Incidência x aplicação: uma questão de ponto de vista

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30/03/2016 às 02:09
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Há, atualmente, duas teorias sobre os conceitos de incidência e aplicação, que são tratadas como opostas. Demonstraremos que as divergências entre elas decorrem, em verdade, do modo distinto pelo qual encaram o direito positivo.

1. Introdução

O direito positivo, enquanto conjunto de normas de obrigatória observância, procura regular a vida em sociedade, alterando os comportamentos nas relações intersubjetivas.

As normas jurídicas, entretanto, não tocam o mundo do ser. Apenas se traduzem em crescentes estímulos para que os sujeitos modifiquem seu comportamento, conduzindo-se na forma prescrita pela legislação.

Esses estímulos, por sua vez, serão tanto mais fortes quanto mais concretas e individuais forem as normas jurídicas. Em outras palavras: as condutas serão alteradas na medida em que se vão aproximando e individualizando os comandos prescritivos. E isso se faz por meio do chamado “processo de positivação” ou, melhor dizendo, processo de aplicação, em que normas de superior hierarquia fundamentam a produção de normas de nível inferior.

Alguns autores defendem que a aplicação da norma se confunde com sua incidência; outros defendem que incidência é algo distinto de aplicação. De igual forma, há divergências quanto a automação e infalibilidade desse fenômeno. Com isso surgem questões como: o que é incidência? Aplicação e incidência são realidades idênticas? A incidência é automática e infalível? Nosso objetivo é oferecer uma resposta possível a cada uma dessas indagações.

2. Algumas considerações sobre nosso objeto de estudos

Num texto que se pretenda científico, delimitar nosso objeto de estudos é expediente de fundamental importância, pois, a depender do objeto que se pretende conhecer, diferente será o método utilizado pelo cientista para dele se aproximar.[1]

Como já assinalado, a finalidade deste trabalho é estudar a forma como o direito opera e oferecer uma possível definição para o conceito de incidência. Portanto, é essencial delimitar, com clareza, o sentido com o qual empregamos a palavra “direito”.

Não há um consenso quanto à definição do conceito de direito. Como observa Lourival Vilanova:

A definição do direito ainda é, no presente, um problema aberto. (...) Ainda não se entendem, cientistas e filósofos do direito, sobre a definição do direito. As causas da diversidade de definições, são muitas. Entre outras, a complexidade do objeto jurídico, os pressupostos filosóficos que servem de base às definições, os pontos de vista mediante os quais se considera o direito – ora a forma, ora o conteúdo, ora o valor, a natureza sociológica etc –, de sorte que a definição do jurista, a do filósofo, até mesmo a decorrente do fato da especialização num ramo do direito, ostentam ampla discrepância, não meramente verbal, mas de substância.[2]

Não pretendemos, aqui, propor uma solução a este problema, dada a complexidade do fenômeno jurídico. Buscamos apenas propor um conceito possível de direito para permitir, assim, o estudo do instituto “incidência”.

Como assinala Miguel Reale,[3] enquanto dado cultural, o direito (em acepção ampla) é composto por três fatores essenciais: fato, valor e norma, podendo o cientista optar pelo estudo de qualquer deles. Entretanto, nenhuma análise poderá isolar completamente esses fatores dos demais, pois, apesar das particularidades de cada um, são indissociáveis.[4] Como explica Marcelo Neves:

Observa-se, dessa maneira, serem insustentáveis todas as aborgagens metodológicas que se propõem a isolar uma das três dimensões essenciais do fenômeno jurídico. Em verdade, qualquer estudo parcial do fenômeno jurídico deve pressupor a sua complexidade ontológica. (…) as diversas abordagens parciais devem pressupor o conceito ontológico-dialético do Direito, evitando, desta forma, o abstracionismo estéril. A metodologia a ser utilizada há de se basear no critério de predominância, nunca de exclusividade.[5]

