Análise jurídica sobre o populismo penal.

Baseado no livro "Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico" de Luiz Fávio Gomes

11/03/2016 às 18:10
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Populismo Penal. Mídia disruptiva e direito penal crítico. Análise jurídica

1.  Evolução das principais ideias penais no mundo nos últimos 60 anos 

Em meados dos anos 50, o modelo criminal aplicado nos países desenvolvidos era o criminal dissuasório, que se baseava na forma intimidativa da lei através das rigorosas penas aplicadas, entendendo que assim o sistema penal funcionaria através de uma segregação proporcionada pela prisão, imaginando os criminosos em uma fração finita e que através dos encarceramentos as taxas de criminalidade cairiam automaticamente. Este modelo dissuasório não vingou, pois o criminoso não é um fator exato, cada indivíduo faz seu juízo de valor sobre o crime realizado e a consequência da pena embutida  no ordenamento jurídico, e a criminalidade varia muito por fatores externos como a economia mundial, as taxas de desemprego, as desigualdades sociais, etc. 

Ao final dos anos 50, surgiu o movimento penalista da ''nova defesa social'', com a ideia de humanizar a pena. Surgiu então uma política criminal humanista, colocando a dignidade humana em evidência. 

As décadas de 60 e 70, foram marcadas pela derrocada do direito penal retributivo e o predomínio das racionalidades do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos, surgiu assim uma política criminal orientada pelas políticas do ''re'' (ressocialização, reinserção, reintegração, recuperação, etc). 

Nas décadas de 70 e 80, o modelo ressocializador entra em crise juntamente com o Estado do Bem-Estar Social, e ao mesmo tempo, dois movimentos contrários começam a ganhar destaque, quais sejam: o ''neoconservadorismo'' e a ''criminologia crítica''. 

Já nos meados dos anos 80 e 90, a política não repressiva foi complementada pelo modelo integrador-reparador, foi trazida para este modelo a reparação dos danos como terceira via do direito penal e a satisfação econômica da vítima em detrimento da punição do Estado em alguns casos concretos. 

  1. O neoconservadorismo e a criminologia crítica   

Com a crise do modelo político criminal ressocializador surgem duas correntes criminais nas décadas de 70 e 80, um conflito entre direito penal autoritário e liberal. 

O neoconservadorismo é uma corrente ligada ao ultraliberalismo norte-americano e inglês, que é o neoliberal na economia, neointervencionista no direito penal hiperpunitivista. 

A criminologia crítica vai além da linha liberal e refuta o paradigma etiológico do delito, é fundada em razões antropológicas, psicológicas ou sociais, tem como base a afirmação de que os desvios criminais são causados pelos conflitos socioeconômicos e que a justiça é classista, favorecendo os mais abastados financeiramente. 

A criminologia crítica muda o enfoque desta orientação (estaria em crise a criminologia crítica? Veja Melossi: 2012, p. 19 e ss.), centrando-se no sistema penal, no seu funcionamento, no controle social, enquanto gerador de criminalidade e de seletividade (consoante a teoria do labelling approach) (Figueiredo Dias e Costa Andrade: 1997, p.384 e ss.). O discurso crítico radical (Taylor, Walton e Young: 1997, p. 226 e ss.) chegou a se converter num dos seus segmentos em movimento de política criminal (por meio do abolicionismo) e conta com certa relevância até os dias de hoje, em razão da sua denúncia da estrutura classista e patriarcal da sociedade (Zaffaroni:2012, p. 166 e ss.).[1]

Nas últimas três décadas, o neoconservadorismo  tem sido o responsável pela disseminação do hiperpunitivismo, refletindo na expansão desgovernada do sistema penal. Trata-se da política criminal da repressão bruta, que existe para preservar uma determinada ordem social e castigar o delito como expressão de uma patologia ou problemática individual, fruto da maldade e da livre escolha do desviado. Este hiperpunitivismo penal começou a utilizar o apoio popular atrelado com a mídia e a política, uma vez que os meios de comunicação descobriram que o delito vende e os políticos perceberam que a insegurança garante votos. Assim, o ''populismo penal'' surgiu e se estabeleceu no final do século XX e se perpetua até os dias de hoje. 

