Do indulto e do cômputo das penas em caso de crime hediondo cumulado com crime comum

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O artigo analisa a melhor maneira de conceder o indulto coletivo quando há cumulação de penas provenientes de crime comum com crimes impeditivos.

1. INTRODUÇÃO

No desenvolver da atividade jurídica, em especial no âmbito da Execução Penal, percebe-se uma imensa dificuldade dentre advogados e servidores da Justiça em como proceder no caso de indulto relacionado à somatória de penas de crimes hediondos cumulados com crimes comuns. Com efeito, não são poucos os casos que surgem para o Judiciário e para o Conselho Penitenciário em que o apenado vislumbra a extinção da punibilidade, por meio da concessão de indulto, mesmo tendo cometido crimes hediondos.

Contudo, há na doutrina e jurisprudência controvérsias em saber se, nesses casos, deve ser concedido tal benefício e, em sendo positiva a resposta, como isso pode ser feito. Nesse sentido, este artigo visa a oferecer um caminho, um norte quanto ao indulto em casos de somatório de penas de crimes hediondos com crimes comuns, pois tal situação enseja um cuidadoso e redobrado estudo de como se fará esse cômputo, evitando-se, dessa forma, desrespeito à legislação vigente e prejuízos aos direitos e garantias do reeducando.


2. DO CONCEITO DE CRIME HEDIONDO.

Com base nos ensinamentos de Claudio Brandão, infere-se que “o crime pode ser definido como uma ação típica, antijurídica e culpável”.1 Trata-se do famoso Conceito Tripartido do Crime, cuja origem remonta ao Direito Alemão. Para entendermos melhor esse conceito, devemos analisar cada um de seus elementos.

Um dos princípios basilares do Direito Penal moderno é o nullum crimen nulla poena sine lege, isto é, não há crime nem pena sem lei. O significado desta expressão dá ensejo ao principio da Legalidade, cuja ideia é a necessidade de que a conduta humana, contrária ao direito, esteja especificamente prevista em lei. Dá-se, assim, a criação da tipicidade.

Quando o Direito descreve uma conduta humana e a coloca na lei como um ato relevante e não desejável no meio social, ele o tipifica e informa que não a quer sendo realizada. Dessa forma, além da tipificação, junto com a pena imputada, é presumível a relação não desejável daquele ato. Sendo assim, percebe-se que toda a ação típica vai de encontro, em regra, ao Direto, ou seja, ela é antijurídica.

Estes dois elementos do conceito de crime, a tipicidade e a antijuridicidade, são juízos referentes à ação humana em si, e não sobre o autor da conduta. A culpabilidade vem justamente para fechar essa brecha. Assim, depois de se analisar os dois primeiros elementos do crime há a necessidade de saber se, ao tempo da ação ou omissão, o autor do suposto delito tinha o livre discernimento para se comportar conforme o direito ou optou livremente por se comportar contrário a ele.

Dentre as inúmeras classificações que se faz aos crimes, uma em especial nos interessa neste momento: é a que define alguns crimes como hediondos. Resumidamente, são hediondos os crimes entendidos pelo Poder Legislativo como mais graves, que causam maior aversão por ferirem valores comuns à coletividade e que, por esse motivo, merecem maior reprovação por parte do Estado.

No Brasil, são considerados hediondos os crimes elencados no artigo 1º da Lei nº 8.072/1990, como por exemplo o homicídio quando praticado em atividade típica de extermínio, ainda que cometido por um só agente; homicídio qualificado e outros. Além destes, são considerados crimes equiparados aos hediondos, por expressa previsão constitucional (artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal), a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo. Percebe-se, pois, que o principal aspecto configurador da qualidade de hediondo, a ser dada a um delito, reside na sua gravidade e, por via reflexa, na maior necessidade de repressão/punição estatal.


