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Viver ou sobreviver:

a transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová

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15/03/2016 às 09:22
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É possível perceber um conflito entre alguns direitos fundamentais no que diz respeito à transfusão de sangue em testemunhas de Jeová. O que é priorizado em nosso ordenamento jurídico? A fé ou a ciência?

Resumo: As relações sociais encontram-se em constante transformação. Dessa sorte, visando estabelecer maior segurança aos seus cidadãos, o Estado, a lei, a doutrina e a jurisprudência tentam acompanhar a evolução deste cotidiano deveras mutante, seja no âmbito social, cultural ou jurídico. Como é cediço, as Testemunhas de Jeová repudiam a transfusão de sangue e, portanto, não permitem que se proceda com qualquer tipo de procedimento afim. Acreditam que quem aceita esse procedimento é considerado um pecador e poderá perder a vida eterna. O Brasil proclama em seu bojo jurídico os direitos à vida e à liberdade de crença religiosa. Diante deste cenário, passou a haver uma dicotomia entre esses direitos no seio social quando da realização ou não da transfusão de sangue em testemunhas de jeová.

Palavras-Chave:Testemunhas de Jeová. Liberdade de Crença Religiosa. Transfusão de sangue. Direito à Vida. STJ.

Sumário: Introdução. 1. A dicotomia entre o direito à vida e a liberdade de crença religiosa. 2. O tratamento médico diante da situação. 2.1 Resoluções e Pareceres dos Conselhos de Medicina. 3. Incapacidade do Menor e a Capacidade para consentir.  4. O STJ e a transfusão de sangue em testemunhas de Jeová. Conclusão. Referências Bibliográficas.


Introdução

Atualmente, se vive em uma sociedade bastante pluralista. É quase uma missão do dia-a-dia aprender a conviver com tantas diferenças sejam elas políticas, sociais, culturais ou aquelas advindas de crenças religiosas. É nesse contexto que se deve ter o respeito a tanta diversidade, seja o segmento que for.

Podemos perceber que o referido debate permeia o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, que pode ser entendido como o fruto da releitura de determinados preceitos civilistas em conjunto com a reconceituação de seus institutos. Muito embora o Código Civil de 1916 tenha sido marcado por um forte Liberalismo, pelo Individualismo e Patrimonialismo, o Código Civil de 2002 surgiu com uma nova roupagem para desmistificar essas marcantes características através do Dirigismo Estatal, da Socialização e Funcionalização dos institutos civis.

A partir da dignidade da pessoa humana, ponto inicial para essa reformulação do Direito Civil, tornou-se possível colocar o ser humano como fundamento principal (ou seja, o fim em si mesmo) através da humanização (repersonalização) de seus institutos.

Como é cediço, o nosso ordenamento jurídico pátrio estabelece vários direitos inerentes à pessoa humana. Dentre eles, encontram-se os direitos à vida e o da liberdade de crença religiosa. Neste diapasão, com fundamento no direito de crença religiosa, as testemunhas de Jeová manifestam sua recusa à transfusão de sangue.

Sendo assim, de modo a aclarar os pontos relevantes acerca desse tema, o presente artigo versará não somente acerca da dicotomia de dois grandes direitos previstos na Constituição Federal, mas, também tratará da atuação dos médicos quando estiverem diante desta situação controversa em virtude da necessidade de transfusão de sangue em testemunhas de Jeová e, como desfecho, acerca do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.

Logo, diante da presente celeuma, torna-se pertinente analisar essa questão sob o ponto de vista jurídico para saber o que deve ser feito em casos como esse. O que se faz? Como proceder? Qual o caminho deve ser seguido?

Dessa sorte, considerações sobre essa temática serão tratadas neste artigo, através da pesquisa explicativa e bibliográfica, isso porque serão realizadas considerações dando ênfase à teoria juntamente com o desenvolvimento de causas e consequências a respeito da temática aqui trabalhada, ressaltando sua importância nos dias hodiernos, tendo em vista que o tema, aparentemente, aparece como uma grande emblema: de um lado, encontram-se as testemunhas de Jeová, amparados pelo direito de liberdade de crença religiosa e, consequentemente, ao respeito à sua dignidade como pessoa humana e, do outro lado, aqueles que defendem o direito à vida, que por se tratar de um super direito da personalidade, é atingido pela irrenunciabilidade e indisponibilidade. Percebe-se, claramente, um embate entre a fé e a ciência.


