Polícia.
Essas contribuições partem do senso crítico do autor, na medida em que este traduz sua experiência e fundamenta a respeito do tratamento punitivo conferido aos seres humanos, estes últimos, por sua vez, acabam privados da condição de pessoas.
Os aspectos teóricos adotados pelo autor argentino ao longo da obra se complementam, se encaixando perfeitamente no modelo de sociedade em que vivemos. A obra é, antes de ser um texto puramente científico e/ou teórico, um retrato do direito punitivo, uma denúncia dos variados processos de “demonização” sofridos por determinados indivíduos ao longo da história. Partindo de uma opinião pessoal, acredito que Zaffaroni reproduziu com exatidão o “rosto do direito penal”, suas máscaras e suas falsas promessas.
Logo na introdução da Obra, o autor nos apresenta a “hipótese geral ou básica”, que vai tentar demonstrar no decorrer dos outros capítulos. Temos, dessa maneira, logo na introdução uma das ideias centrais do livro: o poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento de hostis, negando-lhe a condição de pessoa, lhe aplicando um tratamento discriminatório, estigmatizante e eliminatório, considerando-o em função de coisa ou como o próprio autor menciona “ente danoso”[1].
A doutrina e as leis acabam por conferir legitimidade a esse tratamento, baseadas em saberes que se dizem empíricos sobre a cultura humana. Essa “doutrina” vai contra os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito e acaba se aproximando do ideal de Estado Absoluto.
Assim, no primeiro capítulo de O Inimigo no Direito Penal, o autor discute em seis subtópicos, as hipóteses que colocam o ideário e o próprio poder punitivo em xeque, apresentando-nos ainda, o conceito do que é direito penal e as últimas tendências globais adotadas pelo poder punitivo no que diz respeito à atribuição do tratamento de inimigo a determinadas pessoas.
Nos subtópicos (mencionados no parágrafo anterior), nos é apresentada uma visão geral, tanto no que concerne as ciências penais, quanto no que se relaciona as ciências filosóficas, da metodologia adotada pelos poderes públicos para punir/prevenir (??) a “criminalidade” e “delinquência”, que conta com a anuência absoluta das leis e da doutrina penal. Sendo assim, as discriminações (e as violências) sofridas por aqueles que são submetidos ao processo de penalização, se revestem com a máscara da (i) legalidade!, Para negar, estigmatizar esses seres humanos, colocando-os como coisas perigosas que devem ser mantidas longe dos “amigos” do sistema:
“A rigor, quase todo o Direito Penal do século XX, na medida em que teorizou admitindo que alguns seres humanos são perigosos só por isso devem ser segregados ou eliminados, coisificou-os sem dizê-lo, e com isso deixou de considerá-los pessoas, ocultando esse fato com racionalizações”.[2]
Houve, por assim dizer, uma “transformação regressiva”, da política punitiva nas últimas décadas, com discussões que visavam ampliar a amplitude e extensão do poder punitivo e colocaram o tema do inimigo no destaque das discussões. A soberania desse poder de punir, discriminatório e estigmatizador foi mantida e assegurada através das teorias de dois grandes filósofos, como Thomas Hobbes e Kant Cabe aqui, citar a análise de Patrícia Graziela Gonçalves, que em seu trabalho: os indesejáveis no direito penal moderno (publicado na revista Espaço Acadêmico nº 105 de Fevereiro de 2010), ao analisar o pensamento crítico de Zaffaroni, menciona:
Segundo o autor, o contexto mundial atual torna a reação política obrigatória contra o designado inimigo da sociedade, sobre o qual se pretende o aniquilamento total. Em tempos de discussões sobre os direitos humanos e negociação, o que ocorre, na prática, é a “solução que arrasa com os direitos e, mais cedo ou mais tarde, acaba no genocídio”[3]
Além disso, o autor nos demonstra que a incidência de normas penais em branco e a globalização constituem-se como fatores que inviabilizam a legalidade do sistema, o que acaba tornando os Estados nacionais débeis e incapazes na promoção das reformas estruturais.
“Os Estados Nacionais são débeis e incapazes de prover reformas estruturais; os organismos internacionais tornaram-se raquíticos e desacreditados; a comunicação de massa, de formidável poder técnico, está empenhada numa propagando volkisch (populista) e vingativa sem precedentes” [4]
Noutra ponta, os métodos de intervenção estatal utilizados para promover a contenção deste individuo, (o inimigo), tratado não como pessoa, e sim como coisa, acaba por ocasionar a subtração dos direitos inerentes a personalidade humana. Isso contradiz, de maneira absurda, a real motivação da existência do Estado Constitucional de Direito, quer seja, “a transformação da realidade através da participação pública na defesa dos direitos fundamentais”[5].
