Eutanásia: morte e dignidade

15/03/2016 às 14:50
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A dignidade humana é a norma-valor que inspira todo o ordenamento jurídico, portanto cabe analisar o direito à vida juntamente com a noção de dignidade. Deste modo, poderia se falar do direito à vida digna.

 

O cenário de morte e a situação de paciente terminal são as condições que ensejam os maiores conflitos nesta nova era trazida pela o avanço da tecnologia aplicada à Medicina. As novas situações surgidas devem levar em conta os princípios da preservação da vida e o alívio do sofrimento. Deve-se lutar pelo direito a uma morte que seja digna, que ocorra sem abusos ou omissões. Este é um dos temas jurídicos mais controvertidos da atualidade, visto que envolve questões sensíveis no campo da ética, bioética, religião e direito.

A Eutanásia é um dos assuntos mais complexos do Direito Penal, como diz Claus Roxin:

A apreciação da eutanásia é um dos pontos mais complicados do Direito Penal. Isso tem três motivos: primeiramente, falta um dispositivo legal que dela trate expressamente. (...) Em segundo lugar, os problemas existenciais que surgem em decisões sobre a vida e a morte dificilmente podem ser regulados através de normas abstratas; pois o direito vive de situações cotidianas tipificáveis, nem sempre se conseguindo, em sua necessária conceituação generalizante, dar um tratamento adequando ao processo individual e irrepetível da morte. Em terceiro lugar, o consenso sobre o permitido e o proibido na eutanásia é dificultado por não se tratar de tarefa exclusiva do penalista. Nesta esfera, também médicos, filósofos, teólogos e literatos reclamam para si — e com razão, o direito de ingressar no debate (ROXIN, 2000).

Quando olhada sob a ótica do Direito Penal, a discussão sobre a eutanásia ganha corpo. A vida não é um bem irrenunciável, até porque o Ordenamento Jurídico Brasileiro ainda contempla a pena de morte no Código Penal Militar. Dessa forma, é necessário fundamentar a possibilidade de utilização da eutanásia, em relação à chamada eutanásia indireta e à ortotanásia.

Há muitas situações em que conflitos entre valores e/ou direitos relevantes surgem com força e freqüência, obrigando os indivíduos envolvidos a utilizar a razoabilidade para escolher qual bem será protegido e qual será vulnerado. Assim, a intervenção penal deve ser realizada de maneira proporcional ao valor ou direito que se deseja proteger, já que no Estado Constitucional e Democrático de Direito, o Direito Penal está alicerçado nas garantias trazidas pelo Princípio da Legalidade, ao lado da necessidade de se preservar outros bens jurídicos igualmente essenciais ao ser humano.

No caso da Eutanásia, sem perder de vista dos Princípios da Intervenção Mínima, Lesividade, Subsidiariedade e Fragmentariedade, o balanceamento dos bens jurídicos é realizado, a princípio, pelo próprio enfermo, seguido dos familiares, então dos médicos, e se for o caso, do julgador que seja provocado por eventual omissão médica, ou ainda por divergência entre familiares, ou entre estes e a equipe médica.

Ainda que exista a definição legal do dano ou do perigo, não haverá crime se a conduta se adequou ao Direito, não esquecendo a ocorrência de excludentes como o a inexigibilidade de conduta diversa. Não se pode esperar de alguém que, ao ver seu familiar sofrer com isso concorde e nada faça para alterar. A renúncia e o instinto de proteção são inerentes às pessoas sensíveis.

Em relação à eutanásia com o consentimento válido da vítima — ou de seus representantes legais — ainda se poderia invocar a adequação social. Esta conduta não traria desvalor para que merecesse a sanção penal, por ser aceita pela comunidade. Ou seja, a comunidade não mais enxerga o agente da eutanásia como um homicida, mas o vê como alguém que é digno de proteção, levando-se em conta a difícil situação em que se envolve. A aplicação do princípio da adequação social de Welzel tiraria, a partir da nova interpretação da norma penal, a possibilidade de aplicação de uma sanção criminal ao autor da eutanásia (HIRECHE, 2011).

A Constituição Federal de 1988 garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança, dentre outros, compreendendo que tais direitos não são absolutos. Não são eles, principalmente, deveres: a norma constitucional não estabelece deveres de vida, liberdade ou segurança. Não se prevê na lei um direito à morte, até porque não se pode imputar a ninguém o dever de matar. Garante-se, por certo, o direito à vida, sendo inexistente o dever à vida, tanto que não é tipificada como crime a tentativa de suicídio. Assim, tendo a pessoa a proteção legal de sua dignidade, para torná-la plena é fundamental o exercício do direito de liberdade e de autonomia sobre onde e como deseja morrer, isso, claro, depois do diagnóstico de doença terminal e quadro irreversível da enfermidade.

A dignidade humana é a norma-valor que inspira todo o ordenamento jurídico, portanto cabe analisar o direito à vida juntamente com a noção de dignidade. Deste modo, poderia se falar do direito à vida digna. Não se poderia dizer, então, que do próprio direito à vida digna deriva um direito de morrer dignamente? (PITHAN, 2004)

Acerca da ponderação de valores em conflito (no caso vida e dignidade humana), a prof. Alice Bianchini fala da relevância do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que significa a necessária proporção entre o sacrifício de bens e os males a evitar, ou seja, representa a confrontação entre o peso do sacrifício que uma restrição de direitos fundamentais implica a um indivíduo afetado, de um lado, e os benefícios daí advindos para o estabelecimento do certo interesse individual ou coletivo.

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À nossa ótica, a tipificação da eutanásia como crime, ao pretender ampliar a proteção do bem jurídico vida acaba por reduzir o amparo à dignidade humana. Não há sentido em se transformar o direito à vida em um dever de manter-se vivo, quando já não é mais possível viver dignamente e sem sofrimento. Pelas razões e fundamentos expostos, opinamos que não se deve considerar a eutanásia indireta e a ortotanásia como condutas criminosas.

 

REFERÊNCIAS

BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003.

HIRECHE, Gamil Föppel El. Tutela penal da vida humana: anotações sobre a eutanásia. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em: 14 set. 2011. Material da 1ª aula da Disciplina Tutela Penal dos Bens Jurídicos Individuais, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais - Universidade Anhanguera-Uniderper/REDE LFG.

PITHAN. Lívia Haygert. A dignidade humana como fundamento jurídico das “ordens de não ressuscitação”. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

ROXIN, Claus. Apreciação Jurídico Penal da Eutanásia. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, n.º 32, outubro-dezembro de 2000.

 

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Sobre a autora
Leonellea Pereira

Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismos (UFBA). Especialista em Ciências Penais (UNIDERP) e também em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça (UFBA). Graduada em Direito (UEPB). Advogada (OAB/BA) na Presidência da OAB Subseção Irecê - BA (2022-2024). Professora do Curso de Direito da Faculdade Irecê - FAI. Técnica Universitária da UNEB Campus XVI - Irecê. Mediadora Judicial (NUPEMEC/TJBA/CNJ). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7207217841688056. E-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Atividade da disciplina Tutela dos bens jurídicos individuais da Pós Graduação em Ciências Penais da Universidade Anhaguera/UNIDERP/Rede LFG.

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