3. DISTINÇÃO ENTRE INDULTO, GRAÇA E ANISTIA.

Dado a relevância do tópico, há a necessidade de conceituar-se o indulto. Tipicamente discricionário, este ato do Presidente da República traz um manejo social bastante peculiar à execução processual penal e ao direito material propriamente dito. Nas palavras de Juarez Cirino, tem-se:

“O indulto constitui igualmente ato de competência do Presidente da República, tem por objeto crimes comuns e por objetivo beneficiar uma coletividade de condenados, selecionados pela natureza do crime realizado ou pela quantidade da pena aplicada, com exigências complementares facultativas, geralmente relacionadas ao cumprimento parcial da pena; finalmente, também tem por efeito extinguir ou comutar a pena aplicada – exceto no indulto sob condições, que podem ser recusadas pelo indultado. ”2

Isto significa que a pena imposta na sanção determinada pelo juiz ou tribunal, depois de transitada em julgado, pode ser diminuída ou extirpada por completo a depender dos requisitos impostos pela lei. Historicamente, em todo dia 24 de dezembro o Presidente da República Federativa do Brasil promulga um decreto, mais conhecido como indulto natalino, por estar próximo a esta data comemorativa, no intuito de política criminal de abrandar ou extinguir a pena de seus beneficiários. Assim, como nos ensina o professor Luiz Flavio Gomes,

“O indulto individual precisa ser solicitado ao Presidente da República (o pedido tem tramitação pelo Ministério da Justiça); o coletivo é concedido de ofício, pelo Presidente da República (ou pessoa delegada: Ministro de Estado, Procurador-Geral da República ou Advogado-Geral da União), por decreto (isso vem ocorrendo todos os anos com o chamado indulto natalino). ”3

Dessa forma, observa-se que indulto pode ser o individual, mais conhecido como graça, cujo benefício apenas é concedido a um único apenado, ou o coletivo, o qual abrange todos os condenados que preencham aqueles requisitos impostos pelo decreto. O indulto também pode ser parcial, quando há a comutação da pena, isto é, diminuição dela, ou total, quando há a extirpação desta, passando-se o apenado a gozar de liberdade definitiva. Contudo, os efeitos da condenação penal continuam vigorando: a sentença penal permanece íntegra, sobretudo para efeito da reincidência, antecedentes, entre outros aspectos.

Por outro lado, há no ordenamento jurídico outra forma de se extinguir a punibilidade, a anistia. Mais conhecida do que os outros dois institutos, por ter sido utilizada na época da transição do período ditatorial para o período democrático no Brasil, a anistia é uma maneira politicamente usada pelo Congresso Nacional para se olvidar de crimes cometidos em épocas temerárias de nossa história. Segundo Cezar Roberto Bitencourt:

“A anistia é o esquecimento jurídico do ilícito e tem por objetivos fatos (não pessoas) definidos como crimes, de regra, políticos, militares ou eleitorais, excluindo-se, normalmente, os crimes comuns. A anistia pode ser concedida antes ou depois da condenação e, como o indulto, pode ser total ou parcial”.4


4. DO CÔMPUTO DA PENA PARA FINS DE INDULTO NA HIPÓTESE DE CRIME COMUM CUMULADO COM CRIME HEDIONDO.

Inicialmente, é de se destacar que, quando se está diante da prática de apenas um ou mais crimes hediondos, é pacífico o entendimento de que não cabe a aplicação de indulto, por expressão previsão constitucional, no artigo 5º, inciso XLIII, e também por previsão da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) e dos Decretos Natalinos, ano após ano. O Decreto Natalino de 2014, nº 8.380, por exemplo, prevê no artigo 9º, inciso, II, que o disposto no Decreto “não alcança as pessoas condenadas por crime hediondo”.

Diferente é a situação de haver a prática de crime hediondo cumulado com crime comum. Nesse caso, a regra é a de que cumpridos 2/3 da pena relativa ao crime hediondo torna-se possível a concessão de indulto aos crimes em concurso que não ostentem natureza hedionda, desde que cumpridos os outros requisitos presentes no decreto presidencial. É o que dispõe o parágrafo único do artigo 8º do Decreto Natalino de 2014, nos seguintes termos:

“Na hipótese de haver concurso com crime descrito no art. 9º [que elenca os crimes impeditivos, ou sejam, que não podem ser objeto de indulto, dentre eles os hediondos], não será declarado o indulto ou a comutação da pena correspondente ao crime não impeditivo, enquanto a pessoa condenada não cumprir dois terços da pena, correspondente ao crime impeditivo dos benefícios”.

