Por uma nova Constituição para o Brasil

30/03/2016 às 17:23
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O autor defende que a nossa Constituição atual está ultrapassada, dialogicamente distante da evolução social. Seus valores estão dispersos ante as constantes modificações por emenda ou pelas decisões do STF, que tem reescrito vários dos seus dispositivos.

POR UMA NOVA CONSTITUIÇÃO PARA O BRASIL (em homenagem ao brasilianista e querido amigo Stéphane Monclaire)

                                                     Desde a sua Independência, o Brasil conheceu diversos processos constituintes, isto é, vários conjuntos de sequências encadeadas que levaram à promulgação de uma nova Constituição. Seguramente, o último dos processos constituintes, aquele do qual resultou a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, foi o mais complexo e o mais rico do ponto de vista científico e da arqueologia constitucional. Para diferençar dos demais, basta destacar sua enorme duração. Como lembrava Stéphane Monclaire, um amigo brasilianista francófono, nunca, no Brasil, um processo constituinte fora tão longo, e este recorde é válido, sem dúvida, para todo o continente sul-americano. Os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) se estenderam por 613 dias, do dia 1° de fevereiro de 1987 até o dia 5 de outubro de 1988, totalizando 2.676 horas e 16 minutos de sessão plenária (duração de horas que não leva em conta o tempo – mais considerável ainda – passado em comissões, em reuniões preparatórias, em grupos informais de trabalho ou de negociação).

                                                     “Parido” o texto constitucional, com os vícios da falta de um referendo popular para o seu início de vigência, a elite política dominante passou logo a adjetiva-la como a “Constituição Cidadã”, jogando para “debaixo do tapete” da história a sujeira e os vícios de sua legitimação. A Constituição, genealogicamente, serviu para arremedar interesses dispersos e diversificados de grupos conservadores, instituições religiosas, entidades civis e militares, políticos desonestos etc.

                                                     Na época da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), esse meu amigo Stéphane Monclaire, professor recém contratado da Universidade de Sorbonne, resolveu vir ao Brasil para centrar suas pesquisas nos trabalhos de elaboração da nova Constituição. Ele detinha provavelmente a mais ampla documentação, depois do Congresso, sobre a Assembleia Nacional Constituinte. Emprego os verbos no passado porque Monclaire faleceu semana passada, em terras brasileiras, vítima de um AVC.                                               

                                                     A morte de Monclaire coincide com a morte da nossa Constituição. Se ela já não era a Constituição desejada, e nem muito menos lhe caberia a expressão enganadora de “Constituição cidadã”, agora o STF terminou por ditar para o coveiro o seu epitáfio: - O seu texto, de nada vale, diante de nossa interpretação!

                                                     É primário imaginar que temos a Constituição arquetipada pela Assembleia Nacional Constituinte. Quase nada sobrou do texto originário. Em 18 de fevereiro último, foi promulgada a 91ª (nonagésima primeira) emenda (que autoriza a desfiliação partidária sem prejuízo da perda do tempo).  Em suma, ela foi emendada 91 vezes e algumas destas emendas modificaram simultaneamente vários artigos. Foi o caso da emenda 45, de dezembro de 2004, que alterou de uma só vez 25 artigos! Há também emendas que modificam emendas anteriores.

                                                     Além disso, algumas interpretações jurisprudenciais de dispositivos constitucionais são muito distantes do significado que a maioria da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) lhe emprestava. Assim o texto em vigor hoje é bem diferente da Carta promulgada em 5 de outubro de 1988. 

                                                     “Cidadã” a Constituição nunca foi. Não foi o cidadão o beneficiário direto do texto constitucional. Nem mesmo pode se dizer que a sua normatividade garante o exercício da cidadania. Veja-se, por exemplo, a quimera dos artigos 196 e 225: “a saúde é direito de todos e dever do Estado”; “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Estes artigos divulgam representações coletivas, de forte impacto simbólico, apenas. O texto de 88 também trouxe de concreto benefícios diretos ou implícitos a certos grupos políticos e autoridades. O foro privilegiado foi um deles. É de se lembrar ainda, por exemplo, a figura do presidente da República de então, José Sarney, beneficiário direto de um artigo que institui e regulamenta as medidas provisórias, e de outro artigo que fixava a duração do mandato dele.

                                                     O Professor Monclaire, como excelente pesquisador, mapeou na Constituição que se redigia o lobby de grupos legítimos, mas também de elites setoriais e regras de jogo que marginalizaram os cidadãos.

                                                     Certos setores lobistas assumiram plenamente essa condição. Apenas para dar dois exemplos: a) com mérito, o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar - DIAP, credita a si a formulação inicial do que viria a ser o capítulo dos Direitos Sociais e outras vantagens dos trabalhadores na Constituição de 1988; b) a Igreja católica (CNBB) se uniu aos evangélicos (CONIC) na redação do artigo 226 da Constituição, relativo à formação da família.

