RESUMO
O objetivo do trabalho é o debate, a reflexão sobre o meio eficaz de obtenção de prova na delação premiada no Crime de Organização Criminosa que tanto despertam interesse na atual conjuntura e de interesse dos operadores do direito. Assim, pretendo clarear as vantagens do delator com as circunstâncias que lhes são favoráveis em relação ao processo e ao procedimento.
A atual e crescente valorização do tema, como meio de obtenção de provas no Direito Penal brasileiro, veremos como vem funcionando na prática o dispositivo legal de se atingir a persecução estatal, diminuindo a impunidade, principalmente nos crimes de colarinho branco.
Veremos o premente e relevante interesse do aprimoramento da lei penal incriminadora no sentido de frear a crescente onda de corrupção de assola o país.
Faremos uma analise das leis em vigor que tratam da matéria, especificamente na Lei das Organizações Criminosas onde é de difícil persecução probatória tendo em vista a participação cada vez maior de agentes públicos nos crimes chamados de “colarinho branco”, Crime Organizado, Lei 12.850 de 2 de agosto de 2013 e controvérsias sobre a importância e conveniência da presente política criminal.
Analisaremos como outros Estados estrangeiros lidam com o tema quanto ao conceito e natureza das diferentes medidas disponíveis no ordenamento atinentes à agilização dos procedimentos da justiça contemporânea.
Palavras-chaves: tipificação, benefícios da colaboração premiada, resultado, corrupção, agentes políticos, impunidade, persecução penal, acordo de colaboração e eficácia.
SUMÁRIO
Resumo
1. INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11
2. CONCEITO ................................................................................................................14
3. A ÉTICA E MORAL ...............................................................................................20
4. DELAÇÃO E O DIREITO ........................................................................................28
5. PREVISÃO NORMATIVA .....................................................................................34
6. O DIREITO AO SILÊNCIO E A MOTIVAÇÃO DA COLABORAÇÃO...............39
7. EFICÁCIA OBJETIVA DA COLABORAÇÃO PREMIADA E OS
DIREITOS DO COLABORADOR ........................................................................49
7.1 PRÊMIO DA DELAÇÃO ...................................................................................55
7.2 DELATOR ARREPENDIDO .............................................................................56
7.3 PUBLICIDADE DA DELAÇÃO .......................................................................57
7.4 PROVA DE CORROBORAÇÃO .....................................................................57
8. CONCLUSÃO .........................................................................................................58
9. REFERÊNCIAS ......................................................................................................63
1. INTRODUÇÃO
Antes de tudo temos que ter em mente a definição mais atual de que vem a ser Organização Criminosa, a evolução do crime organizado, as principais características e o que vem a ser colaboração premiada.
O conceito mais moderno de Organização Criminosa é complexo e longe de ser uma unanimidade entre os doutrinadores assim como é a própria atividade criminosa no cenário em que atua. O conceito legal adotado pelo legislador de acordo com o art. 1º, da Lei 12.850 de 2013 é o seguinte: “considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a pratica de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.
O doutrinador Guilherme de Souza Nicci ainda traz 5 (cinco) elementos fornecido pelo conceito legal para bem dirimir quaisquer dúvidas ou lacunas existentes[1].
{C}1) {C}Associação de quatro ou mais indivíduos para caracterizar organização criminosa é questão de política criminal, pois sabemos que a partir de duas pessoas é plenamente aceitável a divisão de tarefas e a busca de um objetivo comum ilegal. É o que observamos na Lei Antidrogas, 11.343 de 2006, onde o legislador optou por classificar em seu art. 35 a associação de dois ou mais indivíduos para o fim de praticar reiteradamente, ou não, os crimes previstos nos arts. 33 e 34 (tráfico).
É preciso observar também, que o legislador alterou o art. 288 do Código Penal, por meio da Lei 12.850/2013, eliminando-se o título quadrilha ou bando e acrescentando-se associação criminosa.
Portanto temos uma total falta de uniformidade infelizmente quanto aos números de integrantes nos referidos ditames legais, ficando duas pessoas para a Lei Antidrogas, mínimo de três para o Código Penal e quatro para Organização Criminosa.
{C}2) {C}Estruturalmente ordenada: é necessária uma organização mínima, coordenada, com disciplina, hierarquia, subordinação, subdivisões, chefias e chefiados, com possibilidades de ascensão disciplina.
{C}3) {C}Divisão de tarefas; não há necessidade de um formalismo exato, com registro escrito ou contabilizado, basta uma clara divisão de tarefas, cada um na organização com suas respectivas funções, metas ou objetivos, pois como se trata de organização criminosa e regra é que não haja aspecto formal fins dificultar toda ou qualquer investigação.
{C}4) Obtenção de vantagem de qualquer natureza: nada mais claro em uma organização criminosa do que o objetivo de obtenção de vantagem, que podemos entender como ganho, lucro, proveito, vantagem ou privilégio. A regra nem sempre é o lucro, com bem define Bitencourt e Bussato[2]: “sustentamos que a vantagem de qualquer natureza, elementar do crime de participação em organização criminosa, pelas mesmas razões, não precisa necessariamente ser de natureza econômica.”
O legislador de forma inteligente deve ter optado em utilizar o termo “de qualquer natureza” para evitar uma limitação do seu alcance e assim andou bem.
{C}5) {C}Mediante a pratica de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) ano: neste ponto andou mal nosso legislador, pois restringiu seu alcance. Não podemos deixar de criticar a limitação imposta, é clara manifestação de política criminal, que não atende a realidade brasileira, pois, como vemos todos os dias em noticiários nacionais, o que mais tem incomodado os brasileiros é a corrupção.
Para termos ideia da limitação imposta podemos trazer a pena imposta para o crime de associação criminosa do art. 288 do Código Penal, cuja a pena máxima em abstrato é de 3 anos de reclusão, como outros de não menor importância como os Crimes contra a Administração Pública que destacamos o Peculato Culposo, Peculato Mediante Erro de Outrem, Emprego Irregular de Verbas ou Rendas Públicas, Prevaricação e etc, todos do Código Penal que ficaram fora do controle da referida Lei do Crime Organizado.
Em compensação agiu corretamente quanto ao termo “infração penal”, em lugar de crime, podendo atingir, em tese, não só crimes como também contravenções penais. Contudo, inexiste contravenções com pena máxima superior a quatro anos, tornando o conceito de organização criminosa, na prática, limitada aos crimes em si.
Como visto é por óbvio que possamos imaginar, e a realidade não nos deixa falsear, que a existência de organizações criminosas voltadas à pratica de jogos de azar (contravenção penal) ou furto simples (pena máxima de quatro anos) estão em plena operação e podem abstratamente não serem classificados no ditame legal.
{C}6) {C}Mediante a pratica de infrações penais de caráter transnacional: independentemente da natureza da infração penal (crime ou contravenção) e da pena máxima em abstrato, caso transponhamos as fronteiras brasileiras, tanto a entrada como o inverso, é classificado como Organização Criminosa[3].
No mais a nova Lei deixou de ser “apenas” uma forma de se praticar crimes para se tornar delito autônomo, punido com reclusão de 3 a 8 anos[4].
No entendimento de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, o bem jurídico tutelado é, como em todo associação criminosa, é a paz pública.
O crime quanto ao sujeito ativo, é comum (dispensando qualidade ou condição especial do agente), plurisubjetivo (de concurso necessário) de condutas paralelas (uma auxiliando as outras), estabelecendo o tipo incriminador a presença de, no mínimo, quatro associados, computando-se eventuais inimputáveis ou pessoas não identificadas, bastando prova no sentido de que tomaram parte na divisão de tarefas estruturadas dentro da organização.
Como vítima, temos a sociedade.
O dolo é essencial, sendo imprescindível animus associativo, aliado ao fim específico de obter direta ou indiretamente vantagem de qualquer natureza mediante a pratica de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos ou de caráter transnacional, não importando como já dito, a pena máxima em abstrato prevista no tipo.
2. CONCEITO
O termo delação deriva do latim delatione e significa a ação de denunciar, revelar. Já o termo premiada se deve ao fato de o legislador conceder prêmios ao delator que colabora com as autoridades[5].
Pode ser também denominada como sendo uma afirmação feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, e pela qual, além de confessar a autoria de um fato, igualmente atribui a um terceiro a participação na atividade criminosa[6].
É o “dedurismo”[7] oficializado, que, apesar de moralmente criticável, é incentivado em face do aumento contínuo da criminalidade no país. Assim, é um mal necessário[8], enquanto forma mais eficaz de se acabar com as organizações criminosas, bem como com quadrilhas hoje existentes.
No Brasil, os benefícios concedidos ao delator podem ir desde uma redução de pena até mesmo a própria extinção de punibilidade, dependendo de cada legislação. Deve-se atentar sempre para os ditos problemas que ainda assombram referido instituto, de forma que deve ser clara a sua aplicação.
Quanto à natureza jurídica do instituto, há grande discussão, devido à omissão, mesmo com a existência de tantas leis, inclusive do próprio Código de Processo Penal, que fazem uso da delação.
A doutrina e a jurisprudência entendem que a delação premiada pode ser admitida como um meio de prova, o que significa que a delação só adquire valor probatório quando o acusado, além de imputar à alguém a prática de determinado crime, também confessa sua participação nele, caso contrário acaba sendo um mero testemunho[9] .