Não é a quantidade de direitos fundamentais privados de um indivíduo que lhe anula a condição de pessoa, mas sim “a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente perigoso”[6]. Nesse sentido, adverte Zaffaroni: “no Estado constitucional de Direito não é possível admitir que um ser humano seja tratado como não pessoa”.[7]
Assim, o Estado pode privar o indivíduo penalizado de sua cidadania, “porque por trás da máscara acredita encontrar um inimigo”, mas não poderia jamais, estar autorizado a privar este indivíduo de sua condição de pessoa, de sua condição de “portador de todos os direitos que assistem a um ser humano pelo simples fato de sê-lo”[8].
A partir destas discussões, sobre o posicionamento do Estado, bem como do descrédito das organizações internacionais de proteção de direitos humanos, e, por conseguinte a negação dos “delinquentes” como pessoas, chegamos à essência do inimigo. O conceito tem origem no direito Romano e Carl Schmitt tratou do tema com mais coerência na teoria política.
Logo, é notável que a conceituação de inimigo venha da individualização de um único ser, o estrangeiro, decorrente da incerteza do futuro que mantém em aberto o juízo de periculosidade do alienígena até o momento em que quem decide quem é o inimigo, para que, seja o inimigo privado do estritamente necessário.
O que se objetiva, com essa discussão, é a admissibilidade, em matéria penal, do conceito de inimigo do Estado de Direito, considerando-o aquele que é punido só em razão de sua condição de ente perigoso ou daninho para a sociedade, “sem que seja relevante saber se a privação dos direitos mais elementares a que é submetido seja praticada com qualquer outro nome diferente de pena, e sem prejuízo, tampouco, de que se reconheça um resíduo de direitos mais ou menos amplo” [9]
Se, na realidade o direito penal, sempre aceitou o conceito de inimigo, e logo, este conceito não seria compatível com o modelo de Estado Democrático de Direito, fez-se necessário buscar uma renovação da doutrina penal corretora “dos componentes autoritários que o acompanharam ao longo de sua história”[10]. Seria necessário, mascara-lo, para que ele entrasse num aparente conformidade com os princípios basilares do Estado Democrático de Direito:
“Não obstante, para se livrar do efeito perverso do conceito de inimigo no direito penal, ou pelo menos, para contê-lo, não basta precisar o conceito de inimigo; é necessário também precisar previamente o que se entende por direito penal”.[11]
Já o segundo capítulo da obra do mestre argentino trata dos pressupostos do inimigo na prática do exercício real do poder, colocando em destaque as características do poder punitivo na Revolução Mercantil, por meio do qual a organização do poder é adquirida somente através do exercício do poder planetário sempre precisou de poder interno nas potências, visto que não é possível dominar sem constituir-se previamente de forma dominante.
Zaffaroni faz neste capítulo uma análise histórica sobre a concepção de inimigo, demonstrando que esse conceito é pré- Moderno, remontando a Roma da antiguidade clássica. Ele trata de ressignificações do conceito jurídico dos hostis do direito romano.
Ao abordar simultaneamente o exercício real do poder punitivo e a legislação penal que conferiu caráter legitimo as práticas penais adotadas a partir do século XV, o autor escreve que o Estado, num determinado momento, tomou o lugar de vítima dos delitos e, com isso, neutralizou a verdadeira vítima. Seu primeiro inimigo foi Satã, o Diabo representado pelos hereges, feiticeiros, curandeiros bruxas, e, em nome de Cristo, os eliminaram cruelmente através da vênia dos tribunais inquisitoriais.
No entanto, fora da Europa, o poder colonialista legitimado por esses “discursos” insurgentes, se exerceu sob a forma de verdadeiro genocídio, eliminando a maior parte da população indígena americana, destruindo toda a sua estrutura de organização social e relegando-os á servidão e á escravidão. O mesmo ocorreu na áfrica, que também teve sua cultura pé colonial totalmente destruída pelas mãos do Europeu. Tudo isso com o objetivo de enriquecer os países da Europa com base na extração de toda a riqueza (na América) e de fornecer mão de obra (África) para sustentar essa nova economia e garantir o lucro.