2. Quem são as Testemunhas de Jeová e a dicotomia entre o direito à vida e a liberdade de crença religiosa

As testemunhas de Jeová fazem parte de uma religião cristã mas, diferentemente da maioria dos cristãos, não acreditam no Deus Trino (Pai, Filho e Espírito Santo). Congregam mais de 8 milhões de adeptos pelos diversos países do mundo. Baseados no princípio de que o sangue é vida e de que o único que pode nos conceder ou nos tirar a vida é Deus, recusam a transfusão de sangue alegando que se, por ventura, passarem por tal procedimento, não serão dignos de usufruir da vida eterna.

O ordenamento jurídico pátrio, com base em sua Carta Maior, proclama dois grandes direitos: o direito à vida e o direito à liberdade de crença religiosa. Por ser a Constituição Federal a maior de todas as normas e por guardar consigo uma supremacia, (haja vista encontrar-se no topo do ordenamento jurídico), sua vontade deve ser guardada. Mas, como se resolver tal situação fática que envolve o embate entre dois direitos respaldados em seu bojo?

Oportunamente, transcrever-se-á o que dispõe o art. 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), que prevê os direitos, ora em comento. Se não, vejamos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida (grifo nosso), à liberdade, à igualdade, (...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;(...)

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa (grifo nosso) ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; [2]               

As testemunhas de Jeová assim se definem com base no que prevê o Livro de Isaías 43:10: “Vós sois as minhas testemunhas", é a pronunciação de Jeová, "sim, meu servo a quem escolhi, para que saibais e tenhais fé em mim, e para que entendais que eu sou o mesmo. Antes de mim não foi formado nenhum Deus e depois de mim continuou a não haver nenhum”. [3]

Ora, como se sabe, as testemunhas de Jeová integram uma religião que não permite a transfusão de sangue (pois o consideram precioso). No entanto, este posicionamento não significa recusar o melhor tratamento médico mas, tão somente, que o mesmo não seja realizado com sangue. Há esse entendimento com base no que dispõe o seu livro sagrado que, em algumas passagens, traz consigo a ideia da vedação ao uso de sangue. Vejamos, pois, algumas dessas passagens[4]:

Gênesis, 9: 3-4

3 Tudo o que se move e vive ser-vos-á para alimento; como vos dei a erva verde, tudo vos dou agora.

4 Carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis.

Levítico, 17:10

10 Qualquer homem da casa de Israel ou dos estrangeiros que peregrinam entre vós que comer algum sangue, contra ele me voltarei e o eliminarei do seu povo.

Atos, 15: 19-21

19 Pelo que, julgo eu, não devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus,

20 mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue.

21 Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados.           

Neste momento, se traz à baila o constrangimento que a testemunha de Jeová se submeterá no caso de ser obrigada a ser transfundida. Além do abalo psicológico, há de se levar em consideração a rejeição pela família e de sua própria igreja. Como fica a situação dessa pessoa que terá modificado o restante de sua vida contra sua própria vontade? Pensamos que ela deixa de viver para, tão somente, sobreviver. Ela se sentirá pecadora e não merecedora de gozar da vida eterna, conforme prometido por sua Bíblia.