Difícil é definir qual seja realmente a natureza jurídica desse instituto, na medida em que a lei, ao estabelecer regras para a concessão de benefícios, não mostra com clareza as demais características relevantes para a aplicação do instituto. Isto porque, o legislador usou diversas expressões para tratar da delação, nas várias legislações, o que, em um primeiro momento, dificulta ainda mais a ubiquação sistemática[10].
Para outros autores[11], a delação tem sua natureza jurídica decorrente do consenso, uma variação do princípio da legalidade, sendo permitido às partes que entrem em um consenso sobre o destino do acusado que, por qualquer motivo, concorda com a imputação que lhe será determinada, tendo em vista que está disposto a revelar dados de extrema importância às autoridades.
Em face da ausência de uma legislação mais específica ao instituto, a sua natureza jurídica se mostra, muitas vezes, difícil de ser decifrada, em função do grande número de dispositivos que utilizam a delação como medida de auxílio para o Estado.
A delação premiada, desde os tempos mais primórdios, já era um mecanismo aceito como grande auxiliador no combate àqueles que quisessem contrariar o Poder Maior. Foi instituída no século 19, pelo jusfilósofo Rudolf Von Ihering, como instrumento para se desvendar crimes para os quais o Estado, em razão da modernidade desses delitos, se mostrava impotente para tanto. Em 1853, o jurista alemão escreveu:
“Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade ou arbítrio. Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio, mas sobretudo no interesse superior da coletividade[12].”
A delação teve grande ápice quando do surgimento das Ordenações Filipinas, que, na sua parte criminal, apareceu no Livro V, que vigorou de janeiro de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830[13].
No título VI do referido Código Filipino, em que estava definido o “crime de lesa majestade”, tratava-se da delação. Já no Título CXVI, cuidava-se especificamente do assunto, sob o título “Como se perdoará os malfeitores que derem outros à prisão”, constando, inclusive, como prêmio aos sujeitos o perdão[14] .
A delação, fora do Brasil, servia como importante instrumento de combate às organizações criminosas existentes na Itália (pattegiamento), por exemplo, onde o foco maior se encontrava junto aos setores político e econômico. Eram as chamadas máfias italianas, cuja ascensão ocorreu no fim dos anos sessenta. Não foi diferente nos Estados Unidos. Instituída após a Segunda Guerra Mundial, a delação premiada (bargain) passou a ser utilizada em razão dos seus resultados eficientes.
Prevista em nosso ordenamento desde 1990[15], a delação adquiriu novos rumos no combate à criminalidade, tendo sido modificada ao longo dos anos, principalmente no que tange aos prêmios concedidos para aqueles que colaborassem com as autoridades[16], devendo ser observado o tamanho dessas colaborações em cada caso concreto.
O instituto da colaboração premiada, mesmo que contando com diversas denominações, como “delação premiada (ou premial)”, “chamamento do corréu”, “confissão delatória”, “extorsão premiada”, “cooperação processual”, ocorre quando o acusado, ainda na fase de investigação criminal, além de assumir sua autoria nos crimes praticados, evita que outras ações delituosas venham a ser cometidas, assim auxilia concretamente os agentes investigadores na sua atividade de recolher provas contra os demais agentes criminosos que participaram da atividade criminosa.
Há ainda quem defenda diferença entre colaboração premiada e delação premiada (chamamento de correu) como Renato Brasileiro de Lima[17].
Defende o referido doutrinador que a colaboração premiada teria maior abrangência[18], o imputado, no curso da persecutio criminis, pode assumir a culpa sem incriminar terceiros, fornecendo, por exemplo, informações acerca da localização de produtos do crime, caso em que é tido como mero colaborador.
Pode por outro lado assumir a culpa sem incriminar terceiros e delatar outras pessoas, nessa hipótese é que se fala em delação premiada (ou chamamento de correu)[19].
Só há falar em delação se o investigado ou acusado também confessou a autoria da infração penal. Do contrário, se a nega, imputando-a a terceiro, tem-se simples testemunho.
Por conclusão teremos que a colaboração premiada funciona, portanto, como gênero, do qual a delação premiada seria espécie[20].
É bem verdade que a doutrina e jurisprudência vem adotando com freqüência a expressão delação premiada, contudo, no nosso entender o uso de colaboração premiada nos parece mais moderna para o contextualizarmos todo o que representa o instituto na Lei 12.850/13.
Podemos citar também o conceito firmado no Superior Tribunal de Justiça:“O instituto da delação premiada consiste em ato do acusado que, admitindo a participação no delito, fornece às autoridades informações eficazes, capazes de contribuir para a resolução do crime.” O conceito é da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aplicado no julgamento do HC 90.962.
Segundo o entendimento do colegiado, não basta que o investigado confesse sua participação no crime. Ainda que conte detalhes de toda a atividade ilícita e incrimine seus comparsas, ele só fará jus aos benefícios da delação premiada se suas informações forem efetivamente eficazes para a resolução do delito.
No caso apreciado, o colegiado entendeu não haver nos autos qualquer informação que atestasse que a contribuição do paciente foi utilizada para fundamentar a condenação dos outros envolvidos. Assim, foi reconhecida apenas a atenuante da confissão espontânea.
Em outra oportunidade, no julgamento do HC 84.609, a Quinta Turma se pronunciou a respeito da aplicação conjunta dos benefícios da confissão espontânea e da delação premiada. O Habeas Corpus foi interposto contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que afastou a aplicação da redução de pena prevista no artigo 14 da Lei 9.807/99 (delação premiada) sob a justificativa de já ter sido aplicada a atenuante da confissão espontânea na adequação da pena.
A relatora, ministra Laurita Vaz, determinou que o tribunal de origem rejulgasse a apelação para que, afastada a impossibilidade da aplicação simultânea, fosse analisada a existência dos requisitos para a concessão do benefício.
“Ante a impossibilidade de valorar os elementos colhidos durante a fase policial, bem como aqueles obtidos durante a instrução processual, na estreita via do habeas corpus, é o caso de se determinar seja procedida nova análise do pleito pelo Tribunal de Justiça”, concluiu a ministra.
Dentro do tema, Renato Brasileiro de Lima cita Vladimir Aras que define em quatro subespécies de colaboração premiada:
{C}1) {C}delação premiada (chamamento de correu): além de assumir o crime praticado, traz para si os demais participes ou corréus, motivo pelo qual é denominado de agente revelador;
{C}2) {C}colaboração para libertação: o chamado colaborador indica o lugar onde a vítima pode ser encontrada para que seja libertada;
{C}3) {C}colaboração para localização e recuperação de ativos; o colaborador fornece dados para a localização do produto ou proveito da ação delituosa e de bens eventualmente submetidos a esquemas de lavagem de capitais;
{C}4) {C}colaboração preventiva: o colaborador presta informações relevantes aos órgãos estatais responsáveis pela persecução penal de modo a evitar um crime, ou impedir a continuidade ou permanência de uma conduta ilícita.
A Lei 12.850 de 2013, nesse ponto faz inequívoca opção em utilizar a expressão “colaboração premiada”, ao invés de fazer referencia a expressão “delação premiada”.
O legislador optou por fazer menção a essa importante técnica especial de investigação com o nomen iuris de “colaboração premiada” , quer no art. 3º, I, quer na seção I do Capítulo II, que abrange os art. 4º, 5ª, 6º e 7º.
3. A ÉTICA E MORAL
O instituto da colaboração premiada sofre críticas de uma pretensa imoralidade ou atentado à ética do Estado por estimular a delação[21].
Entre as críticas trazemos comentário de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, no livro Crime Organizado, citando palavras de Luiz Rascovski, de que o princípio da proporcionalidade estaria maculado, posto que ensejaria a aplicação de sanções diversas àquelas que perpetraram o mesmo crime[22]. Invadiria outrossim a competência jurisdicional do magistrado, por ser a colaboração oriunda de um acordo celebrado entre Ministério Público e a defesa.
Mais do que isso, atentaria contra os princípios da ampla defesa e do contraditório[23], posto que subtrairia do Poder Judiciário a possibilidade de julgar o feito. Diz-se, ainda, que enfraqueceria o trabalho de investigação policial, que não mais se empenharia na elucidação dos delitos, antes a facilidade advinda da colaboração[24].
A nosso ver tal entendimento não merece crédito, pois não existe nada mais antiético que o próprio crime em si, pois a pratica do delito já é por si só uma adulteração de tudo que seja ético, moral ou aceito por uma sociedade moderna, democrática regida pelo direito e civilizada.
A colaboração premiada é indispensável no âmbito da criminalidade organizada, e os ganhos que podem daí advir superam em muito, os inconvenientes apontados por aqueles que criticam a delação como forma de se obter provas para a persecução penal.
Nesse sentido o colaborador deixe de cometer crimes e passa a colaborar com o Estado para minorar seus efeitos, evitar sua perpetuação e facilitar a persecução, corroborando com o entendimento que a colaboração nada mais é do que uma confissão, do entendimento de ser por parte do beneficiado um arrependimento eficaz e da reparação do dano, nada havendo ais de imoral (TRF2, HC 20030201015554-2, Maria Helena Cisne, 1º T, . 06/10/2004).
Destacamos também, de plano, argumento que nos parece fundamental para o correto enfrentamento da questão que o fato de que a colaboração premiada pressupõe, para sua admissão, a voluntariedade do agente, como se vê no “caput” do artigo 4º da Lei 12.850 de 2013.