O Poder do dominus exercido sem ética leva ao genocídio, como foi possível visualizar no caso da colonização dos dois continentes supra citados. Não é possível compreender como se opera esse poder punitivo, tal como menciona o mestre argentino,
“como instrumento indispensável para se organizar as estrturas sociais, colonizadoras primeiro e colonizadas depois sem levar em conta a enorme transformação cultural que seu surgimento provocou, associado ao modelo inquisitorial que o acompanhava.” [12]
O poder punitivo ressurge na época inquisitorial. Até aquele período as situações conflitantes eram resolvidas mediante luta como ordália ou a presença direta de Deus na tomada de decisões. “A ordália do dolo era a via pelo qual Deus expressava sua decisão e, por conseguinte, decidia sobre a verdade”.[13]. Entretanto com (re) surgimento do poder punitivo, passou-se a buscar a verdade através da inquisitio. Começa uma tenebrosa fase no direito penal, que infelizmente, dura até os dias atuais, na qual o juiz passa a ser um investigador, portando a virtude porque exerce um poder “soberano”, posto que se considera “vítima”. Aqui, Deus já não decide entre dois iguais como partes, “mas sim está sequestrado pelo senhor, pelo dominus” [14]
Deste ponto, cabe ressaltar que o exercício do poder de vigilância que surgiu desta transformação é o poder do senhor, conhecido como dominus, “que monopolizava o bem, e quem se lhe opunha era sempre o mal”[15]. O dominus era bom, e sua “generosidade” se mostrava em verdadeira campanha para “nos libertar” dos inimigos, de todo o mal que se expressava no Satã, nos hereges na bruxaria!.
Ao sequestrar, ao suprimir a figura de Deus, tal argumentação que foi “laicizada” posteriormente “deixou como bem supremo o próprio saber, de modo que nos saberes (ciências) Satã foi substituído pela ignorância”. Nasceu um saber dominante, senhorial “sádico”, como menciona o autor. Como o objeto de saber passou a ser o ser humano, restou hierarquizá-los, incorrendo e, todas as formas de discriminação e crueldade, por meio da interrogação violenta. Assim, para concluir este subtópico “sequestrar Deus” garantiu a legitimidade do conhecimento inquisitorial do dominus. O uso da violência ficou autorizado, em nome do monstruoso “bem maior”. A tortura passa a ser legitima! Para nos livrar dos males satânicos.
Com o advento da Revolução Industrial, o inimigo passou a ser a ignorância, contudo, permanecendo a lógica da eliminação física, apesar de mais restrita – agora ela era dirigida apenas aos autores de injustos penais graves e aos dissidentes. Dessa maneira, a solução encontrada no tempo da Revolução Industrial, para substituir os métodos punitivos existentes, foi o encarceramento em prisões.
Já no século XX, surge um autoritarismo baseado na construção brutal e irracional do inimigo, legitimada por uma propaganda völkisch (populista) e também teorias raciais de Spencer. O nazismo, por exemplo, combinou tais elementos para justificar o genocídio cometido contra os judeus.
De tal sorte, firmando-se em uma visão histórica da Ciência do Direito, o fator mais importante para a transformação parcial do poder punitivo foi a concentração urbana e, embora a prisão tenha substituído, em muitos casos, a morte, esta última, foi formalmente transformada na coluna vertebral do sistema penal, significando uma verdadeira pena de morte aleatória nas cidades.
Mencionamos os pontos principais do segundo capítulo, agora, cabe explorar ainda mais esta temática e buscar outros autores que analisaram a obra de Zaffaroni, para que possamos fazer ainda algumas observações. Primeiramente, devemos partir do raciocínio de Thayana Calmon Leitão Magalhães[16]:
O Poder Punitivo, usado como instrumento verticalizador das sociedades colonialistas e neocolonialistas, foi utilizado nas sociedades colonizadas para convertê-las em grandes campos de concentração para os nativos, que eram considerados biologicamente inferiores. Os nativos eram tratados como inimputáveis e os mestiços como loucos em potencial, desta forma, justificava-se a exclusão, e os mais rebeldes eram considerados inimigos
Entretanto, com o advento do século XX, teve início a queda das repúblicas oligárquicas, o que fez com que o poder punitivo se transformasse ao sabor das ditaduras de velho estilo e do populismo, “que, em geral foram usados de modo mais prudente, ainda que com frequência sob o signo do paternalismo policial”[17]
As discussões em matéria penal abandonaram o raciocínio do positivismo puro e se matizaram com teorias alemãs importadas sucessivamente como técnicas, com total amputação do seu marco político e social original. A legislação contou com a influência do Codice Rocco e dos projetos suíços de Stooss.[18]
Os populismos foram amplamente protecionistas e, ao mesmo tempo, nacionalistas, justamente porque abriram o protagonismo político a setores que antes eram deixados de lado. Cabe salienta, contudo, que estes populismos “não eram simpáticos às administrações norte-americanas, estas, por meio de golpes de Estado, promoveram retrocessos nos incipientes Estados impulsionados pelos populismos” [19].