Com essa advertência em mente, optamos por uma abordagem normativa do fenômeno jurídico[6] sem, todavia, desconsiderar os aspectos fácticos e valorativos. Utilizaremos a expressão “direito”, portanto, como sinônimo de “ordenamento jurídico”, ou seja, para designar o conjunto de normas jurídicas que têm por escopo regular as condutas humanas intersubjetivas.[7]

Ressalte-se que a opção pela expressão “ordenamento jurídico” não significa negar a condição de sistema ao conjunto de normas jurídicas. A nosso ver, o ordenamento jurídico pode ser qualificado como um sistema, pois é dotado da racionalidade e organização que distinguem os sistemas de outras organizações. Com efeito, há uma totalidade de elementos – normas jurídicas – reunidos por uma característica comum – regular a conduta humana – e organizados segundo certos padrões – hierarquia normativa, introdução por autoridade competente etc.

Todavia, reservamos a expressão “sistema jurídico” para designar o fenômeno jurídico em sua integralidade, ou seja, enquanto fato, valor e norma, do qual o ordenamento é apenas um elemento.[8]

Por fim, é importante destacar que, enquanto sistema linguístico, o direito pode ser estudado sob duas perspectivas: estática ou dinâmica. Na primeira, verifica-se a compatibilidade entre as normas em vigor num dado instante. A outra torna possível a análise da relação entre as normas que entram no direito positivo em momentos distintos.[9]

No presente trabalho optaremos por uma análise dinâmica do ordenamento, tendo em vista que nosso objeto de estudos é justamente a movimentação das estruturas jurídicas a fim de dar concretude à prescrição jurídica.

3. Aplicação do direito positivo

O direito, enquanto sistema voltado à regulação das condutas intersubjetivas, é composto por normas que possuem idêntica formulação sintática: são juízos condicionais, que vinculam um fato a uma consequência.[10] Seus conteúdos, todavia, são diversos, de modo a alcançar os múltiplos setores da realidade social.

A depender do conteúdo e da autoridade que produziu a norma, diversa será sua localização na hierarquia normativa. Isso porque o ordenamento jurídico é uma estrutura escalonada,[11] onde normas de nível superior fundamentam a produção de normas de níveis inferiores. Como observa Kelsen:

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta.[12]

Ao fundamentar a produção de outras prescrições, as normas de superior hierarquia determinam não apenas a autoridade competente para a produção da norma inferior e o procedimento que deve seguir, mas também a matéria da qual pode tratar.

Com isso não queremos dizer que o direito positivo é um sistema estático, onde o conteúdo de todas as normas pode ser inferido a partir da norma fundamental.[13] Pelo contrário: não temos dúvida quanto ao seu caráter dinâmico.[14] De fato, a norma fundamental – pressuposta – não determina o conteúdo das demais normas que integram o direito positivo.

Todavia, isso não quer dizer que as demais normas do sistema, ao conferir competência para a produção de outras normas, não possam delimitar a matéria sobre a qual poderão versar. Kelsen, ao tratar desse tema, reconhece

(…) a peculiaridade que possui o direito de regular sua própria criação. Isso pode operar-se de forma a que uma norma apenas determine o processo por que outra norma é produzida. Mas também é possível que seja determinado ainda – em certa medida – o conteúdo da norma a produzir.[15]

É, portanto, qualidade comum a toda e qualquer norma jurídica o fato de ter sua produção condicionada ao que prescrevem outras normas.[16] Com base nessa premissa, podemos conceber o direito positivo como uma estrutura piramidal composta por uma série de normas de competência: no grau mais alto, normas de competência mais abstratas; no nível inferior, normas de competência mais concretas. Como observa Tácio Lacerda Gama:

Esse encadeamento de normas, visto de cima para baixo, liga normas de competência que programam como a norma inferior deve ser criada. Sob esta perspectiva dinâmica, a norma criada se converte em norma de competência, relativamente à inferior, e assim sucessivamente.[17]