                                                     Independentemente a quem seja creditada a genealogia dos diversos dispositivos constitucionais, é de se dizer que a Constituição morreu. Seja pela evolução social e política, seja pela desatualização jurídica, o seu texto não mais orienta ninguém, nem mesmo ao seu orgânico defensor maior, o Supremo Tribunal Federal.

                                                                  É que, nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem se arvorado da condição de “dono da Constituição”, com o direito de reescrevê-la a seu bel prazer. Essa postura autoritária cria enorme insegurança jurídica, agride o bom senso, fere os bons sentimentos democráticos e republicanos e gera insustentável insegurança jurídica.

                                                     É bem verdade que tem prevalecido aqui no Brasil a teoria da mutação informal constitucional, do alemão Georg Jellinek. Segundo o alemão, o caráter dinâmico do corpo social exige dinamicidade do ordenamento jurídico e do sistema jurisdicional — sobretudo do órgão encarregado da guarda da Constituição, aproximando Direito e Justiça.

                                                     Talvez seja imbuído desse arrimo que o STF tem jogado na lata do lixo vários artigos da nossa Constituição. Certos preceitos da Separação de Poderes, como o da competência da Câmara e do Senado para a perda do mandato em caso de crimes praticados pelo Parlamentar foi reescrito pelo STF. Posso citar três outros casos que deixam bem evidentes a modificação do texto constitucional...

                                                     Uma delas, mais recente, ignorando os Tratados Internacionais recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro, e a previsão expressa em nossa Constituição (art. 5º, LVII, CF), que garantem o princípio da presunção de inocência (ou de não culpabilidade), o STF passou a negar sua vigência, autorizando a execução antecipada de decisões condenatórias (art. 5º, LVII), mesmo pendentes recursos aos Tribunais Superiores.

                                                     Noutra, da mesma semana, por 9 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal decidiu ser constitucional a Lei complementar 105/2001, que permite aos órgãos da administração tributária quebrar o sigilo fiscal de contribuintes sem autorização judicial, revogando a garantia constitucional do sigilo de dados, contida no inciso XII do art. 5º. Inclusive essa nova decisão foi uma modificação da jurisprudência da própria Corte, que em 2010 entendeu ser inconstitucional a quebra de sigilo pelo fisco sem autorização judicial.

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                                                     Mais remotamente, no julgamento das ADPF 132/RJ e ADIn 4.277/DF, o Supremo havia reescrito outro artigo da Constituição. Naquela ocasião, o STF decidiu, com acerto, que a união homoafetiva perfaz uma entidade familiar, diferentemente do que dizia o §3º do art. 226 da Constituição, que só a reconhecia entre homem e mulher. Foi revogado,  com o julgamento do Supremo, o texto que tinha o lobby conservador das igrejas.

                                                     O perigo se assoma maior ainda porque o STF tem reescrito a Constituição por casuísmo, fazendo uma adaptação constitucional ao momento social. As interpretações têm sido canhestras, ao sabor da pressão midiática e social. A balança de suas decisões pende em favor do grito da mídia, mais das vezes dotada de parcialidade e insensatez.

                                                     Relembrando a fala de Ulisses Guimarães ainda na criação da Constituinte de 1987, um povo só se autodetermina politicamente pela democracia. O caminho histórico e universal indicado pela honestidade política e trilhado pelos democratas sinceros e coerentes é a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, proposta urgente, institucional e salvadora para o país, que duela internamente entre o retrocesso institucional e a esperança de novos fundamentos principiológicos para o Estado.

                                                     Precisamos urgentemente reinstalar uma Constituinte e fazer uma campanha pela reconstitucionalização do país. É preciso proclamar a soberania da Constituição e reafirmar o povo como sua fonte legítima.

                                                     Uma pena que meu amigo Monclaire tenha falecido. Ele se debruçaria sobre os elementos que supedaneariam a elaboração de uma nova Constituição. Amava o Brasil mais do que muitos de nós brasileiros. Morreu vítima de um AVC, em Cuiabá, assoberbado de trabalho e de estudos em torno da nossa atual crise política. Estafou de tantas pesquisas! Fará uma falta danada aos seus amigos. Ele esteve em Mossoró por três anos consecutivos, a meu convite, brindando a comunidade jurídica com suas palestras. De certa feita, em visita a ele, em Paris, sentado no chão do seu apartamento entre alguns amigos, recebi dele a maior demonstração de amor pelo Brasil. Compenetrado, crente nas nossas instituições, defenestrou De Gaulle, e disse a mim, com seu sotaque característico: - Marcos, o Brasil é um país sério e de futuro, apenas alguns políticos não o merecem!

                                                     Ave, Monclaire! Descanse em paz!


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Sobre o autor
Francisco Marcos de Araújo

Professor universitário e advogado. Mestre em Direito Constitucional e Pós-Graduado em Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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