Esta atitude gerou sérias resistências no cenário político, as quais com o passar do tempo, acabaram por dar abertura, como assevera Zaffaroni, a movimentos minoritários armados de inspiração marxista. Foi essa a desculpa que os Estados Unidos utilizaram para interferir no cenário político-social destes países, o que provocou, em consequência, novos golpes de Estado que instalaram fortes ditaduras e regimes militares, especialmente ma América Latina, por exemplo.
Nesse mesmo prisma, “os inimigos” destes regimes militares instaurados com o patrocínio dos Estados Unidos, não se restringiram unicamente aos integrantes das minorias armadas armados, mas a toda e qualquer possibilidade de mudança social que ameaçasse por fim ao regime vigente. Grave mesmo foi o que aconteceu na América Latina:
As ditaduras de segurança nacional latino-americanas aplicaram reclusão perpétua, excepcionalmente à pena de morte formal, e ao mesmo tempo medidas de extermínio para os indesejáveis ou execuções policiais sem processo [20].
Entretanto, aos dissidentes dos regimes foram utilizadas duas formas de exercício do poder punitivo, devido a um desdobramento do sistema penal. Assim, segundo Zaffaroni, existia um sistema penal paralelo “que os eliminava através de detenções administrativas ilimitadas”, bem como havia um sistema penal subterrâneo, “que procedia a eliminação direta por morte e ao desaparecimento forçado, sem nenhum processo legal”. Dessa maneira, o poder punitivo acabou exercido de forma ilimitada.
Adiante, os Estados Unidos também pressionaram as ditaduras para que estas declarassem guerra às drogas, claro, tudo com o argumento da “proteção à segurança nacional”. Na Europa, quanto mais se aproximava a queda do muro de Berlim na acabou imprescindível elevar à categoria de inimigo outros, que “justificassem a alucinação de uma guerra e para manter níveis elevados de repressão”[21].
Como consequência, em 1980, toda a região estabeleceu uma legislação penal autoritária de combate às drogas, ao passo que agora, elegemos o traficante como inimigo a ser exterminado, com violação de vários princípios penais e a introdução no âmbito processual de elementos estritamente inquisitoriais. Porém, “a droga não teve o condão de ocupar o lugar deixado pela queda do muro de Berlim e o autoritarismo penal não teve efeito preventivo, assim, a repressão não consegue refrear o uso de drogas”. [22]
O resultado disso foram as prisões lotadas de mulheres que transportavam as drogas e de usuários das mesmas. O que aconteceu com a criminalização, foi sem dúvida, o surgimento de toda uma economia baseada no transporte e venda clandestina de entorpecente. Quem realmente praticava o tráfico de entorpecentes não ficava preso, quer por falta de investigação da polícia, quer por corrupção mesmo. Realidade não muito diferente da do tráfico brasileiro em dias atuais, não?
A revolução tecnológica culminou na globalização. Isso contribuiu sistematicamente para a disseminação a larga escala de um discurso único de características autoritárias, antiliberais, o que, em consequência estimulou (estimula?) o exercício do poder punitivo mais repressivo e discriminatório em escala global. Esse discurso é um fenômeno midiático e publicitário.
Assim, o autoritarismo (que permanece com características inquisitoriais) se impõe como um discurso punitivo único, o que gerou um “novo” autoritarismo na época, diferente da forma como se caracterizavam e se mantinham os autoritarismos anteriores. Na Europa de entreguerras, por exemplo, o autoritarismo tinha como base discursos penais de caráter biologista, como o marxismo na Rússia, o idealismo na Itália e o racismo na Alemanha.