Sob o ponto de vista ético e moral, não podemos deixar de registrar que parte da doutrina posiciona-se contrária a delação premiada, denominando-a como, por isso, de extorsão premiada. Nesse sentido, segundo Natália Oliveira de Carvalho, ao preconizar que a tomada de uma postura infame (trair) pode ser vantajosa para quem o pratica, o Estado premia a falta de caráter do codelinquente, convertendo-se em autentico incentivo de antivalores ínsitos à ordem social[25].
Sem embargos de opiniões e em sentido contrário, como já externado anteriormente, parece-nos nada antiético ou haver qualquer violação, nem tampouco à moral, pois há de prevalecer no caso a capital importância no combate à criminalidade, porquanto se presta ao rompimento do silêncio mafioso (omertá), além de beneficiar o acusado colaborador como também passamos a entender como todo o iter criminis ocorreu.
No mais falar, em ética de criminoso é algo extremamente contraditório, sobre tudo se considerarmos que tais grupos, à margem da sociedade, não só tem valores próprios, como também desenvolvem suas próprias leis. Como lembra Cassio Granzinoli, “ não é incomum a chefes de grupos de tráfico de drogas, por exemplo, determinarem (por vezes e por telefone e de dentro dos próprios presídios onde cumprem penas) a execução de outros membros do grupo ou mesmo de pessoas de bem.
Estarão eles, pois, preocupados com Ética, Moral, Religião e qualquer outra forma de controle social, diversa do Direito? Certamente que não[26].
Mesmo, sob certo aspecto, a existência da colaboração premiada representar o reconhecimento, por parte do Estado, de sua incapacidade de solucionar spnte própria todos os delitos praticados, a doutrina aponta razões de ordem prática que justificam a adoção de tais mecanismos, a saber: a) a impossibilidade de se obter outras provas, em virtude de “lei do silencio” que vige no seio das organizações criminosas; b) a oportunidade de se romper o caráter coeso das organizações criminosas (quebra da affectio societatis), criando uma desagregação da solidariedade imposta a todos os componentes da organização em face da possibilidade da colaboração premiada, onde o colaborador vê a possibilidade ter uma redução da pena aplicada.
Não podemos deixar de citar os prós e contras do dispositivo questionado, e a pergunta que se faz: é legítima e aceitável essa forma de incentivo legal à prática da delação?
São pontos negativos da colaboração premiada:
{C}a) {C}oficializa-se, por lei, a traição, forma antiética de comportamento social;[27]
{C}b) {C}pode ferir a proporcionalidade na aplicação da pena, pois o delator recebe a pena menor que os delatados, autores de condutas tão graves quanto a deles – ou até mais brandas;
{C}c) {C}a traição, como regra, serve para agravar ou qualificar a pratica de crimes , motivo pelo qual não deveria ser útil para reduzir a pena;
{C}d) {C}não se pode trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos;
e) a existente delação premiada não serviu até o momento para incentivar a criminalidade organizada a quebrar a lei do silêncio, regra a falar mais alto no universo do delito;
f) o Estado não pode aquiescer em barganhar com a criminalidade;
g) há um estímulo a delações falsas e um incremento a vinganças pessoais.
Em contra partida são pontos positivos na delação premiada:
a) no universo criminoso, não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevados, dada a própria natureza da prática de condutas que rompem as normas vigentes, ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado;
b) não há lesão a proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber penas mais agravantes. O delator, ao colaborar com a persecução penal, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode receber sanção menos grave;
c) o crime praticado por traição é grave, justamente porque o objetivo almejado é a lesão a um bem jurídico protegido; a delação seria a delação com bons propósitos, agindo contra o delito e em favor do Estado Democrático de Direito;
d) os fins podem ser justificados pelos meios, quando estes forem legalizados e inseridos, portanto, no universo jurídico;
e) a ineficiência atual da delação premiada, condiz com o elevado índice de impunibilidade reinante no mundo do crime, bem como ocorre em face da falta de agilidade do Estado em dar efetiva proteção ao réu colaborador;
f) o Estado já está barganho com o infrator, fato esse que não é novidade no nosso ordenamento jurídico, como se pode constatar pela transação, prevista na Lei 9.099/1995. A delação premiada é, apenas, outro nível de transação;
g) o benefício instituído por lei para que um criminoso delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, como forte tendência à regeneração interior, um dos próprios fundamentos da aplicação da pena;
h) a falsa delação, embora possa existir, deve ser severamente punida;
i) a ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para a delação premiada, cujo fim é conhecer, em primeiro plano, a criminalidade organizada, toda sua estrutura, seus meandros, como cada componente participou do evento e o grau de envolvimento dos criminosos.
Em tempos de crise ética profunda, surgem o anseio por grandes mudanças e a necessidade de debates profícuos acerca das mais variadas questões morais. Diante de um quadro tão tenebroso, inevitável e imprescindível torna-se a troca de ideias e experiências sobre temas extremamente polêmicos.
Objeto de enormes discussões, a Delação Premiada é daqueles institutos permeados de controvérsias. Instituída pelo ordenamento jurídico pátrio através da Lei 8.072 de 1990, que prevê em seu artigo 8º, parágrafo único, que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando o seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”, a delação premiada tem sido alvo de inúmeras críticas, principalmente devido a sua inegável carga moral, ética e religiosa.
Permita, nos lançarmos à análise do mencionado instituto, considerado hodiernamente uma forma de traição institucionalizada. Mais do que adotar uma abordagem técnico-jurídica, optamos por situar nossas investigações no âmbito da ética e da axiologia, buscando a elaboração de uma reflexão capaz de nos conduzir não a mudanças radicais, mas ao rompimento da estagnação intelectual.
Se a verdadeira filosofia é realmente reaprender a ver o mundo, a frase do genial filósofo Merleau Ponty - nos estimula a questionar o saber instituído e nos dirige ao pensar permanente.
Tópicos como a delação premiada possuem alto teor acalorado e são incapazes de produzir unanimidade. Portanto, não almejamos a pacificação do tema, tampouco oferecer soluções mirabolantes para o problema ético inerente à delação, senão oferecer nossa singela contribuição teórica, evidenciando a incoerência do supracitado instituto perante o Estado Democrático de Direito – especialmente quando reconhecemos a democracia como princípio e dos valores superiores consagrados por nossa Constituição.
Em uma sociedade civilizada temos a capacidade de estabelecer relações com base na confiança, demonstração que é de segurança íntima, de justiça, esperança em alguém ou em algo.
É o fato que o fortalecimento de uma relação, seja qual for a sua natureza, depende, entre outros fatores, principalmente da possibilidade de se confiar no outro; sem esta condição, toda a estrutura social poderia ruir, pois, não obstante a manutenção de interesses pessoais e do medo, estes não seriam suficientes para a manutenção de uma sociedade coesa e harmônica a depender também da cultura daquela sociedade.
Mais do que um instrumento de desintegração social, a delação e, por conseguinte, a traição é, sob a perspectiva da ética, um desvalor, contrário em sua essência à concepção de vida moral fundada na dignidade da pessoa humana. Neste sentido, são as palavras do mestre Alberto Silva Franco (1992, p. 221):
Dá-se o prêmio punitivo por uma cooperação eficaz com a autoridade, pouco importando o móvel real do colaborador, de quem não se exige nenhuma postura moral, mas antes, uma atitude eticamente condenável. Na equação “custo-benefício”, só se valora as vantagens que possam advir para o Estado com a cessação da atividade criminosa ou com a captura de outros delinqüentes, e não se atribui relevância alguma aos reflexos que o custo possa representar a todo o sistema legal enquanto construído com base na dignidade da pessoa humana.
A defesa da traição representa, em contrapartida, um atentado ao Direito que buscamos, pois embora este seja algo diverso da moral, esta ocupa papel central quando se tem em vista a finalidade e a legitimação social do ordenamento jurídico. Conforme Gustav Radbruch [28]:
Muito mais ainda: o direito e a moral no conteúdo de suas exigências correspondem em parte e casualmente. A relação entre ambos os domínios de normas reside muito mais no fato de que a moral, por um lado, é fim do direito, e por outro, exatamente por isso, é fundamento de sua validade obrigatória.
Qualquer tipo de manifestação à perfídia é, a nosso entender, uma afronta aos objetivos expostos no preâmbulo de nossa própria Constituição Federal, isto é, um atentado à construção de um Estado democrático, destinado à consolidação de uma sociedade fraterna, fundada na harmonia social e pautada em valores como a justiça, a segurança, o bem-estar e na busca de uma sociedade moderna.
Prova irrefutável da estreita ligação entre a delação e o espírito antidemocrático reside, por exemplo, nos acontecimentos pertinentes a Alemanha nazista, quando os alemães recebiam de 2 a 3 mil delações por dia, destinadas a expor a origem judaica de compatriotas e os hábitos subversivos dos indivíduos socialmente indesejáveis, bem como durante o governo ditatorial do Brasil, marcado pela prisão de várias pessoas em virtude de denúncias – muitas vezes infundadas – feitas ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).
Ao partirmos do pressuposto de que o outro é um nós mesmos em sentido inverso, toda e qualquer aproximação somente será possível mediante os laços de confiança. Talvez nossas palavras soem demasiadamente idealistas, entretanto, estas devem ser vistas não como mera indicação de sonhos fantasiosos, mas, consonantes com as palavras de Kant, como sinal de nossa disposição a progredir, afinal, conforme o filósofo prussiano, “[...] o verdadeiro entusiasmo refere-se sempre ao que é ideal, ao que é puramente moral [...], e não pode residir no interesse individual” [29].