Destaque-se: o que é possível é a concessão de indulto, desde que preenchidos estes requisitos, quanto ao crime não impeditivo (ou seja, crime comum) que esteja cumulado com crime hediondo; jamais a concessão de indulto unicamente para crime hediondo. O grande problema é saber como deve ser feita a contagem da pena nesses casos. Para melhor exemplificar a questão, será analisado um caso real, o dos autos do Processo de Execução Penal de nº 2004.0028.000705, remetido ao Conselho Penitenciário do Estado de Pernambuco para parecer acerca da possibilidade da concessão de indulto.

No caso, o reeducando foi condenado a uma pena unificada de 11 anos e 06 meses de reclusão, sendo 8 anos pelo crime previsto no art. 121, § 2º, inciso II do Código Penal (Homicídio qualificado – crime hediondo, portanto) e 3 anos e 06 meses pelo crime previsto art. 14. da Lei 10.826/2003 (Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido – crime comum). Para o cômputo da pena, incialmente deve ser feita a separação das penas do crime hediondo e do crime comum, ainda que tenha havido unificação, como no presente caso. Havendo mais de um crime hediondo e/ou comum, devem as penas ser separadas e se deve proceder da mesma maneira como a seguir exposto.

Veja-se que, caso não tivesse sido feita a separação das penas do crime hediondo e do crime comum, não seria possível a concessão de indulto, uma vez que o artigo I, inciso I do Decreto Natalino de 2014 exige condenação a pena privativa de liberdade não superior a oito anos, mas apenas comutação, nos termos do artigo 2º do referido Decreto, agravando, dessa forma, a situação do apenado. Tendo o reeducando sido condenado a pena de 8 anos de reclusão pelo crime hediondo, inicia-se a contagem por este, até chegar a 2/3 da pena, o que equivale a 5 anos e 4 meses. Após o cumprimento desse lapso temporal, interrompe-se a contagem quanto ao crime hediondo e se inicia o cômputo em relação ao crime comum: 3 anos e 06 meses de reclusão. Cumpridos 1/3 desse período, 1 ano e 2 meses, sendo o apenado réu primário (em caso de réu reincidente, 1/2), torna-se possível a concessão do indulto quanto ao crime não hediondo, nos termos do artigo 1º, inciso I do Decreto Natalino de 2014 (com redação praticamente inalterada nos Decretos anteriores).

Concedido o indulto quanto ao crime comum/não impeditivo, volta-se, a partir da data em que se torna possível a concessão do benefício5, à contagem do cumprimento de pena em ralação ao crime hediondo, do qual resta, com efeito, 1/3 (réu primário) ou 1/2 (réu reincidente) da pena. Havendo o cumprimento integral do restante da pena pelo reeducando, deve ser reconhecida a extinção da punibilidade do agente em face do total cumprimento da pena; em caso de faltar lapso temporal a ser cumprido, deve o reeducando cumprir normalmente o que falta para a integralização da pena quanto ao crime hediondo.

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Feitas essas considerações, é possível chegar a duas conclusões:

  1. Para o cômputo da pena para fins de indulto, inicialmente deve-se separar as condenações por crime hediondo e por crime comum, ainda que tenha havido unificação, e iniciar a contagem a partir do crime hediondo;

  2. Preenchido o lapso temporal de 2/3 referente ao crime hediondo, para-se a contagem quanto a este e se inicia o cômputo em relação ao crime comum.

Tendo sido preenchidos os requisitos para a concessão de indulto, concede-se o benefício quanto ao crime comum e volta-se normalmente para o cumprimento de pena referente ao lapso temporal restante do crime hediondo, que consiste em 1/3 da pena.