Os discursos autoritários (punitivos), dentro deste contexto, acabavam por se alimentar daquela da ideologia do século XIX, ou seja, tendo como base à periculosidade (positivismo). Destarte, como assevera o autor argentino os inimigos daquele sistema eram considerados “parasitas pelos soviéticos”, “subumanos para os nazistas” e “inimigos do Estado” para os fascistas.
Todos aqueles que eram relegados à condição de inimigo acabavam submetidos a um sistema penal paralelo, que era composto por “tribunais especiais inquisitoriais”. Assim, segundo Thayana Calmon Leitão Magalhães: “Esse autoritarismo exerce o seu poder de forma ilimitada, cruel, genocida, criando sistemas penais subterrâneos, sem nenhum respaldo legal”[23].
Assim, era apresentado somente o sistema penal formal e apenas uma parte do sistema penal paralelo. Já o sistema penal subterrâneo ficava na surdina. Os criminosos que cometiam delitos graves eram assassinados, já os dissidentes eram mortos ou exilados. E quanto aos indesejáveis? Estes eram aprisionados por tempo indeterminado, mas no fim, os nazistas também decidiram por sua eliminação.
Portanto, as leis autoritárias eram, de fato, direcionadas aos autocratas para agradá-los, ao “público como forma de propaganda”, e de maneira secundária, as leis também se dirigiam a burocratizar a supressão de inimigos, que eram os estranhos ou hostis. As leis se dirigiam ao público com o objetivo de propaganda, não por serem democráticas. Estas leis correspondem à técnica völkisch, “que corresponde em alimentar e reforçar os piores preconceitos para estimular publicamente a identificação do inimigo escolhido, é uma propaganda popularesca”.[24]
A principal justificativa da existência de um poder punitivo ilimitado é o discurso da alucinação de uma guerra e toda a identificação de inimigo baseia-se em um mito. De tal sorte, o autoritarismo do período entre-guerras efetuou esse processo baseado em uma construção, como menciona Zaffaroni, por vezes brutal e irracional, que encontra legitimação através da utilização da propaganda völkisch. Esse autoritarismo do entre guerras diz respeito ao antigo autoritarismo, que se manifesta, se impõe e atua de maneira diferente do novo autoritarismo (do discurso único), que é chamado no livro de autoritarismo cool, tal como menciona Thayana Calmon Leitão Magalhães:
Desde 1980, nos EUA, a criação do inimigo tem sido uma preocupação entre os políticos. Ideias bastante difusas, mas igualmente confusas como "crime organizado" ou "corrupção" foram utilizadas como norte para a criação de inimigos, na busca de preencher o vazio que a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), deixou. [25]
Cabe salientar que, o tráfico de entorpecentes, nos EUA, ao contrário do que ocorre em terras brasileiras, não foi suficiente para a criação do inimigo. Foi o terrorismo, que ao ressurgir após os atentados em Nova Iorque em 2001, permitiu a criação de um estado de atenção permanente desde os atentados, embora isso possa dificilmente, ser aplicado aos inimigos internos, aos indesejáveis e aos dissidentes, que acabaram por não se encaixar no perfil (estereótipo) criado para a figura do terrorista.
Já em terras europeias, temos os imigrantes, como candidatos preferenciais a se tornarem verdadeiros inimigos, uma vez que, estes sim, se encaixam perfeitamente no estereótipo. “O estrangeiro imigrante sempre foi um forte candidato a ser declarado inimigo, desde Roma até os dias atuais”[26]
Todavia, na América Latina, a característica mais marcante do poder punitivo é o que este (aprisionamento) se dá muitas vezes por intermédio das medidas preventivas (ou medidas de contenção); segundo Zaffaroni:
três quartos dos presos ainda não foram condenados, estão presos por medidas cautelares, segundo a presunção de sua periculosidade. O indivíduo encontra-se preso por ser suspeito de um fato consumado [27].
O crime de fato ocorreu, mas quem está preso não é o condenado pela prática delitiva, mas sim o acusado ou suspeito de sua prática. “Podemos adicionar a isso o fato de que os corpos policiais são bastante problemáticos, lidando com graves problemas de corrupção, com o fato de não poderem se sindicalizar e de que, em muitos lugares, como no Brasil, estão militarizados”[28]. Desta forma, na América Latina todos os suspeitos são considerados inimigos no exercício real do poder punitivo. Esta aí a manifestação da periculosidade presumida.
