A resolução n. 13, de 02.10.2006 (que disciplina a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal no âmbito do Ministério Público), do Conselho Nacional do Ministério Público, em seu art. 15, dispõe que:
“Se o membro do Ministério Público responsável pelo procedimento investigatório criminal se convencer da inexistência de fundamento para a propositura de ação penal pública, promoverá o arquivamento dos autos ou das peças de informação, fazendo-o fundamentadamente.
A promoção de arquivamento será apresentada ao juízo competente, nos moldes do art. 28 do CPP ou ao órgão superior interno responsável por sua apreciação, nos termos da legislação vigente"1.
Ao fazer refência a "órgão superior interno" para controlar e fiscalizar o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, o CNMP inovou na ordem jurídica? A resposta é não. Vejamos.
O art. 28 do CPP diz que o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, deve submeter à apreciação do judiciário. É importante verificar que a norma processual faz menção especificamente a "inquérito policial" e "peças de informação". Enquanto a Resolução do CNMP faz menção aos autos de "procedimento investigatório criminal" presidido pelo MP e "peças de informação".
A submissão do arquivamento do inquérito ou das peças de informação à apreciação judicial representa a consagração de um mecanismo de controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Há, em verdade, um sistema de controle da denúncia (art. 43 do CP) e da não denúncia (art. 28 do CPP) que confere ao magistrado a salvaguarda de direitos e garantias fundamentais no transcurso da primeira fase da persecução penal. É o sistema de freios e contrapesos do Estado de Direito ("checks and balances").
Há na doutrina uma forte crítica a esse anômalo sistema de controle do Ministério Público pelo Judiciário, montado pelo art. 28 do CPP. O juiz ao considerar que o caso é de denúncia e não de arquivamento está emitindo um juízo prévio de valor que é incompatível com a função jurisdicional que se pauta pela imparcialidade. Mesmo com esse pré-julgamento, o juiz, posteriormente, não se arrola como suspeito, o que seria de rigor. Dado isso, seria mais coerente, do ponto de vista jurídico, que a fiscalização ou o controle fosse realizado por um órgão colegiado do próprio Ministério Público (sistema claramente adotado no inquérito civil público).
Veja-se que no caso de atribuição originária do Procurador-Geral de Justiça, a fiscalização do arquivamento de inquérito policial ou de peças de informações cabe ao Colégio de Procuradores de Justiça (art. 12, XI, da LONMP), mediante o requerimento (ou recurso, melhor dito) do legítimo interessado, que pode ser a vítima ou não tendo vítima, a própria sociedade, através do delegado de polícia que presidiu o inquérito.
É óbvio que o art. 28 do CPP não abrange em seu raio normativo os "procedimentos investigatórios criminais" (PIC's) instaurados e presididos por membros do MP porque, obviamente, esses procedimentos não se confundem com "inquérito policial" nem muito menos com "peças de informação". Tanto que no art. 2o., inc. II, da resolução 13/2006 vem dito que "em poder de quaisquer peças de informação, o membro do Ministério Público poderá (dentre outras coisas): II- instaurar procedimento investigatório criminal". Exige grande sutileza (para não dizer o contrário) identificar "peças de informação" com "procedimento investigatório criminal" ou "inquérito policial".
O PIC (Procedimento de investigação criminal) é instrumento de natureza administrativa e inquisitorial, instaurado e presidido por membro do Ministério Público, e tem como finalidade apurar a ocorrência de infrações penais, servindo de embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal. A diferença nítida com o inquérito policial é que este é instaurado e presidido por uma autoridade policial (compartilhando a natureza administrativa e inquisitorial, bem como os objetivos).
Seja como for, esses PIC's não podem se furtar ao controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Neste sentido, a solução é dada pela Resolução n. 13/2006 que manda submeter a decisão de arquivamento ao "órgão superior interno responsável por sua apreciação". Órgão interno do próprio Ministério Público que, sempre, é quem dá a última decisão sobre oferecimento ou não de denúncia, sem possibilidade de reforma por qualquer outro órgão do Estado, sendo irretratável e intangível.
Esse sistema é o mesmo adotado para o inquérito civil. Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas as diligências, se convencer da inexistência de fundamento para a propositura da ação civil, promoverá o arquivamento dos autos do inquérito civil ou das peças informativas, fazendo-o fundamentadamente. Os autos ou peças de informação arquivadas serão remetidos ao Conselho Superior do Ministério Público, que examina e delibera, conforme dispuser o seu Regimento (Lei n. 7.347/1985, art. 9o e §§). No mesmo sentido, o art. 30 da LONMP:
"Cabe ao Conselho Superior do Ministério Público rever o arquivamento de inquérito civil, na forma da lei".
A questão é de simples interpretação: se o arquivamento se referir a peças de informação, a submissão judicial é de rigor (atendendo o comando do art. 28, CPP), se for de procedimento de investigação criminal (PIC), a decisão de arquivamento deve ser submetida ao Conselho Superior do Ministério Público que homologa ou não a decisão.
É importante observar que a norma processual penal (art. 28) fala em “quaisquer peças de informação”, ou seja, inclusive as que tramitam ou tramitaram no Ministério Público. Diante disso, o arquivamento e a homologação internas só podem se dá em relação, especificamente, aos PIC's.