Nos patamares mais altos da hierarquia normativa estão as normas gerais e abstratas e, nos graus mais baixos, as individuais e concretas.[18] Como observa Paulo de Barros Carvalho: “há uma forte tendência de que as normas gerais e abstratas se concentrem nos escalões mais altos, surgindo as gerais e concretas, individuais e abstratas e individuais e concretas à mediada que o direito vai se positivando”.[19]

Entretanto, é importante lembrar que as normas não se reproduzem sozinhas, havendo a necessidade do homem como elemento intercalar para que se dê a criação de novas normas. É de fundamental importância, portanto, que a norma superior determine a autoridade competente para produzir as normas inferiores.[20]

O ato de produzir novas normas, por sua vez, é o que se denomina aplicação. Como assevera Marcelo Neves: “(...) a aplicação normativa pode ser conceituada como a criação de uma norma concreta a partir da fixação do significado de um texto normativo abstrato em relação a um caso determinado”.[21]

Também Kelsen identifica o ato de aplicação do direito com o ato de produção normativa. Nas suas palavras:

Uma norma que regula a produção de outra norma é aplicada na produção, que ela regula, dessa outra norma. A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito. (…) É desacertado distinguir entre atos de criação e atos de aplicação do Direito. (…) todo ato jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior.[22]

Neste contexto, surge o seguinte questionamento: se aplicar uma norma é produzir outra norma, é possível falar em aplicação das normas localizadas nos níveis inferiores da pirâmide jurídica?

De fato, não há que se falar em aplicação, no sentido ora tratado, em situações como essas.[23] No final da cadeia normativa o que se verifica é apenas a execução ou observância da lei, ou seja, o cumprimento voluntário do mandamento legal ou sua imposição forçada, em caso de resistência.[24]

De igual forma, também não há que se falar em aplicação no grau mais alto da hierarquia normativa, onde se encontra a “norma hipotética fundamental”. Referida norma foi uma pressuposição lógico-transcendente[25] concebida por Hans Kelsen para garantir a unidade, e também a validade, do ordenamento jurídico. Como explica o autor:

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Dado que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma outra norma, este pressuposto tem de ser uma norma: não uma norma posta por uma autoridade jurídica, mas uma norma pressuposta. [26]

Em outras palavras: a norma hipotética fundamental consubstancia o fundamento último de validade do direito positivo, mas não é uma norma posta, apenas pressuposta. Como consequência, tem-se que a positivação da Constituição, com base nessa norma hipotética, não pode ser qualificada como ato de aplicação, na medida em que não há norma positiva que lhe dê fundamento.

4. Efetividade e eficácia

De acordo com Dicionário Houaiss de língua portuguesa, o vocábulo “incidir” pode ser utilizado no sentido de “refletir sobre”, “recair”, “atingir”, “afetar ou ter efeitos sobre”, dentre outros.

Partindo dessas acepções, é possível concluir que, ao falar de incidência normativa, estaremos necessariamente falando de produção de efeitos jurídicos. Antes, portanto, de discorrer sobre esse tema, é importante fazermos uma rápida digressão a respeito do que vem a ser eficácia.

Ao tratar desse tema, Marcelo Neves[27] defende a necessidade de se distinguir os conceitos de eficácia jurídico-dogmática e eficácia real ou empírica.[28]

Eficácia no sentido jurídico-dogmático é a possibilidade jurídica de aplicação da norma. A pergunta é se a norma preencheu as condições intra-sistêmicas para produzir seus efeitos jurídicos específicos.

Eficácia no sentido real, empírico ou sociológico diz respeito à conformidade das condutas dos destinatários à norma. A pergunta é se a norma foi realmente observada, aplicada, executada, imposta ou usada.

Com base nessas considerações, é possível afirmar, em princípio, que ao dizer que a norma produziu efeitos (incidiu), queremos significar que: (i) juridicizou um fato e desencadeou os efeitos previstos no seu conseqüente; ou (ii) foi cumprida voluntariamente (observância) ou imposta (executada).