É imperioso destacar que existe a necessidade de se separar, ainda que tenha havido unificação, as penas do crime hediondo e do crime comum. Apesar de a Lei de Execuções Penais trazer o instituto da unificação das penas, com o objetivo de tornar o indulto mais favorável ao reeducando faz-se oportuno separá-las, pois não há óbice a concessão de indulto quanto ao crime comum.


5. CONCLUSÃO

Vistos os conceitos de crime hediondo e de indulto, distinguindo-se este da anistia e da graça, a tese final é no sentido que, quando no cômputo das penas em caso de indulto que tem como objeto crime hediondo cumulado com crime comum, inicialmente deve ser feita a separação dos crimes e a contagem da pena referente ao crime hediondo e, depois de cumpridos 2/3 deste, suspende-se a contagem quanto ao crime impeditivo e inicia-se o cômputo quanto a pena imposta pelo crime comum, sendo dessa data iniciado o cálculo para a concessão do indulto. Sendo possível o deferimento de indulto quanto ao crime comum, volta-se a contagem para o cumprimento do crime hediondo.

É imperioso destacar que existe a necessidade de se separar, ainda que tenha havido unificação, as penas do crime hediondo e do crime comum. Apesar de a Lei de Execuções Penais trazer o importante instituto da unificação das penas, com o objetivo de

tornar o indulto mais favorável ao reeducando faz-se oportuno separá-las, pois não há óbice a concessão de indulto quanto ao crime comum.

Entendemos, destarte, que com essa interpretação a sistemática fica mais benéfica e digna para o reeducando, correspondendo, dessa forma, aos fins de ressocialização e abrandamento da repressão penal a que se propõe o instituto do indulto no Brasil.

Dar maior efetividade a este tipo de extinção da punibilidade é de suma importância, diante da flagrante situação de decadência do sistema penal brasileiro, seja pela superpopulação nos presídios, seja pela demasiada existência de crimes – e a errônea crença de que a criação de mais tipos penais é a solução para a redução da criminalidade -, seja pela desproporcionalidade das penas. Aliás, em um sistema penal justo, do qual estamos longe, quem sabe não seria preciso o instituto do indulto, como já afirmava Cesare Beccaria, em 1784, na sua célebre obra “Dos Delitos e das Penas”:

“A clemência, virtude que, às vezes, foi para o soberano o suplemento de todos os deveres do trono, deveria ser suprimida de uma legislação perfeita em que as penas fossem brandas e o método de julgamento regular e rápido. Esta verdade poderá parecer crua para quem vive na desordem do sistema penal, onde o perdão e a graça são necessários, na proporção do absurdo das leis e da crueldade das condenações”.6

Assim, apesar de existir institutos que podem ser usados para melhorar as condições do apenado, como o indulto, não se tem notícia de uso frequente ou mesmo da forma correta de aplicação. O indulto realmente é pouco aplicado e, quando o é, não raro é aplicado de forma errônea, e por causa disto é praticamente esquecido pela prática forense. Ele, quando corretamente utilizado, dá ensejo a extinção ou a diminuição da pena, proporcionado, dessa forma, uma luz no fim do túnel para pessoas encarceradas e amontoadas de forma desumana nos presídios brasileiros.


6. REFERÊNCIAS

1 Brandão, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral – Rio de Janeiro: Forense, 2008. Página 117.

2 Santos, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3º ed. – Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p. 692.

3 Gomes, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral: vol. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 925.

4 Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1 - 17º ed. rev. ampl. e atual – São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 757.

5 Que é sempre a data de publicação de um dos Decretos Natalinos, no qual o reeducando atingiu o lapso temporal exigido pela lei, dentro de seu período de vigência. Como estamos utilizando como parâmetro o Decreto Natalino de 2014, a data seria 24/12/2014. É sempre a data 24/12 do ano correspondente ao Decreto.

6 Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cratella. 3ª ed. rev. da tradução. São Paulo: RT, 2006, p. 115.

Sobre os autores
Vitor da Cunha Miranda

Estudante da Faculdade de Direito do Recife - FDR/UFPE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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