Concepções hobbesianas à parte, viver é muito mais do que sobreviver e já no século XVI, Etiene La Boétie nos alertava sobre a imprescindibilidade de se combater a deslealdade: “[...] não pode haver amizade onde há desconfiança, deslealdade, injustiça. Entre os maus, quando se reúnem, é um complô e não uma companhia. Eles não se entretêm, entretemem-se. Não são amigos, mas cúmplices” [30].
A importância da confiança transcende a esfera das relações privadas e atinge todo o corpo social, inserindo-se no âmbito do interesse público. Ao pensarmos no princípio da representação, consagrado em nossa Constituição Federal, é inaceitável não acreditar, ainda que alguns o considerem utópico, na confiança depositada por cada eleitor em seus representantes.
Em alguns de seus brilhantes ensaios, o renomado historiador francês Alain Peyrefitte difunde a ideia de uma sociedade de confiança e indica a confiança como requisito capaz de promover o crescimento econômico, político e cultural de uma nação. A ausência de confiança, causada entre outras razões pela traição, pode gerar uma série de moléstias sociais e contribuir com a degradação moral da sociedade, transformando o homem em simples meio para a consecução de determinados fins, ao invés de considerá-lo o fim de toda e qualquer ação.
Sobre a relação entre sociedade e confiança, elucidativas são as palavras de Peyrefitte, expostas em prólogo de Olavo de Carvalho (2005):
A sociedade de desconfiança é uma sociedade temerosa, ganha-perde: uma sociedade na qual a vida em comum é um jogo cujo resultado é nulo, ou até negativo ("se tu ganhas eu perco"); sociedade propícia à luta de classes, ao mal-viver nacional e internacional, à inveja social, ao fechamento, à agressividade da vigilância mútua. A sociedade de confiança é uma sociedade em expansão, ganha-ganha ("se tu ganhas, eu ganho"); sociedade de solidariedade, de projeto comum, de abertura, de intercâmbio, de comunicação.
Consequentemente, nenhuma sociedade é totalmente confiável o ou o contrário.
Mesmo que o conceito de moral seja relativo, variando de acordo com o tempo, com a sociedade, o lugar e as circunstâncias, atualmente seria no mínimo incoerente viver sob o manto do Estado Democrático de Direito e suportar a traição, especialmente em sua forma institucionalizada.
4. DELAÇÃO E O DIREITO
Disciplinada no Brasil como forma de estímulo à elucidação e punição de crimes praticados em concurso de agentes, a delação premiada encontra-se prevista em vários instrumentos normativos do ordenamento jurídico brasileiro, dentre os quais apontamos as Leis 8.072/90 e 9.269/96; § 2º, do art. 24, da Lei 7.492/86, acrescentado pela Lei 9.080/95; par. único do art. 16, da Lei 8.137/90, acrescentado pela Lei 9.080/95; art. 6º, da Lei 9.034/95 e § 5º, do art. 1º, da Lei 9.613/98, bem como o próprio Código Penal, mais especificamente no crime de extorsão mediante seqüestro (art. 159, § 4º).
Além dos dispositivos normativos já mencionados, citamos também a Lei 9.807, de 13.07.1999, que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.
A Lei 9.807/1999, assim como os textos legais aos quais já nos referimos, estimula a delação que é forma aética de revelação da verdade.
Amplamente utilizada nos EUA (plea bargain) durante o período que marcou o acirramento do combate ao crime organizado e adotada com grande êxito na Itália (pattegiamento) em prol do desmantelamento da máfia, a delação premiada consiste, em termos gerais, na possibilidade concedida ao participante e ou associado de ato criminoso ter sua pena reduzida ou até mesmo extinta, mediante a denúncia de seus comparsas às autoridades, doravante permitindo o desmantelamento do bando ou quadrilha, ou ainda facilitando a libertação do seqüestrado, possível no caso do crime de extorsão mediante seqüestro cometido em concurso de agentes.
Um dos objetivos do presente trabalho é aproveitar a singular oportunidade para suscitar questionamentos e deixar que cada um faça sua interpretação quanto à ética que norteia a delação premiada, mas que para isso tenha em mão informações e conceitos reinantes no nosso ordenamento jurídico.
Por outro lado, ressaltamos que mesmo sob o aspecto jurídico a delação premiada apresenta impropriedades, visto que rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, pois se punirá com penas diferentes pessoas envolvidas no mesmo fato e com idênticos graus de culpabilidade.
Os valores éticos e morais que, embora sejam, num primeiro instante, herdados, encontram-se em constante mudança e dão ensejo à mutabilidade jurídica e social, assim como as sociedades vivem se transformando, onde não existe um conceito inalterável ou intangível.
Não obstante a tentativa de alguns juristas em elaborar uma teoria pura do Direito, rejeitando qualquer influência de elementos como a política, os valores, a cultura, a moral e a religião no mundo jurídico, preferimos vislumbrar o Direito como fenômeno multidimensional e não somente como norma.
Assim sendo, torna-se fundamental não a busca – geralmente inócua – por um Direito justo, mas que se justifique, que respeite os valores supremos consagrados em nossa sociedade, dentre os quais a dignidade da pessoa humana onde o cidadão é possuidor de direitos, deveres e protegido pelo Estado.
Em fins do século XVIII, o grande filósofo de Königsberg, Immanuel Kant, salientava a importância de se agir tendo em vista a dignidade da pessoa, de tal maneira que o outro fosse visto não como meio, mas como fim em si mesmo.
Deste modo, manifesta-se o célebre pensador[31]:
O homem – e, de uma maneira geral, todo ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim.
Preciosas são as palavras dos mestres Zaffaroni e Pierangeli neste sentido[32]:
”Se o imperativo categórico (dever moral) nos obriga a respeitar o outro como fim em si mesmo, a partir deste dever descobrimos o direito subjetivo a ser considerado, como fim em nós mesmos. Quando o dever moral de outro deixa de ser garantido pelo Estado, desaparecerá o direito subjetivo de exigir o respeito de fim em si mesmo que nos assiste.”
Resultado da evolução histórica, o Direito é conseqüência de determinados paradigmas histórico-sociais e atua, em contrapartida, na própria realidade social, contribuindo para a evolução de uma nação. Trata-se, portanto, de um dualismo, de uma relação mútua.
Ao partirmos deste pressuposto, isto é, de que o Direito é ao mesmo tempo parte e objeto, verificamos que toda norma ou instituto jurídico deve ter suas premissas questionadas, não quanto a sua justiça, mas no que se refere a sua legitimidade.
Diante disso, nos perguntamos: seria a delação premiada adequada aos valores fundamentais consagrados em nossa Constituição, principalmente quando põe em xeque a dignidade da pessoa humana?
Seria justificável defender deslizes éticos como premissas toleráveis em prol de avanços no combate à criminalidade?
Ao oferecer ao delator criminoso a faculdade de obter sua pena extinta, mediante a “traição” de seus convivas, não estaríamos institucionalizando a perfídia e gerando uma sensação de insegurança?
Estaria a delação premiada promovendo a consolidação de algumas das funções do Direito, tais como educar, promover a organização e o controle social, incentivar os comportamentos positivos e reprimir objetivando a manutenção da ordem social?
Entendemos que nem sempre os fins justificam os meios e que, apesar de útil, a delação premiada tem sacrificado os mais nobres valores em nome de um pretenso fim mais alto, a segurança.
Na verdade, é um paradoxo o fato de nosso ordenamento estabelecer o instituto em estudo, pois ao mesmo tempo em que o Código Penal Brasileiro prevê a delação premiada, qualifica o homicídio cometido à traição em seu art. 121, §2º, IV e a considera circunstância agravante, prevista no art. 61, II, c.
Certamente que devemos ser razoáveis ao tecermos nossas críticas, afinal, mister se faz a ponderação de bens em jogo, quando presente o caso concreto. Em inúmeras ocasiões, como nos crimes hediondos, nos encontramos diante de situações complexas, pendendo de um lado a vida e de outro a possibilidade de se agir segundo a moral e os valores constitucionais. Há que se relativizar desta forma a aplicação da delação premiada.
Inegável é que o agir jurídico pressupõe fins, metas e necessidades interiores e exteriores distintos do agir moral. Porém, sob o ponto de vista do delator, ainda que este agisse convicto da moralidade de seu comportamento e denunciasse seus parceiros, violaria uma das premissas do imperativo categórico de Kant, visto que através de sua conduta não resguardaria a dignidade humana, de maneira que estaria usando-os com a finalidade de angariar sua liberdade.
Aliás, se as regras morais têm uma forma categórica e não hipotética como pretendia o ilustre pensador alemão, muito mais desejável seria o agir indiferente aos benefícios provenientes da delação (redução ou extinção da pena), norteado pelo sentimento íntimo de dever e em decorrência da razão e não da inclinação e dos interesses pessoais [33].
Provavelmente muitos se questionarão acerca de sustentarmos a capacidade do mais vil criminoso agir moralmente. Nossa postura procede do fato de rechaçarmos a ideia de que o homem seja naturalmente bom ou mau, pois não é um ser moral por natureza. Para Kant, citado por Santos,o homem “[...] torna-se moral quando eleva sua razão até os conceitos do dever e da lei”[34].
Consequentemente, por mais que se defenda a vida humana ou não, por exemplo, não apoiamos comportamentos tão dogmáticos e intransigentes que acabem por tratar os outros homens apenas como coisas.