Como se verá a seguir, as duas principais teorias a respeito da incidência normativa defendem que este fenômeno equivale à situação descrita no item (i), ou seja, juridização de fatos e constituição de relação jurídica. Entretanto, enquanto uns defendem que esta operação seria automática e infalível, outros a tomam como algo que depende de um ato humano (aplicação) para se verificar. É o que veremos a seguir com mais vagar.

4. Principais teorias sobre a incidência

4.1. Incidência como operação automática e infalível

Tradicionalmente, a doutrina trabalha com a noção de incidência como juridização automática e infalível do acontecimento social pela norma jurídica. Em outras palavras: no momento em que ocorre um fato social que preenche as características descritas no antecedente de uma norma jurídica, este é por ela juridicizado, desencadeando os efeitos correlatos:

A incidência da lei, pois que se passa no mundo dos pensamentos e nele tem de ser atendida, opera-se no lugar, tempo e outros “pontos” do mundo, em que tenha de ocorrer, segundo as regras jurídicas. É, portanto, infalível. (....) A incidência ocorre para todos, pôsto que não a todos interesse: os interessados é que têm de proceder, após ela, atendendo-a, isto é, pautando de tal maneira a sua conduta que essa criação humana, essencial à evolução do homem e à sua permanência em sociedade, continue a existir.[29]

Ou seja, os direitos e deveres prescritos pelo ordenamento são constituídos no momento em que ocorre o evento descrito no suposto das normas jurídicas.

Essa teoria parte da idéia de que o sistema jurídico e o sistema social são planos que se interligam. Com efeito, Pontes de Miranda, um dos principais percurssores desse posicionamento, concebe o direito como um fato social, significa dizer, como um fenômeno integrado ao sistema social, não como algo distinto dele. Nas suas palavras:

O mundo compõe-se de fatos jurídicos. Os fatos, que se passam no mundo jurídico, passam-se no mundo; portanto são. O mundo não é mais do que o total dos fatos e, se excluíssemos os fatos jurídicos, que tecem, de si-mesmos, o mundo jurídico, o mundo não seria a totalidade dos fatos. (…) O mundo jurídico está no conjunto a que se chama mundo.[30]

Incidência e aplicação, neste contexto, são coisas distintas e ocorrem em momentos diversos. Primeiro a norma incide, juridicizando o fato e fazendo nascer direitos e deveres correlatos. A aplicação pode ou não ocorrer em momento posterior. A aplicação caracteriza-se como um ato mediante o qual a autoridade competente formaliza os direitos e deveres já constituídos com a incidência, possibilitando, assim, o uso coercitivo para executá-los.

Desta forma, nada impede que o fato ocorra e torne-se jurídico com a incidência. Entretanto, a aplicação da norma depende de um ato de vontade humano.

4.2. Incidência como sinônimo de aplicação

Em sentido oposto àquele defendido pela teoria tradicional, Paulo de Barros Carvalho, partindo de referencial teórico distinto, defende que a incidência não é automática e infalível, dependendo da ação humana para ocorrer. Nas suas palavras:

(...) é importante dizer que não se dará a incidência se não houver um ser humano fazendo a subsunção e promovendo a implicação que o preceito normativo determina. As normas não incidem por força própria. Numa visão antropocêntrica, requerem o homem, como elemento intercalar, movimentando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e abstratas outras gerais e abstratas ou individuais e concretas e, com isso, imprimindo positividade ao sistema, quer dizer, impulsionando-o das normas superiores às regras de inferior hierarquia, até atingir o nível máximo de motivação das consciências e, dessa forma, tentando mexer na direção axiológica do comportamento intersubjetivo (...).[31]

 Sua teoria reconhece o sistema jurídico como integrante (subsistema) da heterogeneidade social, porém distingue os planos do direito positivo e da realidade social. O primeiro é formado exclusivamente por normas jurídicas e materializado em linguagem prescritiva; o segundo é onde se concretizam as relações intersubjetivas.