E neste contexto expansionista que se insere o discurso do populismo penal que, como vimos, passou a explorar o senso comum, o saber popular, as emoções e as demandas geradas pelo delito assim como pelo medo do delito, buscando o consenso ou o apoio popular para exigir mais rigor penal (mais repressão, novas leis penais duras, sentenças mais severas e execução penal sem benefícios), como “solução” para o problema da criminalidade (Gutiérrez: 2011, p.13).[2]

Em meados dos anos 80 se afirmava que o delito estava ficando sem controle, que os ‘remédios brandos’ (da década de 70) não funcionavam, sendo necessária uma resposta dura (mais dureza contra os delinquentes). A crença na punição crescia fortemente, o sistema de justiça penal experimentava aguda crise, o campo penal passou a apresentar um grande mal-estar (passou-se a falar de desmoralização - Garland: 2005, p. 60 e ss.; de incivilização: Pratt: 2006, p. 18 e ss.), os meios de comunicação descobriram que o delito vende (da lucro), do sistema disciplinar se evoluiu para o sistema de controle (Portilla Contreras: 2007, p.32 e ss.), o direito ‘a segurança era visto como derivação do Estado Social mínimo (Portilla Contreras: 2007, p.45 e ss.) e os políticos começaram a perceber o rendimento eleitoral com o tema da insegurança publica: todos os ingredientes do populismo penal estavam prontos (Van Swaaningen: 2011, p. 270 e ss.).[3]

  1.  Populismo Penal 

O populismo penal surgiu nos países de primeiro mundo como um novo ponto de vista sobre a penalidade, e se baseou sobre a regência do movimento ''a lei e a ordem'' com o intuito para a repressão, mas acabou proporcionando o surgimento do grande encarceramento nos últimos 30 anos.

Nos países em desenvolvimento como o Brasil, o populismo penal não é um novo ponto de vista sobre a política penal, a própria desigualdade, a corrupção endêmica e a violência gritante anteriores a essa corrente penalista já haviam implementado um ordenamento penal punitivista repressivo e desigual, haja vista serem as classes menos favorecidas economicamente as mais vitimadas por este sistema. 

Nos países periféricos historicamente hierarquizados e extremamente desiguais, violentos (sistema de extermínio massivo- veja Neuman: 2001, p. 138 e ss., especialmente p. 183 e ss.; Queiroz: 2011, p. 83) e com altas taxas de corrupção (sistema de arrecadação paralelo, no que concerne aos agentes públicos), como e o caso do brasil, o populismo penal, protagonizado, sobretudo, pela mídia, não pode ser percebido como fonte de “um novo ponto de vista sobre a penalidade”, mas sim, como fator de incremento ou de exacerbação de um velho e desgastado modelo punitivista repressivo, que esta se revestindo (cada dia mais) de superlatividades impensáveis bem como de exageros canhestros e rudimentares, típicos de um fundamentalismo penal sem precedentes no últimos 30 anos, que está irradiando suas negatividades no sentido da degeneração completa do provecto sistema penal ( relativamente garantista).[4]

Este hiperpunitivismo se apoia no neoconservadorismo e detém uma ideologia ilusória de solução para a criminalidade  e consequentemente a insegurança pública. 

O neoconservadorismo populista não tem nada a ver com as teses progressistas (ou liberais ou críticas) que veem o delito prioritariamente como um problema comunitário ou social (Garcías-Pablos e Gomes: 2010), que não naturalizam, ao contrário, problematizam a injusta ordem social e se afastam claramente “soluções” repressivas demagógicas. O predomínio neste princípio de novo milênio e da visão individualizada da responsabilidade penal, porém, fica cada vez mais evidente (em relação aos crimes clássicos) a corresponsabilidade social, que não é admitida pelo pensamento conservador, que conta com a estreita ligação com a ideologia da defesa social (Pergoraro: 2011, p.22).[5]

A ideologia utilizada pelo populismo penal é a punição severa e penas mais duras visando um castigo vingativo através da manipulação das emoções populares, ocasionando uma epidemia homicida e carcerária que observamos nos dias de hoje, como por exemplo, na tentativa da redução da maioridade penal pelo Congresso Nacional. A política se aproveita desse medo popular (que detém uma falsa imagem da questão criminal), e nos últimos 60 anos em nosso país, a segurança passa a ter um estreito ligamento com o sistema político, assim, transformando-se em um mercado de votos, o qual o político se beneficia. 