Muito mais do que expediente capaz de colaborar com a solução de crimes, a delação premiada é o reconhecimento da debilidade e fragilidade estatal, de sua incapacidade de prover segurança aos seus cidadãos.
Novamente enfrentamos uma contradição, pois um instituto de tal estirpe, criado para garantir maior segurança, acaba por favorecer a anomia – dado o enfraquecimento progressivo da sanção – e a promover profunda incerteza e insegurança jurídicas, na medida em que concede liberdade a um criminoso confesso.
Embasada em uma ética utilitarista, cuja essência reside no conceito de utilidade, a delação premiada contraria a ideia de humanidade, visto que instrumentaliza o homem.
Segundo a visão utilitarista, o Direito e o Estado não possuem nem representam valores, sendo inadmissível que possuam fins morais desvinculados dos interesses das pessoas ou constituam fins em si próprios, justificando-se por meio da tarefa de perseguir objetivos de utilidade concreta em favor dos cidadãos e garantir-lhes os instrumentos necessários em prol da segurança jurídica.
Assim, e de acordo com David Hume, “[...] o princípio da utilidade perpassa a constituição da moralidade. A utilidade geral é o verdadeiro critério estável de justiça” [35].
Mais interessante nos parece a teoria kantiana, pois para o filósofo iluminista, não é a maximização da felicidade que importa, mas é essencial que a razão por si mesma estipule princípios de eqüidade, imparcialidade e justiça.
Se adotássemos a lógica kantiana, ao aceitarmos a delação e conseqüentemente a traição a ela inerente, elevando a máxima pessoal ao nível universal, estaríamos diante de mais um paradoxo, ou seja, se todos pudessem trair, impossível seria a existência da confiança em sociedade.
Criar-se-ia uma sociedade de delatores, contrária à democracia enquanto paradigma que busca a real concretização dos direitos fundamentais e a efetivação da cidadania.
Ditames da justiça social, os princípios éticos e morais norteiam a construção de uma sociedade mais humana e fundada no valor máximo por excelência, o ser humano que é um fim em si mesmo.
A delação premiada continuará sendo amplamente utilizada, independentemente de sua fundamentação ética e provavelmente será vista como valiosa, dada a sua utilidade e o medo que impera da criminalidade crescente.
Contudo, há quem possa defender ser frágil a sua aceitação, reconhecida a sua inidoneidade moral e a carência de adaptação do seu conteúdo à evolução da consciência moral de uma sociedade que privilegia a dignidade da pessoa humana e rejeita a traição.
Não cremos ser essencial a adoção extremada de qualquer teoria ética acerca da delação premiada, o que acreditamos seria até mesmo contraproducente em determinados casos, contudo, o pensamento de Kant nos parece mais adequado do que as teorias utilitaristas, já que, a nosso ver, os fins e os meios possuem igual importância.
Além das ideias kantianas, extremamente relevante afigura-se a teoria da ação comunicativade Jürgen Habermas, dentro da qual fundamenta a ética discursiva, apoiada no diálogo entre sujeitos capazes de se posicionar criticamente diante das normas. É pelo entendimento e através do uso de argumentos racionais que um grupo pode chegar ao consenso, à solidariedade e à cooperação [36].
Assim sendo, tendo em vista o teor eticamente reprovável da delação premiada e a necessidade de se legitimar a consecução dos fins individuais e preservar o restante de dignidade do potencial delator – o que consistiria na proibição de um ser humano agir contrariamente ao fim de sua natureza, assegurando conseqüentemente a sua auto-preservação moral – insistimos que a aplicação do instituto deve ser relativizada e restringida sempre que possível.
5. PREVISÃO NORMATIVA
Em países como Itália e Espanha, a colaboração premiada nasceu da necessidade de se combater o terrorismo e o crime organização.
Diferentemente, no Brasil, o reconhecimento explícito da ineficácia dos meios tradicionais de investigação, e consequentemente, da necessidade da colaboração premiada para a obtenção de informações relevantes para a persecução penal, está diretamente relacionada ao incremento da criminalidade violenta, a partir da década de 90, direcionada a seguimentos sociais mais privilegiados e que até então, estavam imunes a ataques mais agressivos com seqüestros e roubos a agências bancárias, sem falarmos nos crimes que consideramos como os mais danosos à nossa sociedade que são os praticados contra a administração pública e que indiretamente lesa milhões de brasileiros.
O crescimento do tráfico de drogas, o aumento da criminalidade de massa (roubos, furtos e etc), sobretudo nos grandes centros urbanos como também os praticados contra a administração pública tanto por aqueles que atuam em nome dela como por quem que de qualquer forma se beneficia dos desvios, que levou nosso legislador, motivado pelos meios de comunicação e pela sociedade, a editar uma série de leis mais gravosas.
Inúmeras leis especiais passaram a dispor, então, sobre a colaboração premiada, variando apenas a seu objetivo, bem como no tocante aos benefícios concedidos pela lei ao colaborador.
No Brasil a origem da delação premiada remonta às Ordenações Filipinas, cuja parte que dispunha sobre matéria criminal (Livro V), vigorou de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830[37].
O germe da delação encontra-se, mais especificamente, nos Títulos VI e CXVI do Livro Quinto dessas Ordenações, nos quais havia previsão não só de mero perdão, mas também de autêntico prêmio ao indivíduo que apontasse o culpado.
Atualmente, não há uma única lei disciplinando as hipóteses de delação premiada. Ressalta-se, de plano, que há um emaranhado desregrado e assistemático de normas destinado ao tratamento do instituto, do qual decorrem diversos questionamentos que não poderão ser exauridos neste trabalho de contornos reduzidos - daí limitar-se a rápidas reflexões e apenas ao enfoque de alguns pontos selecionados.
A Lei 8.072/1990, a chamada "Lei dos Crimes Hediondos", foi a que gizou os primeiros contornos da delação premiada no Brasil, posteriormente, inúmeras legislações abrigaram-na em seus corpos.
Esta Lei previu duas hipóteses de delação premiada, ambas como causa de diminuição de pena. A primeira delas estava contida na primitiva inserção de um parágrafo 4º no artigo 159 do Código Penal que dispunha: "se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o co-autor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá a sua pena reduzida de um a dois terços".
Depois, a Lei 9.269/1996, modificou esse parágrafo, e nos dias atuais preceitua que: "se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá a sua pena reduzida de um a dois terços".
Assim, com a nova redação dada ao parágrafo 4º do artigo 159 do Código Penal, excluiu-se a exigência de que o delito de extorsão mediante seqüestro seja praticado por bando, bastando atualmente dois ou três agentes em concurso e que a "denúncia" (delação) provenha de um deles de maneira eficaz e suficiente para possibilitar a libertação da vítima.
A segunda hipótese de delação premiada na Lei dos Crimes Hediondos encontra-se no parágrafo único do seu artigo 8º: "o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou a quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços". Tal preceito disciplina uma causa especial de diminuição de pena, reclamando que algum integrante da quadrilha ou bando, assumindo sua responsabilidade penal, apresente informações à autoridade policial, judiciária ou a um representante do Ministério Público, de forma a proporcionar o seu desarranjo.
Em sequência , a Lei 9.034/1995 também tratou da delação premiada ao dispor em seu artigo 6º: "nos crimes praticados em organizações criminosas, a pena será reduzida de um a dois terços quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria".
A incidência desta Lei limita-se no plano dos "crimes praticados em organizações criminosas". Estas não se confundem com o delito de quadrilha ou bando.
Portanto, os efeitos da mitigação da pena restringem-se aos delitos perpetrados pela organização criminosa, não abrangendo os eventuais delitos de quadrilha ou bando.
Decorrido algum tempo, a Lei Federal 9.080, promulgada em 19 de julho de 1995, inseriu a delação premiada na Lei 7.492/1986 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro e Nacional) e na Lei 8.137/1990 (Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo).
Desta forma, o instituto premial passou a ser previsto tanto na Lei 7.492/1986 como na Lei 8.137/1990, pelos artigos 25, parágrafo 2º e 16, parágrafo único, respectivamente, ambos com a seguinte redação:
"Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através da confissão espontânea revela à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços ".
Através deste tratamento dado à delação premiada nas Leis acima citadas, o ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira vez (já que a Lei 9.080/1995 é anterior à alteração do parágrafo 4º do artigo 159 do Código Penal) consentiu a redução da pena fora dos casos de quadrilha ou de organização criminosa, admitindo, pois, a aplicação do benefício ainda na situação de existir mera co-autoria.
Versou-se também na Lei 9.613/1998 sobre a delação premiada. Tal legislação, intitulada de "Lei de Lavagem de Capitais", aborda acerca da delação no parágrafo 5º do seu artigo 1º:
"A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou localização de bens, direitos ou valores objeto do crime ".
De fato esse dispositivo inovou o tratamento até então dispensado à delação premial. Nele destaca-se um rol de vantagens ofertadas ao colaborador (delator), cuja pluralidade de opções era inexistente no ordenamento legal brasileiro.
Dentre elas, figuram a tradicional redução de penas, mas agora com o início obrigatório de seu cumprimento de pena em regime aberto, e duas novas previsões: a substituição de pena privativa de liberdade por restritivas de direitos e o perdão judicial.
A delação também está consagrada na Lei 9.807, de 13 de julho de 1999 (Lei de Proteção às Vítimas e às Testemunhas).