Quando a Resolução n. 13/2006 do CNMP diz que a “promoção de arquivamento será apresentada ao juízo competente, nos moldes do art. 28 do CPP ou ao órgão superior interno responsável por sua apreciação, nos termos da legislação vigente", em boa leitura ela quer dizer o seguinte: a decisão de arquivamento de peças de informação será submetida ao juiz (em respeito ao art. 28 do CPP e sua ampla locução “quaisquer peças de informação”) e a decisão de arquivamento dos autos de procedimento de investigação criminal será submetida a órgão superior interno da própria instituição, colmatando omissão da lei processual penal e mantendo-se fiel, por analogia, ao sistema existente para o arquivamento do inquérito civil2. A Resolução foi extremamente sábia ao dispor dessa maneira, pois do contrário, o arquivamento de PIC's fugiria ao controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal, violando princípios jurídicos consagrados pela tradição do Direito brasileiro.
De outro lado, por pura falta de previsão legal (CPP, art. 28), o juiz não está obrigado a apreciar decisão de arquivamento lançada no bojo de procedimento de investigação criminal conduzido no âmbito do Ministério Público. Essa atribuição, do ponto de vista legal, não compete ao Judiciário.
Esse entendimento foi unanimemente acolhido em decisão recente do plenário do TRF da 5ª Região:
“PROCESSO PENAL. PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO CRIMINAL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PEDIDO DE ARQUIVAMENTO. ART. 28. INAPLICAÇÃO PRERROGATIVA-DEVER DO MP (LEI COMPLEMENTAR Nº. 75/1993, ART. 62, IV). CONTROLE. ATRIBUIÇÃO DA CÂMARA DE COORDENAÇÃO E REVISÃO. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
1. A representação criminal, encaminhada ao juiz contendo pedido de arquivamento de procedimento investigatório criminal, com o qual o membro do Ministério Público, apurou a possível prática de conduta delituosa, é reminiscência do sistema inquisitivo, vigente em nosso ordenamento processual até a instauração da nova ordem constitucional, ocorrida com a promulgação da Lei Maior de 1988, que consagrou o sistema acusatório.
2. Em se tratando de Procedimento Investigatório Criminal - PIC, ou outro tipo de investigação, levado a efeito no ambiente interno do Ministério Público Federal, não incide a norma plasmada no art. 28 do Código de Processo Penal, até porque, para essa hipótese, há regramento específico, estampado art. 62, IV da LC nº. 75, de 1993, e no art. 14, parágrafo 3º, da Resolução nº. 77, de 2004, do Conselho Superior do Ministério Público Federal-CSMPF, razão pela qual, se houver convencimento de que, a despeito de esgotadas todas as diligências pertinentes, inexiste fundamento para a propositura da ação penal, o Procurador da República responsável detém a prerrogativa-dever institucional de determinar o arquivamento, não necessitando, para tanto, submeter a questão ao crivo do judiciário, devendo, todavia, em consequência, remeter os autos, no prazo de 5 (cinco) dias, à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do órgão ministerial, a quem compete exercer o controle a respeito da matéria.
3. Agravo Interno não provido” (TRF da 5ª Região, Pleno, PIMP 79/01, DJE 02/05/2012, Pleno, decisão unânime, Walter Nunes da Silva Júnior Federal).
Fato é que, atento ao comando do art 28 do Código de Processo Penal combinado com o art. 15 da Resolução CNMP 13/2006, resulta que a própria instituição do Ministério Público, através de seu órgão superior colegiado (Conselho Superior, por simetria à Lei da Ação Civil Pública, e também para evitar a supressão de um órgão recursal – no caso o Colégio de Procuradores), detém atribuições para deliberar e homologar decisão de arquivamento de procedimento de investigação criminal instaurado e presidido por membro do MP. As peças de informação, da mesma forma que os inquéritos policiais, submetem-se ao crivo do Judiciário, por expressa determinação do art. 28 do Código de Processo Penal.
É óbvio que o Conselho Superior do Ministério Público dos Estados tem atribuições importantíssimas que exigem atenção qualificada como, por exemplo, controle financeiro, gestão disciplinar e progressão funcional (promoções e remoções). O controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal pela apreciação da decisão de arquivamento de PIC pode muito bem ser atribuído a um órgão de revisão, nos moldes da Câmara de Revisão e Coordenação existente na estrutura do Ministério Público Federal.
Esse órgão de revisão na estrutura do Ministério Público estadual poderia ser composto por cinco membros, sendo dois procuradores de justiça e três promotores de justiça de última entrância. Não impedimento nenhum para essa inovação orgânica.
1 A mesma sistemática é adotada pelo Ministério Público Federal, através da Resolução n. 77/CSMPF, de 14.09.2004, art. 14, §2: "Os autos do procedimento investigatório criminal ou das peças informativas arquivadas serão remetidos, no prazo de 05 (cinco) dias, à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal"; Ministério Público Militar: art. 14, da Resolução nº 51/CSMPM, de 29.11.2006.
2Essa também a opinião de Sarabando, 1997, p. 59.