Uma das maiores, provocadas pelo populismo penal, consiste precisamente no valor de ‘intercambio’ que essa ‘mercadoria’ (insegurança publica) esta gerando entre a população (que vota) e o político (que depende do voto para sua eleição) (Garland: 2005, p. 48 ess.; Zaffaroni: 2012, p.241 e ss.; Diez Ripolles: 2007, p. 92 e ss.).[6]

  1. Mecanismos para a aplicação e funcionamento do populismo penal  

A política protecionista, ao invés de proteger o cidadão, faz crescer o sentimento de insegurança, pois através do número maior de produção de leis, espera-se no discurso populista uma redução da violência e das prisões, mas isso não é o que acontece de fato.

            Existe certo consenso em afirmar que, sobretudo no nosso contexto cultural e geográfico (mundo latino-americano), se tornou inegável a presença do discurso penal puntivista (Pergoraro, 2007; Erbetta, 2006; Cesano, 2004; Bombini, 2008 – todos citados por Bombini: 2010, p.43), porém, o que a cidadania imaginava que fosse uma politica de proteção, na verdade, é contraproducente, porque nunca alcança os efeitos desejados e, pior, incrementa o sentimento de desconfiança no Estado moderno (Silva Sanchez: 2011, p. 75 e ss.).[7]

Com a inflação do sistema penal, o direito penal passa a ter uma ligação com o discurso hiperpunitivista, explorando a emotividade da população leiga por meio de eficientes técnicas de manipulação, colocando no imaginário dos cidadãos uma sensação de insegurança aplicada pela teoria do medo e explorando a emotividade dos crimes cometidos. Este tipo de construção do imaginário penal dos cidadãos coloca a justiça como mais uma de suas vítimas endêmicas, dessa forma, a sentença não tem mais um papel da aplicação somente da pena, surge a necessidade da vingança ligada diretamente as emoções de falsa inibição da criminalidade. 

E desta percepção que surgem as sensações de indefesa e de medo (Simon: 2011, p.109 e ss.; Câmara: 2008, p.223 e ss.).

 O chamado direito penal simbólico tem estreito vínculo com o discurso populista punitivista, que reivindica (explorando a emotividade da reação ao delito) a produção de leis penais cada vez mais severas, com a ciência de que essas leis, sob a roupagem de uma atuação política instrumental e eficaz, na verdade, em nada alteram (ao menos a médio longo prazo) a realidade da proteção dos bens jurídicos (ou da tutela da segurança publica), limitando-se, nesse campo, somente a emitir mensagens (imediatas) de tranquilização coletiva ou de preocupação com o tema (Díez Rippolés: 2007, p.71 e ss.).[8]

Por meio de eficientes técnicas de manipulação (e nisso que consiste o populismo penal), cria-se ou amplia-se a sensação de insegurança, o sentimento de medo (em síntese, a realidade), explora-se a reação emotiva ao delito, para se alcançar consenso ou apoio popular para a expansão do poder punitivo (mais presídios, mais policiais, mais vigilância de toda população, mais poder à polícia, mais controle etc.). O senso comum acaba sendo fruto de uma construção da realidade, feita, sobretudo, pela mídia (Torres: 2008, p.94 e ss.).[9]