O Professor Luiz Roberto Barroso assevera acerca do assunto da seguinte forma:

As testemunhas de Jeová professam a crença religiosa de que introduzir sangue no corpo pela boca ou pelas veias viola as leis de Deus, por contrariar o que se encontra previsto em inúmeras passagens bíblicas [Gênesis, 9:3-4, Atos 15:28-29]. Daí a interdição à transfusão de sangue humano, que não pode ser excepcionada nem mesmo em casos emergenciais, nos quais exista risco de morte. Por essa razão, as testemunhas de Jeová somente aceitam submeter-se a tratamentos e alternativas médicas compatíveis com a interpretação que fazem das passagens bíblicas relevantes. Tal visão tem merecido crítica severa de adeptos de outras confissões e de autores que têm se dedicado ao tema, sendo frequentemente taxada de ignorância ou obscurantismo. Por contrariar de forma intensa o senso comum e por suas consequências potencialmente fatais, há quem sustente que a imposição de tratamento seria um modo de fazer o bem a esses indivíduos, ainda que contra a sua vontade. Não se está de acordo com essa linha de entendimento. A crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República brasileira (CF, art. 1º, IV). (Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. In: Direitos do paciente. Coordenação Álvaro Villaça Azevedo e Wilson Ricardo Ligiera. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 368-369).

Trata-se, aqui, de uma situação bastante complexa. Como priorizar um direito em detrimento de outro? Ademais, muito embora o Estado seja laico, conforme preconizado no art. 19, I, da CRFB, o paciente tem direito a ter uma religião, seja ela qual for.

O Ordenamento Pátrio vem se utilizando daquilo que chamam de “Concordância Prática”. Segundo esse mandamento, tentar-se-ia conciliar ambos os direitos, de modo que o respeito de um não impenda no desrespeito de outro. Ou seja, defende a coexistência de ambos. No HC 89544, do Supremo Tribunal Federal, se consignou que :

“Observou-se que ambas as garantias, as quais constituem cláusulas elementares do princípio constitucional do devido processo, devem ser interpretadas sob a luz do critério da chamada concordância prática, que consiste numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas, ao mesmo tempo, não acarrete a negação de nenhum.”[5]

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Todavia, como aplicar a concordância prática na situação de transfusão de sangue em pacientes testemunhas de Jeová, já que dada situação configura  um caso extremo? A título de exemplo, caso uma testemunha de Jeová venha a necessitar de uma cirurgia em caráter de urgência, como se aplicaria uma ponderação se o respeito de um direito implicaria, necessariamente, na renúncia de outro direito? Respeitando a autonomia do paciente e caso ele venha a óbito, se concretizará o desrespeito ao direito à vida. Já se respeitar o direito à vida realizando a transfusão, consequentemente, estará desrespeitando o direito à liberdade de religião.

Segundo o Professor Luiz Flávio Gomes[6], quando o paciente se tratar de uma criança, como foi o caso tratado pela 9ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, se a mesma não vem a falecer, prepondera a crença religiosa e, sendo assim, ninguém é punido pois, afinal, não houve uma lesão final efetiva à vida. No entanto, se a criança vem a falecer, está em jogo o bem jurídico “vida” e, assim sendo, ela vale mais que a crença religiosa.

Nessa segunda hipótese, todos que concorreram para o evento morte, respondem perante a justiça. Normalmente, essa responsabilidade ocorrerá pela caracterização da culpa, uma vez que ninguém deseja a morte da criança. Mas, a depender do caso concreto, pode se vislumbrar o dolo eventual, pois a morte era iminente e a situação fora esclarecida aos pais que, mesmo assim, recusaram a transfusão.

 Já quanto ao médico, segundo este professor, “dependerá do seu comportamento: se ele não concordava com o impedimento, se atuou para salvar a vida, por nada responde. Se o médico concorda com o impedimento da transfusão, responde pelo delito (a título de culpa ou de dolo, conforme a situação).”[7]

Uma coisa pode se afirmar com convicção: Os Tribunais Superiores deverão ponderar quando do momento de sua decisão. Deverão utilizar, tanto quanto possível, do princípio da proporcionalidade, pois, se tratando de normas que são também princípios, nenhum deveria ser sacrificado. Afinal, não se está diante de uma situação conflituosa que versa sobre patrimônio ou coisa, mas, sim, da vida de um ser humano e, como tal, deve ser tratado com a devida importância.


2.Tratamento médico diante da transfusão de sangue em testemunha de Jeová

A ausência de um precedente judicial que norteie a atuação médica, nessa situação, causa bastante insegurança não somente aos médicos, mas, também, aos próprios pacientes que são testemunhas de Jeová.