Nota-se que a Lei 9.807/1999 seguiu a tendência ditada pela "Lei de Lavagem de Capitais" ao permitir não só uma causa obrigatória de redução de pena, mas, também, a aplicação de perdão judicial aos réus colaboradores.
Ainda no que tange à essa lei, indispensável é realçar que enquanto, todas as leis anteriormente mencionadas são casuísticas, ou seja, fazem referência à delação em crimes específicos ou quando houver o envolvimento de organização criminosa, a "Lei de Proteção às Vítimas e às Testemunhas" é mais ampla, vez que admite a sua incidência em relação a qualquer tipo de infração penal, inclusive nos crimes ora aludidos, pois nela não há qualquer restrição no que diz respeito às hipóteses de cabimento.
Cabe também tecer sucintos comentários à previsão do direito premial na Lei 10.409/2002.
Ainda que essa Lei tenha sido revogada pela atual Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, sua abordagem é interessante, visto que, com ela a delação premiada havia ganhado uma nova roupagem. Ocorre que, a Lei 10.409/2002, além de ter estatuído a possibilidade de diminuição de pena e perdão judicial acrescentou uma inovação em termos de vantagens concedidas em razão da delação premiada, ainda mais radical que esse último. Cuidava-se da hipótese contida no parágrafo 2º do seu artigo 32, assim descrita:
"O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para o interesse da justiça ".
Por fim, mais recentemente, vigora a Lei 11.343/2006. Pela nova regra estabelecida no artigo 41 desta lei, não se possibilita mais, em face de delação premiada, o sobrestamento das investigações, prevendo apenas a permissão para a diminuição da pena dentro do patamar que pode variar entre um e dois terços da reprimenda imposta, não sendo mais possível nem mesmo o perdão judicial.
Visíveis são as variações no regramento da delação premiada nas inúmeras leis que a disciplinam. Em razão desta multiplicidade de leis regulamentando o instituto em comento, a doutrina preponderante entende que a Lei 9.807/1999 passou a ser o diploma a regulamentar a delação premiada no Brasil, por ser mais benéfica do que as leis anteriores a ela. Alguns doutrinadores, como Alberto Silva Franco, a vêem como uma lei revogadora das precedentes[38].
Entretanto, o melhor posicionamento é o que concebe tal lei como sendo de aplicação genérica, sendo as anteriores de incidência subsidiária, não estando assim revogadas, mormente quando seus requisitos são menos rigorosos do que os encampados no ditame legal estudado.
6. O DIREITO AO SILÊNCIO E A MOTIVAÇÃO DA COLABORAÇÃO
Até que ponto a colaboração premiada é compatível com o Princípio do nemo tenetur se detegere (com o direito ao silêncio)? Segundo o Princípio do nemo tenetur se detegere, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. E, um de seus desdobramentos é o direito ao silêncio.
A Lei das organizações criminosas (Lei 12.850/13), em seu art. 4º, §14º traz:
Art. 4º. §14º. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.
Trata-se de um dispositivo interessante, primeiramente porque fala em renúncia ao direito ao silêncio, e, segundo, diz que o agente estaria sujeito ao compromisso de dizer a verdade.
O art.19 desta lei ainda traz:
“Art. 19. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas: Pena - reclusão, de 1 a 4 anos, e multa.”
Neste caso, teríamos uma espécie de ¨denunciação caluniosa do colaborador¨. Quando o dispositivo traz ¨sob pretexto de colaboração com a Justiça¨, estamos diante de um crime de mão própria, isso porque só pode ser praticado pelo colaborador. O colaborador pode renunciar ao direito ao silêncio? E ele poderia responder por um crime se dizer informações falsas?
Trata-se de um tema novo, que deve chegar aos Tribunais, primeiramente, ninguém nega que o indivíduo tem direito ao silêncio, previsto na Constituição Federal 1988 e na Convenção interamericana de direitos humanos.
No entanto, tem-se o direito ao silêncio, e não o dever, assim, desde que o indivíduo seja informado das consequências decorrentes da celebração do acordo de Colaboração premiada, é óbvio que ele poderá fazer uma opção livre por celebrar este acordo. E esta opção, vale lembrar, sempre deverá ser assistida por um defensor.
No §14º do art.4º, para Renato Brasileiro, o legislador não foi feliz ao usar o verbo ¨renunciar¨, uma vez que o direito ao silêncio é de natureza fundamental, e ao estudar os DFs, sabemos que uma característica básica deles é a irrenunciabilidade/inalienabilidade, desta forma não haveria como renunciar o direito ao silêncio.
Assim, o ideal, ao interpretar o §14º, é se entender que não se trata de ¨renúncia¨ ao direito ao silêncio, mas sim uma opção voluntária do não exercício ao direito ao silêncio.
E quanto ao crime? Pode-se responder por dizer informações falsas?
Deve-se lembrar que o Direito ao silêncio e o Princípio do nemo tenetur se detegere não têm natureza absoluta, como todo e qualquer direito fundamental (Ex.: a CF autoriza até a morte em caso de guerra declarada). Desta forma, ele pode ser usado para defender o acusado, mas não pode ser usado como um escudo protetivo para atividades ilícitas; Ex.: O casal Nardoni mexeu no local do crime para esconder as pistas, e por isso foram condenados também pelo crime de fraude processual – Isso não está protegido pelo nemo tenetur? Não, pois não pode se valer de um direito constitucional como um escudo protetivo para atividades ilícitas.
Nessa linha de raciocínio, segundo a qual não é um direito absoluto, vale lembrar que o próprio Supremo e o STJ vêm entendendo que hoje, tipifica o crime de falsa identidade (art. 307, CP) quando o agente presta informações falsas quanto a sua qualificação.
Inconstitucionalidade textual: renúncia ao direito de silenciar (artigo 4º, parágrafo 14).
Uma vez iniciado o processo, sendo o colaborador, induvidosamente, parte no processo, goza de pleno direito ao silêncio.
A lei incorrendo em grave inconstitucionalidade estabelece em seu parágrafo 14º do artigo 4º, que o colaborador renunciará — utiliza-se voz cogente — ao direito ao silêncio, na presença de seu defensor.
Ora, o dispositivo legislativo é claramente inconstitucional enquanto obriga (ou condiciona, o que dá no mesmo) o réu a abrir mão de um direito seu consagrado não apenas na constituição, como em todos os pactos internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário. Afinal, o réu simplesmente não está obrigado a fazer prova contra si em circunstância alguma, mesmo a pretexto de “colaborar” com a Justiça, ou seja, na condição de colaborador{C}[39]{C}.
Portanto, lhe interessa muito mais (lhe é muito mais benéfico) uma sentença absolutória, que a aplicação dos benefícios decorrentes da colaboração.
Mas não para por aí a coleção de absurdos que emoldura o depoimento do colaborador em juízo. Com efeito, o parágrafo 12 do artigo 4º prevê que ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial. Essa disposição legal é insensata sem precedentes, como desnecessária.
Por um lado, porque repete a hipótese tecnicamente inviável do colaborador não ter sido denunciado, caso tenha cometido crime ou, de qualquer modo, concorrido para ele. Caso não o tenha, poderá sempre ser arrolado como testemunha, pelo que, a disposição é inútil.
Por outro, o perdão judicial se aplica, repetindo, por ocasião da sentença e, depois dela, não se pode mais produzir prova no processo! Ademais, estranhamente, se a regulamentação diz respeito a prova a ser produzida a respeito de outro processo, não há nenhuma necessidade de regulamentação, pois qualquer pessoa pode ser testemunha de quem quer que seja, em qualquer processo!
É pertinente e persistente a crítica doutrinária de que o Brasil vem legislando no processo penal de forma a desviar o foco da produção probatória através da investigação do fato, para concentrar-se na pessoa do próprio investigado como fonte de prova, transferindo-lhe obrigações — ou, no caso, estimulando-o — a reconstituição do fato[40]. Não deixa de ser uma forma indireta de o legislador burlar ou desrespeitar a garantia constitucional de o cidadão não produzir prova contra si mesmo.
Prende-se para investigar, prende-se para fragilizar, prende-se para forçar a confissão e, por fim, prende-se para desgastar, subjugar, ameaçar e forçar a “colaboração premiada”. Aliás, a própria autoridade repressora reconhece, oficialmente, em seu parecer, que esse é o objetivo maior das prisões e tem sido exitoso: arrancar a confissão e forçar a “delação”. Retornamos à Idade Média, quando às ordalhas e a tortura também tinham objetivo de arrancar a confissão, e também eram cem por cento exitosas! Só falta torturar fisicamente, por que psicologicamente já está correndo!
Essa admissão oficial do fundamento das prisões escancara a sua ilegalidade, a sua arbitrariedade e a sua ilegitimidade. Certamente, não resistirá ao crivo dos tribunais superiores. Ao menos, é o que se espera em um Estado Democrático de Direito, que consagra a prisão como última ratio!