É interessante mencionar que na maioria das vezes não há a configuração de um direito penal subterrâneo, ao passo de que as execuções não são sistemáticas (aprisionamento gere penas perpétuas), embora a frequência dessas ações tragam inquietação em relação ao possível reaparecimento da lógica da segurança nacional. Os dissidentes são mais tolerados, ainda “que a repressão ao protesto social dos excluídos do sistema produtivo tenha aumentado, mediante a aplicação extensiva de tipos penais e a interpretação restringida de causas de justificação ou de exculpação”.
Dessa maneira, o discurso cool, na América latina participa do “simplismo de sua matriz norte-americana”, carecendo da mesma forma, de respaldo cientifico, e sim, se orgulha disso, porque essa publicidade popular denigre os discursos jurídicos e criminológicos obrigando os operadores do direito a assumirem a mesma função. Logo, o exercício do poder punitivo “tornou-se tão irracional que não tolera sequer um discurso acadêmico rasteiro, ou seja, ele não tem discurso, pois se reduz a uma mera publicidade”[29]
Finalmente, voltando-nos ao terceiro capítulo, constatamos que ele tem por objetivo estimular uma reflexão crítica acerca da natureza dos discursos jurídicos penais e criminológicos sobre o inimigo. Esses discursos tiveram como precursor o filósofo Protágoras, que sustentava a tese de que os incorrigíveis deveriam ser excluídos da sociedade.
Pois bem, o inimigo é uma construção tendencialmente estrutural dos discursos legitimadores do poder punitivo. Destaca Zaffaroni que a primeira expressão inquisitorial do poder punitivo foi exercida para que pudesse ser garantida a chamada debilidade centralizada da autoridade penal, recaindo inicialmente sobre seitas e dissidentes, mediante a utilização de métodos de tortura, reproduzida “de maneira infinita”, num teatro que apresentava as figuras do defensor, do acusador e do juiz, oberve-se:
“o processo penal concentrava nos inquisidores as figuras do defensor, do acusador e do juiz. O defensor será autorizado a atuar em limites muitos estreitos, sendo seriamente ameaçado casos se excedesse em sua função”[30]
É evidente que na metodologia de aplicação da pena acaba violado o princípio da isonomia, da presunção de inocência, bem como a maioria das garantias fundamentais, consagradas pela Constituição de 1988. Zaffaroni ainda menciona que para cada dez crimes, há apenas uma condenação e normalmente os condenados são ardilosos. Aqueles que têm ou dinheiro não são condenados. Está aí a seletividade do Direito Penal:
“A doutrina pré-moderna não só admitiu a seletividade do poder punitivo como tratou de legitimá-la, aceitando-se implicitamente que para os amigos rege a impunidade e para os inimigos o castigo”.[31]
Pois é justamente a seletividade do sistema que o desmascara, que baixa as cortinas, revelando o real fim da punição. Ou melhor, revelando quem (e porque) decide punir e para quem é feito o direito penal. O que vemos todos os dias não é nada mais do que a reiteração de práticas abusivas cometidas ao longo da História, por uma minoria revestida de poder punitivo, que utiliza (sempre utilizou) o Direito Penal para fins genocidas.
O objetivo da punição nunca foi a ressocialização, posto que esta é a maior falácia desse sistema falido, mas sim a docilização do outro, a dominação pelo seu encobrimento. Negamos o inimigo porque ele é diferente de nós, estranho a nós, e por esse motivo ele deve ser afastado da nossa sociedade. Assim o é o delinquente. Não o queremos no seio social. Logo o enviamos para as prisões, para que de lá ele não saia, porque se sair, não estamos dispostos a recebê-lo entre nós.
Essa é a triste realidade. Mas existem soluções. Talvez a mais efetiva delas, num primeiro momento, seja justamente conferir eficácia plena aos direitos e garantias constitucionais, para que assim os apenados possam ter o mínimo de igualdade de condições, e principalmente, o mínimo de dignidade no cumprimento da pena à qual fora submetido. Os desafios são muitos, as perspectivas não são as mais otimistas, mas um esforço conjunto da sociedade pode “humanizar” o direito penal.
Referências Bibliográficas:
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico).
GONÇALVES, Patrícia Graziela, os indesejáveis no direito penal moderno, Revista Espaço Acadêmico nº 105 de Fevereiro de 2010, disponível para acesso em: <periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/.../5254
MAGALHÃES, Thayana Calmon Leitão. Inimigo e Direito Penal. Disponível para acesso em: <http://jus.com.br/artigos/17032/inimigo-e-direito-penal/2>