Essa situação é bastante complexa. Se o médico realiza o procedimento sem autorização do paciente que segue à risca sua crença, poderá responder perante a justiça uma vez que, em tese, estaria desrespeitando a liberdade de crença e dignidade do paciente religioso, obrigando-o a renunciar sua fé.

Por outro viés, se deixar de realizar o procedimento, respeitando a vontade do paciente testemunha de Jeová, deixará de exercer o seu dever legal de médico (que tem como principal missão salvar vidas), podendo responder perante o Conselho de Medicina, como também na esfera penal.

Ora, então como deveria atuar o médico diante desse problema? Vejamos, pois, o entendimento dos Conselhos de Medicina.

2.1 Resoluções e Pareceres dos Conselhos de Medicina

É bem verdade que os médicos tendem a cumprir com o seu dever legal e profissional de salvar vidas. Na situação discutida, conforme já dito anteriormente, o médico ficaria sujeito a algumas penalidades caso não realizasse a transfusão de sangue naqueles que, em virtude da crença religiosa, se recusassem a tal procedimento.

Neste diapasão, vejamos, pois, o que prevê o Código Penal[8], em seu art. 13, §2º, alínea “a”, o qual fundamenta o dever legal daqueles que deveriam agir para evitar o resultado danoso. Segue:

Art.13 O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (...)

§2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) Tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância. (grifo nosso)

Sendo assim, o médico poderia ser punido penalmente por descumprir o seu dever legal de agir e de ter atuado de forma omissiva. Fica clarividente que a situação se demonstra bastante sensível. Finalizando a análise do dispositivo do código penal, segue-se adiante com a análise da Resolução nº 1.021/80[9], do Conselho Federal de Medicina. Vejamos:

PARECER PROC. CFM nº 21/80

O problema criado para o médico pela recusa dos adeptos da Testemunha de Jeová em permitir a transfusão sanguínea, deverá ser encarada sob duas circunstâncias:

1 - A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais rápida e segura para a melhora ou cura do paciente.Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada. Nessas condições, deveria o médico atender o pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue.Não poderá o médico proceder de modo contrário, pois tal lhe é vedado pelo disposto no artigo 32, letra "f" do Código de Ética Médica:

"Não é permitido ao médico: f) exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito de o paciente resolver sobre sua pessoa e seu bem-estar".

2 - O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo. Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la. O médico deverá sempre orientar sua conduta profissional pelas determinações de seu Código.

Esmiuçando o texto da Resolução supracitada, percebe-se que a orientação que está sendo seguida pelos médicos é a seguinte: caso o paciente não esteja em risco de morte e haja um tratamento alternativo à transfusão de sangue que não cause qualquer prejuízo à sua vida, a liberdade de crença religiosa será respeitada. E isso não se trata, apenas, de um poder, mas, sim, de um poder-dever, uma vez que o Código de Ética, conforme visto, prevê em seu art. 32, letra “f”, que o médico não pode desrespeitar a vontade do paciente, caso este venha a resolver qualquer coisa sobre  sua pessoa ou seu bem-estar.

Por outro prisma, se o caso versar sobre um paciente que se encontra com risco de morte e não há qualquer outro tipo de procedimento substitutivo da transfusão de sangue, deverá o médico atuar de modo a salvar a vida deste paciente, ainda que contra a sua vontade ou da família.

Ressalta-se que a atitude do médico em realizar a transfusão, não caracteriza  constrangimento ilegal, previsto no art.146 do código penal. Segundo a Resolução 1.021/80, é notória a existência do Princípio da Legalidade no bojo constitucional de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer, senão em virtude de lei”. Somente a princípio, o ato médico que viesse a realizar a transfusão de sangue, recairia na norma penal prevista no art. 146 do Código Penal,[10] que prevê o crime de constrangimento. Vejamos:

Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.