Para NUCCI{C}[41] , ¨confessar”, no âmbito do processo penal, é admitir contra si, por quem seja suspeito ou acusado de um crime, tendo pleno discernimento, voluntária, expressa e pessoalmente, diante da autoridade competente, em ato solene e público, reduzido a termo, a prática de algum fato criminoso. Remorso, arrependimento ou até ódio a terceiros são as razões invocadas para a confissão. Observe-se que a existência humana é fiel à autoproteção. A confissão é meio de prova. Fala-se no valor da confissão. Lecionou MALATESTA[42] que, sempre que na pessoa do confitente se encontra uma condição que faça pensar que ele se engana, ou que queira enganar, sua confissão perde valor por razão subjetiva. De outra parte, é ainda Malatesta[43] quem conclui que há ainda critérios objetivos de avaliação que devem ser aplicados, tais quais:
a) A incredulidade das coisas contadas colhe qualquer fé a confissão e sua inverossimilhança diminui-lhe grandemente a fé. Para que a confissão tenha eficácia probatória, além de ser crível é preciso que seja verossímil;
b) A natureza normalmente enganadora ou não-enganadora dos fatos afirmados na confissão, é outro critério objetivo que lhe realça ou diminui a fé;
c) A confissão não pode ter eficácia de prova senão enquanto tem conteúdo assertivo, pois quanto mais duvidoso se apresenta o conteúdo da confissão, tanto menos tenha ela valor;
d) A confissão não deve ser contraditória em si mesma, pois tendo tal conteúdo perde mais ou menos fé;
e) A confissão terá tanto maior valor tanto maior determinação apresentar na afirmação dos fatos;
f) A confissão não tem eficácia probatória senão pelos fatos relativamente aos quais o confessante dá causa da própria ciência;
g) A confissão terá maior eficácia probatória quanto aos fatos afirmados de ciência própria do que relativamente àqueles afirmados por ouvir dizer; A confissão pode ser judicial ou extrajudicial. Se produzida diante de autoridade judicial competente será a confissão judicial própria, se produzida perante autoridade incompetente será judicial imprópria. De outro modo, será extrajudicial ser produzida perante autoridades policiais, administrativas, parlamentares, competentes para ouvir. O réu, ao contrário, poderá mentir ou ainda silenciar. Tem o acusado direito ao silêncio, como se lê do artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal. Trago a lição de GRINOVER[44] , que transcrevo: ¨ O réu, sujeito da defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer elementos de prova que o prejudiquem.
Pode calar-se ou até mentir. Ainda que se quisesse ver no interrogatório um meio de prova, só o seria em sentido meramente eventual, em face da faculdade dada ao acusado de não responder. A autoridade judiciária não pode dispor do réu, como meio de prova, diversamente do que ocorre com as testemunhas; deve respeitar a sua liberdade no sentido de defender-se como entender melhor, falando ou calando-se, e ainda advertindo-o da faculdade de não responder.
Por isso é que Cordeiro afirma categoricamente que a única arma do interrogante é a persuasão(...). Como bem aponta Grevi, do silêncio ou da mentira do réu não podem deduzir-se presunções que superem a presunção da inocência, solenemente proclamada no art. 9º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, ou que superem o ¨princípio in dubio pro reo¨. É ainda GRINOVER quem conclui[45]:
¨ O retorno ao direito ao silêncio, em todo o seu vigor, sem atribuir-lhe nenhuma consequência desfavorável, é uma exigência não só de justiça, mas sobretudo de liberdade. O único prejuízo que do silêncio pode advir ao réu é o de não utilizar a faculdade de autodefesa que se lhe abre através do interrogatório. Mas quanto ao uso desta faculdade, o único árbitro deve ser sua consciência, cuja liberdade há de ser garantida em um dos momentos mais dramáticos para a vida de um homem, e mais delicado para a tutela de sua dignidade. ¨
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 96.219 MC – SP, relator ministro Celso de Mello, enfrentando a questão constitucional, deixou lição lapidar no sentido de que ¨A recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a autoincriminação, especialmente aquela exposta a atos de persecução penal.¨ Fala-se num privilégio contra a autoincriminação, que é uma manifestação eloqüente, como disse BULOS[46]:
{C}a) {C}Da cláusula da ampla defesa (artigo 5º, LV da Constituição);
{C}b) {C}Do direito de permanecer calado (artigo 5º, LXIII da Constituição);
c) Da presunção de inocência (artigo 5º, LVII da Constituição).
O Supremo Tribunal Federal entendeu, no julgamento do HC 77.135/SP, relator ministro Ilmar Galvão7[47], em 8 de setembro de 1998; no HC 75.527, relator ministro Moreira Alves, j. 17 de junho de 1997 e ainda no HC 68.929, relator ministro Celso de Mello, 22 de outubro de 1991, que não se pode obrigar acusados a fornecerem base probatória para caracterizar a sua própria culpa.
Assim ninguém pode ser constrangido a produzir provas contra si próprio. Em lição memorável o Ministro Celso de Mello deixou consignado, no julgamento do HC 83.947/AM, Relator Ministro Celso de Mello, que:
¨ já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência.”
Da mesma forma, correta a ilação de NUCCI[48] , ao sustentar o direito do acusado de mentir em seu interrogatório de mérito. Ninguém é obrigado a se auto acusar.
Isso porque a ampla defesa não pode excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito de fugir à incriminação. Se tem o acusado direito ao silêncio, deve ser interpretado como inconstitucional a parte final do artigo 198 do Código Penal onde se menciona poder o silêncio do réu ¨constituir elemento para formação do convencimento do réu.¨ Feita fora do interrogatório, a confissão do réu será tomada por termo (artigo 199 do Código Penal).
Se confessada a autoria durante o interrogatório será o acusado perguntado sobre os motivos e circunstâncias dos fatos e se outras pessoas concorreram para a infração e quais sejam, como se lê do artigo 190 do Código de Processo Penal.
A teor do artigo 200 do Código de Processo Penal, a confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto.
A confissão deixa de ser no atual modelo constitucional pátrio a rainha das provas como explica OLIVEIRA[49] a previsão legal que indica a necessidade de se confrontar o conteúdo da confissão com os demais meios de prova (artigo 197) é bastante emblemática. Por força disso, podemos concluir que deve ser rechaçada a conclusão de transformar a confissão em fonte única das provas e razão exclusiva da aplicação da pena, máxime em que se fala em pena privativa de liberdade.
Imagine-se que tantas injustiças seriam cometidas ao se acolher uma confissão eivada de mentiras, só para livrar alguém de uma condenação? Não se pode condenar por confissão em sede policial, simplesmente.
As provas produzidas no inquérito servem ao titular da ação penal e não para o juiz. Devem ser repetidas na fase instrutória, como se lê do artigo 155 do Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei 11.690/08.
Haverá ainda a hipótese da confissão qualificada, onde se apresenta a admissão da culpa, acompanhada de uma justificativa qualquer benéfica ao acusado. Admite o réu a prática do fato e diz que o praticou por fato tolerado que pode ser legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou ainda exercício regular de direito. Diversa é a delação premiada prevista na Lei 9.807/99 e na nova lei da lavagem de dinheiro (Lei 12.683, de 9 de julho de 2012).
Tal acordo escrito a ser firmado entre o Parquet e o investigado com a necessária apreciação judicial, deve ser somado a outros instrumentos como o de proteção de testemunhas.
Insistimos que tal delação é acordo de colaboração firmado entre as partes e que deve ser mantido em autos anexos com o devido controle judicial. Deve ser essencial para a elucidação da atividade criminosa em discussão e leva em conta a entrega, por parte do acusado, de todos os bens que vierem a ser auferidos com a atividade criminosa.
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento inserido na AP 470, AgR sétimo – MG, Relator Ministro Joaquim Barbosa, 18 de junho de 2009, na linha do que foi antes decido no HC 94.601 – CE, Relator Ministro Celso de Mello, 4 de agosto de 2009, assim concluiu:
¨ O sistema processual brasileiro não admite a oitiva do corréu na qualidade de testemunha ou, mesmo de informante, como quer o agravante. Exceção aberta para o caso de corréu colaborador ou delator, a chamada delação premiada, prevista na Lei 9.807/99.¨
Na realidade, o interrogatório do réu delator ganha contornos de autêntico testemunho, permitindo-se ao defensor do delatado a realização de reperguntas ao interrogado, exclusivamente com relação a delação realizada. Essa bilateralidade leva a se dar a parte delatada um amplo poder de contrapor os fatos invocados pelo delator mediante comparecimento ao ato e ainda formular reperguntas.
Observem-se as experiências bem sucedidas na Itália, Colômbia e Estados Unidos e ainda o que diz o artigo 20 da Convenção das Nações Unidas contra a criminalidade transnacional organizada e artigo 50 das Nações Unidas contra a Corrupção e ainda a Recomendação n. 27 do GAFI.
Podemos trazer também a inversão na hierarquia do ordenamento jurídico
que ao longo do tempo tem sido denunciado por Cezar Roberto Bitencourt de que vivemos em um país onde há inversão total do ordenamento jurídico, na medida em que a Constituição Federal, para determinadas autoridades, não passa de peça puramente ornamental, sendo contrariada por leis ordinárias, decretos, resoluções, portarias, e, agora, até por acordo de “delação premiada”, eufemisticamente cognominada de “colaboração premiada” (Lei 12.850/13).
Ultimamente, o legislador contemporâneo tem demonstrado censurável desapreço pelas garantias constitucionais, e certa predileção em editar diplomas legais francamente inconstitucionais, e, particularmente, afrontadores de direitos fundamentais assegurados na própria Constituição. Na verdade, há uma “produção” excessiva de leis que, a pretexto de combater a impunidade, ignoram a existência de garantias fundamentais, e algumas até contradizem diretamente as previsões constitucionais, como ocorre, por exemplo, com a Lei 12.850/2.013.