O plano do direito positivo, nesta concepção, é sintaticamente fechado, permitindo o ingresso de elementos exteriores (fatos sociais, econômicos etc) apenas quando relatados em linguagem competente, significa dizer, no código habilitado previamente pelo sistema.[32]

Portanto, para que um fato possa ser qualificado como jurídico, não basta que possua as características descritas na hipótese normativa. É necessário que seja descrito em linguagem jurídica, ingressando no ordenamento jurídico positivo, de forma a produzir as consequências correlatas.

Enquanto não houver o relato em linguagem competente, nada existe para o mundo do direito e, como consequência, nenhum efeito de ordem jurídica é constatado:

Ali onde houver direito, haverá sempre normas jurídicas e onde houver normas jurídicas haverá certamente uma linguagem que lhe sirva de veículo de expressão. Para que haja o fato jurídico e a relação entre sujeitos de direito, necessária se faz também a existência de uma linguagem: linguagem que relate o evento acontecido no mundo da experiência e linguagem que relate o vínculo jurídico que se instaura entre duas pessoas. E o corolário de admitirmos esses pressupostos é de suma gravidade, porquanto, se ocorrerem alterações na circunstância social, descritas no antecedente de regra jurídica como ensejadoras de efeitos de direito, mas que por qualquer razão não vierem a encontrar a forma própria de linguagem, não serão consideradas fatos jurídicos e, por conseguinte, não propagarão direitos e deveres correlatos.[33]

Com base nessas premissas, o autor defende que a incidência não é nem automática, nem infalível, dependendo do homem para se verificar. O que é automático e infalível é apenas a propagação de efeitos jurídicos, uma vez que o fato social é traduzido em linguagem competente. Como destaca Tácio Lacerda Gama:

(...) criar, transformar ou extinguir direitos, que surgem na medida em que estão constituídos em linguagem, requer produção de mais linguagem. Nada no direito acontece de forma automática. É insólita a idéia de normas sendo criadas ou se modificando por conta própria, como entes de vida própria. Uma vez aceita a premissa de que o direito é um conjunto de normas, que se manifestam em linguagem, não se pode conceber que acontecimentos sociais, destituídos de uma linguagem competente, promovam qualquer tipo de alteração a esse conjunto.[34]

Como consequência imediata, incidência e aplicação acabam se confundindo, pois, como assinalado, para incidir a norma tem que ser aplicada.

4.3. Considerações sobre essas teorias

Como é possível perceber, ambas as teorias aceitam o fato de que a incidência é automática e infalível, divergindo apenas quanto ao momento em que isso ocorre. Para a teoria de Pontes de Miranda, verificada a ocorrência descrita na hipótese normativa, instauram-se os efeitos jurídicos a ela correspondentes de forma automática e infalível. Na teoria de Paulo de Barros Carvalho, os efeitos só se propagam, automática e infalivelmente, após o relato do acontecimento em linguagem competente.

São dois pontos de vistas possíveis sobre o tema, que decorrem de modos diversos de compreender o direito. Apesar de essas idéias partirem de sistemas de referência diversos, não nos parece impossível compatibilizar os dois posicionamentos.

Tácio Lacerda Gama, em importante estudo sobre a competência tributária, assinala que a distinção entre observadores e participantes é decisiva para a superação de conflitos dessa ordem. No seu entender, as divergências entre teorias são apenas em verdade, “conflitos de pontos de vista”.[35] É o que explicaremos melhor a seguir.

6. A distinção entre observadores e participantes

A distinção entre observadores e participantes já foi posta em destaque por Hans Kelsen[36] quando se propôs a analisar os diferentes modos de interpretar as normas jurídicas. Para o autor, a interpretação do direito pode ter dois objetivos: criar novas normas jurídicas ou formular propostas descritivas, oferecendo informações racionais acerca dos conteúdos normativos. No primeiro caso, fala-se em interpretação autêntica; no segundo, em não autêntica.