No entanto, esse entendimento não deve prosperar, já que o mesmo artigo prevê uma ressalva. Vejamos:

§3º Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. (grifo nosso)

De modo a corroborar com os fundamentos aqui expostos, vejamos a seguir o teor do art.3º, da Resolução do CREMERJ nº 136/1999.[11] Vejamos:

Art. 3º O médico, verificando a existência de risco de vida para o paciente, em qualquer circunstância, deverá fazer uso de todos os meios ao seu alcance para garantir a saúde do mesmo, inclusive efetuando a transfusão de sangue e/ou seus derivados, comunicando, se necessário, à Autoridade Policial competente sobre sua decisão, caso os recursos utilizados sejam contrários ao desejo do paciente ou de seus familiares. (grifo nosso)

Percebe-se, claramente, que a Resolução supracitada, além de compartilhar do mesmo entendimento que a Resolução nº 1.021/80, ainda prevê a possibilidade de o médico comunicar à autoridade policial a depender das circunstâncias. De certo modo, serve como garantia ao médico demonstrando que ele não está realizando a transfusão de sangue pela vontade de desrespeitar a autonomia do paciente mas, tão somente, em cumprir o que prevê o Código de Ética Médica e, consequentemente, o seu dever de salvar vidas.

Ademais, segundo ainda essa Resolução, é facultado ao médico renunciar o acompanhamento clínico do paciente, quando a situação for divergente dos ditames que norteiam a sua consciência. Vejamos:

O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, (grifo nosso) excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.[12]

 Salienta-se, oportunamente, que essa faculdade encontra respaldo em um dos princípios fundamentais previstos no Código de Ética Médica[13], no art. 36, §1º.

§ 1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal (grifo nosso), assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder.

Conforme dito alhures, esse é o fundamento majoritário - o que não significa ser o melhor ou pior entendimento. Por justiça, se faz necessário registrar um entendimento divergente do supracitado.

O entendimento contrário àquele gira em torno da ideia de que ainda que esteja diante do risco de morte, há de se preservar a liberdade de crença religiosa, a autonomia e a dignidade de morrer da forma que se entende por certa. Esse seria um direito do paciente, como pessoa humana que é. Talvez esse seja o principal argumento das testemunhas de Jeová ao recusarem a transfusão de sangue. Se não, vejamos abaixo:

“ninguém pode ser constrangido a consultar um médico ou a submeter-se à tratamento terapêutico contra a vontade livre e conscientemente manifestada”. “[...] Como não há lei obrigando o médico a fazer transfusão de sangue no paciente, todos aqueles que sejam adeptos da religião “Testemunhas de Jeová”, e que se encontrarem nesta situação, certamente poderão recusar-se a receber referido tratamento, não podendo por vontade médica, ser constrangidos a sofrerem determinada intervenção. O seu consentimento, nesta hipótese é fundamental. Seria mesmo desarrazoado ter um mandamento legal obrigando a certo tratamento, até porque podem existir ou surgir meios alternativos para chegar a resultados idênticos”.[14]

Nessa mesma esteira, registra-se o posicionamento de Sousa e Morais[15], quando da defesa da autonomia da vontade do paciente na qual encontra escopo a liberdade religiosa. Vejamos:

“Vê-se, então, que a autonomia do paciente deve ser respeitada pelo médico, uma vez que o mesmo tem o direito de escolher, de forma consciente e esclarecida, acerca do que é melhor para sua saúde. Essas escolhas sofrem, evidentemente, influências de fatores sociais, culturais e religiosos, não cabendo ao médico fazer juízo de valor sobre a forma peculiar como esses fatores, em especial as crenças religiosas, influenciam nas decisões do paciente.”

Ao que parece, diversos países estão seguindo este último posicionamento quando enfrentam esta temática. É o caso, por exemplo, da Argentina e do Uruguai. Se não, vejamos:

Fallece la testigo de Jehová argentina que rechazó una transfusión (...) Ha muerto la testigo de Jehová argentina que agonizaba en un hospital después de negarse a recibir una transfusión de sangre después de un grave accidente, tal como publicábamos hace unos días en Info-RIES . María Menguele permanecía internada en el hospital de Urgencias y el deceso se produjo a raíz de un “paro cardiorrespiratorio” . El accidente se produjo el 27 de marzoen la intersección de calles Agustín Garzón y Diego de Torre de barrio San Vicente. Según detalla el medio argentino 26 Noticias, si bien el deceso se produjo el domingo 31 de marzo como consecuencia del paro cardiorrespiratorio que padeció la mujer, el hecho fue confirmado en la mañana del 1 de abril por fuentes del hospital municipal. Entre la ética y la legalidad Desde el Comité de Bioética del hospital informaron de que los profesionales que atendían a la mujer, adepta de los testigos de Jehová, “tuvieron que admitir su expresión de voluntad” , en los términos de la Ley 26529 (Derechos del Paciente en su Relación con los Profesionales e Instituciones de la Salud). El artículo 2, inciso “E” de la Ley 26529 establece el principio de “autonomía de la voluntad” , según el cual “el paciente tiene derecho a aceptar o rechazar determinadas terapias o procedimientos médicos o biológicos, con o sin expresión de causa” . Por su parte, el director de la Maestría en Bioética de la Universidad Nacional de Córdoba (UNC), Alberto Sassatelli, precisó a la prensa que, en virtud de la autonomía del paciente, “cada uno es dueño de su cuerpo y de sus creencias, y puede disponer de ellas”. “Esa voluntad tiene primacía por sobre cualquier otra consideración” , precisó el académico al comentar lo sucedido con la mujer que, en virtud de sus creencias, se negó a recibir una transfusión de sangre. Tras el accidente, la mujer, que había llegado consciente al hospital, manifestó su negativa a una transfusión, lo que después fue refrendado por familiares con la firma de un documento, como lo prevé la ley, que libera a los médicos de las consecuencias que pudieran derivar de esa determinación. Tratamientos alternativos a la transfusión Antes de la muerte de la anciana obstetra, el jefe de guardia del centro Documento: 33010937 - RELATÓRIO, EMENTA E VOTO -  Superior Tribunal de Justiça hospitalario, Maximiliano Citarelli, había confirmado que la mujer presentaba “un síndrome anémico importante” y estaba en “coma farmacológico” , tal como leemos en Rosario 3. “Se encuentra con lesiones, con un importante sangrado y los métodos alternativos a la transfusión sanguínea que se están usando producen una reposición más lenta de sangre que con la transfusión” , detalló. Según publica La Voz del Interior, José Seirano, del Comité de Enlace de los Testigos de Jehová, indicó que la mujer, quien era obstetra, firmó un documento médico en el que solicitaba que no se la trasfundiera. “Es una posición que se toma de forma individual, no es obligatorio para todos los testigos de Jehová” , indicó Seirano. Antecedente en el país El último caso sobre este tema ocurrió en junio de 2012, en la ciudad de Buenos Aires, según informa La Voz del Interior. Pablo Albarracini, un joven testigo de Jehová que fue baleado durante un robo, se negaba a recibir una transfusión de sangre por razones religiosas, mientras estaba internado en la Clínica Bazterrica. El hombre de 38 años había firmado un documento, rubricado ante escribano público, en el que se negaba a recibir transfusiones de sangre en caso de necesitarla. Su padre recurrió a la Justicia para habilitar la práctica médica, pero la Corte Suprema de Justicia de la Nación ordenó que se respetara la decisión del joven de no recibir sangre. Finalmente, Pablo fue dado de alta, y se repuso. “Pablo tiene la visión del ojo izquierdo reducida y la mitad del cráneo hundido; se lo reconstruirán con cirugía plástica, pero neurológicamente está perfecto. Mantiene conversaciones y camina. Perdió 20 kilos mientras estuvo internado” , dijo el padre, cuando el joven salió de la clínica. A Pablo debían realizarle una cirugía para extraer la bala ubicada en la base de su cerebro. (Fonte: site da Rede Ibero-americana de Estudo de Seitas: http://infocatolica.com, consultado em 16/07/2015)

Sobre a autora
Raíssa Ester Maia de Barros

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFCG; Pós-Graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário, PUC-MG; Pós-Graduanda em Direito Civil Constitucional do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, UFPB/ESMA PB. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Raíssa Ester Maia. Viver ou sobreviver:: a transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4640, 15 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47251. Acesso em: 18 abr. 2024.

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