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O populismo penal, de outro lado, como forma de expressão do poder punitivo que instrumentaliza a vontade popular para alcançar (seu apoio para) mais expansão penal assim como o atendimento de interesses que transcendem o campo da política criminal (interesses de controle social, de contenção dos segmentos perigosos ou perturbadores, incluindo-se os parecidos, interesses relacionados com uma determinada política econômica), conduz, ademais, ao manejo de um tipo de justiça que profira sentenças significativas para as vítimas, sentenças que exprimam (como enfatiza Gutiérrez: 2001, p.16) “cerimônias de represália” ou de expiação (Balestena: 2006, p.3 e ss.), atendimento de um reclamo, de uma demanda, que sejam manifestação pública de repúdio ao crime e de reconhecimento da vítima por parte do governo e do Estado ( Garland: 2005, p.42 e 46 e ss.).[10]

  1. As dimensões do populismo penal

Existem duas vertentes do populismo penal, a conservadora clássica e a disruptiva, elas caminham conjuntamente pelo fundamento conservador de que o delito é uma escolha pessoal, um desvio individual e que deve ser punido.

A conservadora clássica é a vertente que se apoia na ideologia conservadora, e acredita na punição como remédio para os criminosos estigmatizados de escoria da sociedade. Estes criminosos são tratados com repulsa, pois a ordem social deve exclui-los com o discurso de que estes não se encaixam no meio social, uma vez que fizeram sua escolha e merecem a exclusão. Vende a ideia que a exclusão permitida pelo ordenamento jurídico é o caminho para uma ordem do bem comum na sociedade distinguindo as pessoas de bem e mal representada pelos criminosos estereotipados.

O populismo penal conservador clássico se volta contra as pessoas estereotipadas e seus semelhantes. Ambientado em terrenos de prosperidade do capitalismo de acumulação primitiva (K. Marx) – que resultou agravado desde os anos 90 pelo neoliberalismo e neoconservadorismo (Pegoraro: 2011, p.30)-, ostenta fortes componentes emocionais e irracionais (vingativos) ao postular, de forma extremista, radical e fundamentalista, para além de mais vigilância e mais controle da sociedade, o máximo rigor penal (das leis, das práticas institucionais e da execução penal), contra alguns criminosos (violentos e/ou estereotipados, incluindo-se os excluídos ou excedentes), da forma mais rápida, econômica, eficiente e informal possível, como única (ou tendencialmente única) “solução” para o problema da criminalidade (e da insegurança).[11]

A teoria disruptiva é o direito penal dos iguais, ela busca punir os cidadãos de poder e não os criminosos estereotipados, ou seja, aqueles suspeitos de cometerem crimes de colarinho branco, estes da alta classe burguesa são tratados como os desviados, os desiguais. Observamos esse fenômeno penal nos julgamentos do mensalão e um exemplo mais recente é o da lava jato.

Nos dizeres de Luiz Flávio Gomes (2013, p.59), a bandeira do populismo penal disruptivo e a universalização (ou democratização) da persecução penal, ou seja, todos devem ser perseguidos criminalmente (não somente os marginalizados).

E ainda, o mesmo autor elucida que:

Caso ganhe forca e sistematicidade, o populismo penal disruptivo tem suficiente energia para universalizar para todos à incidência do poder punitivo estatal, gerando o encarceramento não só dos tradicionais 4 pês (pobres, pretos, prostitutas e policiais), senão também dos políticos (que arrastam com eles banqueiros, bicheiros, construtores etc.).[12]

Essas duas vertentes penais mostram as duas frentes deste novo direito penal, a punição da criminalidade chamada de tradicional, aquela dos crimes cometidos pela massa excluída, e a punição de um sujeito novo que não era apreciado nas outras teorias penais já ultrapassadas pelo hiperpunitivismo, os delitos cometidos pelos iguais, os crimes socioeconômicos, os de colarinho branco. Agora o criminoso e o burguês são tratados como o inimigo e são explorados pelo discurso do hiperpunitivismo penal.


[1] GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013, pág. 31 e 32.

[2] GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 33

[3] Ibidem, p. 34

[4] GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 36

[5] Ibidem, p. 38

[6] GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 40

[7] Ibidem, p. 46 e 47

[8] GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 51 e 52

[9] Ibidem, p. 52 e 53

[10] Ibidem, p. 57

[11] GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 59

[12] GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 59

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