Em outras palavras: os intérpretes autênticos seriam as pessoas que integram o sistema e respondem pela sua aplicação/movimentação; os não autênticos são os intérpretes que estão fora do ordenamento e que se limitam a descrever as normas, sem que o resultado seja a produção de uma outra norma jurídica.

De igual forma, Herbert Hart[37] distingue os sujeitos que estão dentro e fora do direito, denominando-os, respectivamente, participantes e observadores. Como destaca Tácio Lacerda Gama:

Os participantes seriam órgãos do sistema de direito positivo que interpretam e aplicam normas, produzindo, assim, mais normas. Esses sujeitos positivam suas interpretações. Já os observadores, diversamente, expõem aquilo que entendem da leitura dos textos legais. Fixam conceitos, classificações e sugerem como deve ser entendida uma norma. Ao fazer isso, produzem doutrina, ciência jurídica, não direito positivo.[38]

No entender desse autor, essa distinção é crucial para a adequada compreensão do ordenamento jurídico e, em especial, para explicar os conflitos que se verificam na doutrina acerca de temas como validade das normas jurídicas, antinomias etc.

Com efeito, não há dúvida quanto à divergência de propósitos entre os que participam do direito e aqueles que simplesmente o observam, sem positivar suas interpretações. Justamente por cumprirem funções distintas é que esses discursos em nada se confundem. [39]

7. Conclusão: o tema da incidência sob a perspectiva dos participantes e observadores

Como destacado linhas atrás, Pontes de Miranda sempre defendeu que incidência e aplicação eram fenômenos distintos. De acordo com seus ensinamentos, a incidência da norma jurídica se consubstanciaria na juridização do fato social, no momento em que este ocorre, propagando-se imediatamente os efeitos jurídicos correlatos.

Como se vê, o autor não processa a idéia de que o ordenamento jurídico é um sistema autopoiético, que regula sua própria criação e transformação, ou seja, determina quais os requisitos para que determinado elemento passe a integrá-lo. Sob essa perspectiva, não há como admitir a juridização automática do fato social.

Paulo de Barros Carvalho, em contrapartida, defende que a incidência da regra – constituição do fato jurídico – só ocorre com a aplicação da norma jurídica, ou seja, por meio da ação humana. A produção de efeitos jurídicos correlatos exige linguagem competente.

Entretanto, esta concepção não alcança, por exemplo, os casos de observância voluntária da norma jurídica. Como explicar as situações em que os comandos prescritivos são cumpridos pelos destinatários, sem que ocorra a constituição de uma relação jurídica individualizada?

Partindo da distinção entre observadores e participantes já mencionada, nos parece possível compatibilizar esses dois posicionamentos, de forma a não deixar de lado nenhum dos aspectos do fenômeno jurídico.

A incidência automática e infalível de que trata Pontes de Miranda seria, neste contexto, é a perspectiva do observador do sistema. Quem está fora do ordenamento jurídico cumpre os mandamentos jurídicos sem que seja necessária a produção de uma outra norma que constitua essa relação individual.

O ponto de vista defendido por Paulo de Barros Carvalho, por outro lado, pode ser qualificado como a perspectiva do participante. Quem atua dentro do ordenamento jurídico só pode julgar como relevante aquilo que foi traduzido em linguagem competente. Num ordenamento jurídico positivo como o nosso, os fatos só passam a integrá-lo quando preenchem os requisitos prescritos pelo próprio sistema para tanto.

Neste contexto, não haveria um único conceito de incidência, mas apenas concepções que partem de pontos de vista distintos sobre o mesmo tema. Para os observadores, a simples ocorrência do fato social – que preenche as características prescritas no antecedente da norma jurídica – é suficiente para que ela incida. Para os participantes, a incidência da norma só se verifica quando se descreve o fato em linguagem jurídica, constituindo-se os respectivos efeitos.

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