No livro Comentários à lei de organização criminosa[50] em que abordamos a indigitada, imoral e antiética “colaboração premiada”, apontamos algumas nulidades; mas essas são nulidades e inconstitucionalidades que decorrem do próprio texto legal, confrontado com a nossa Carta Magna. No entanto, além dessas inconstitucionalidades textuais, a aplicação, in concreto, do instituto da “delação”, com certa deturpação interpretativa pode ampliar tais inconstitucionalidades, dependendo da forma como as autoridades colocam em prática a utilização do referido instituto.
Nesse sentido, pelas informações vazadas na mídia, essas nulidades e inconstitucionalidades são pródigas na “colaboração premiada” celebrada na “operação lava jato”, com o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Trata-se, a rigor, de um “acordo de colaboração premiada” eivado de nulidades, mas nulidades absurdamente grotescas, ou seja, decorrentes de negação de garantias fundamentais impostas pelo Ministério Público (negociador da delação) a referido réu e ao seu defensor!
Pelo que vazou, foram violadas, dentre outras, as garantais fundamentais da ampla defesa, do devido processo legal, do direito ao silêncio, de não produzir prova contra si mesmo, direito de não se autoincriminar etc. Ou seja, foi imposto ao “delator” que renunciasse (pode ?) — a todos esses direitos constitucionais —, inclusive direitos de ações (afastando a jurisdicionalidade do cidadão). Afinal, desde quando as garantias fundamentais do direito de ação, do devido processo legal, da ampla defesa podem simplesmente ser renunciadas por alguém, ainda mais na imposição de uma delação premiada? Ora, se são garantias contra o poder estatal, são irrenunciáveis!
Vejamos algumas situações de nulidades e inconstitucionalidades flagrantes que, poderíamos entender como existente nesse “acordo de delação premiada”: 1) o delator tem que desistir de todos os habeas corpus impetrados; 2) deve desistir, igualmente, do exercício de defesas processuais, inclusive de questionar competência e outras nulidades; 3) deve assumir compromisso de falar a verdade em todas as investigações (contrariando o direito ao silêncio, a não se auto-incriminar e a não produzir prova contra si mesmo); 4) não impugnar o acordo de colaboração, por qualquer meio jurídico; 5) renunciar, ainda, ao exercício do direito de recorrer de sentenças condenatórias relativas aos fatos objetos da investigação.
Reconhecem que o colaborador tem direito constitucional ao silêncio e a garantia contra a auto-incriminação. Mas invocam o disposto no artigo 4°, parágrafo 14, da Lei 12.850/2013, para exigir a renúncia do colaborador nos depoimentos em que prestar. Em outros termos, invertem a ordem natural da hierarquia de nosso ordenamento jurídico, e, com um simples acordo, “revogam” a Constituição Federal.
Menos mal que o digno e culto ministro Teori Zavascki, ao homologar o acordo de delação, excluiu todas aquelas restrições que visavam afastar a jurisdicionalidade, que também é uma garantia de todo cidadão, em outros termos, assegurou-se o amplo de direito de ação.
7. EFICÁCIA OBJETIVA DA COLABORAÇÃO PREMIADA E OS DIREITOS DO COLABORADOR
É essencial a eficácia da colaboração premiada, ou seja, que auxilie realmente a alcançar os objetivos previstos na lei. Assim, para que seja possível aplicar qualquer dos benefícios, o legislador impõe que a colaboração alcance um ou mais dos seguintes resultados (Art. 4º da Lei 12.850) :
.
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada (art. 4º, caput).
A lei é clara ao estabelecer que se contenta com apenas um dos requisitos. Interessante anotar que o legislador indica uma escala crescente de importância da colaboração, do inciso I ao V, a apontar, ao menos em uma primeira análise, que o benefício concedido ao colaborador deve ser também crescente nessa direção.
Da mesma forma, a obtenção de pluralidade de resultados deve ser considerada na análise do benefício a ser concedido. Assim, enquanto no inciso I o agente apenas identifica os demais coautores, no inciso II revela toda a estrutura hierárquica e a divisão de tarefas. É o chamado “agente revelador”[51].
No inciso III o legislador demonstra que a contribuição do agente pode ser na prevenção de infrações penais, o que certamente é muito relevante. É a chamada “colaboração preventiva”. Nesse caso irão atuar proativamente e não de maneira histórica.
No inciso IV, o legislador demonstra, seguindo a tendência internacional, a relevância em asfixiar o patrimônio da organização criminosa. É a hipótese de “colaboração para localização e recuperação de ativos”, prevista no art. 26, §1º, b, da Convenção de Palermo[52].
Hoje ninguém duvida de que para a persecução penal eficiente de organizações criminosas é essencial a identificação e perdimento dos bens e valores da organização, para impedir que ela continue a atuar, retroalimentando-se. Tanto assim que a tendência nos países europeus é criar mecanismos que facilitem o perdimento dos bens que são produto ou proveito das infrações penais das organizações criminosas, inclusive pela previsão de presunções legais. Por fim, o inc. V se preocupa com a vida e integridade física da vítima, certamente valor maior a ser protegido pelo ordenamento jurídico. É a chamada “colaboração para libertação”[53].
Assim, reiteramos que o legislador apresenta uma margem crescente de importância da contribuição do colaborador, que deve ser considerada, ao menos em princípio, na análise dos benefícios a serem propostas a ele. Ao estabelecer a eficácia da colaboração, verifica-se que não basta a boa vontade do agente em contribuir, sendo a colaboração uma “obrigação de resultado”, por assim dizer, de sorte que somente se os resultados efetivamente forem atingidos é que o colaborador poderá ser beneficiado com os prêmios legais[54].
Embora as circunstâncias pessoais sejam importantes na consideração do benefício a ser aplicado, conforme consta do art. 4º, §1º, a eficácia da colaboração – ou seja, que os resultados sejam efetivamente alcançados – é condição sine qua non para a concessão do benefício. Se as informações prestadas foram superficiais, não fornecendo à investigação subsídios que levassem à incriminação de outros agentes ou ao alcance de resultados positivos para a persecução penal, não cabe a aplicação do benefício, conforme decidiu o TRF da 4ª Região[55] .
Ademais, não basta a mera confissão para caracterizar a colaboração premiada. Embora esta pressuponha, em regra, a confissão, vai além, pois exige a efetiva colaboração para alcançar um dos resultados previstos no art. 4º[56] . Interessante questão é se a colaboração pode se referir a outros fatos, que não o objeto da investigação.
Assim, por exemplo, no caso de um doleiro estar sendo investigado ou processado por crime contra o sistema financeiro e resolvesse colaborar com investigações distintas, incriminando agentes por corrupção e lavagem de capitais. Seria possível a colaboração? Parece-nos que não há vedação.
O que é relevante para a colaboração premiada é a eficácia da contribuição para a persecução penal, atingindo um dos fins do art. 4º, seja em relação a fato próprio ou alheio. A possibilidade de colaboração na fase da execução reforça essa tese, pois após o trânsito em julgado, em geral, a colaboração ocorrerá em relação a fatos de terceiros, em razão da vedação da revisão criminal pro societatis.
A admissibilidade de utilização do coimputado como fonte de prova no processo penal brasileiro é matéria de inovação legislativa que difere da valoração probatória que se irá conferir às informações trazidas ao processo pelo colaborador.
Há no direito positivo brasileiro, diversos dispositivos legais que instituíram a possibilidade jurídica do aproveitamento das declarações do colaborador/imputado como elemento de prova no processo penal.
A legislação, no entanto, é extremamente lacônica e desordenada no trato do tema, pecando principalmente pela ausência de sistematicidade na previsão legal dos benefícios pela contra-conduta dos arrependidos; constatação essa que se faz sob o prisma substantivo.
Sob a perspectiva processual, que é o objeto do estudo, o pecado não é de harmonia, mas de vacuidade. O legislador brasileiro não se preocupou em estabelecer nenhum regramento de ordem processual para a cooperação premiada, o que cria dificuldades e incertezas, principalmente na solução de questões de práxis como o procedimento a ser utilizado e a valoração dos elementos de provas trazidos aos autos pelo colaborador.
Essas inseguranças afluem para Ministério Público e magistrado; ressaltam-se para o agente que pretende a colaboração, pois não tem previsão sobre o procedimento que será adotado para a tomada de suas declarações e extensão de benefícios; e sobrelevam-se para o co-réu chamado à responsabilidade, pela falta de certeza sobre o tratamento valorativo que será conferido aqueles elementos revelados pelo colaborador.
Desde já adianta-se que a quase totalidade das obras e posicionamentos doutrinários consultados não admitem que este elemento de prova tenha a força de, isoladamente, sustentar decreto de condenação . Analisando a doutrina sobre o tema[57], chega a afirmar que se pode considerar absolutamente isolada a opinião dos que entendem que a declaração não corroborada de um dos sujeitos do delito, ainda que dotada de lógica narrativa e coerência interna, constitui meio de prova suficiente para desmerecer a presunção de inocência[58].
Não podemos, no entanto, chegar à conclusão de que as declarações do colaborador não terão efeitos probatórios algum.
A opção feita pela ordem jurídica pátria em diversos dispositivos legais foi a de atribuir importância probatória à delação premiada, o que por certo não se resume à atribuição de simples efeito de notitia criminis.
Seria equivocada a conclusão de se chegar à distorção no caminho oposto de exigir que a comprovação dos fatos informados pelo delator estejam suficientemente demonstrados por outros meios de prova tradicionais, pois então esses outros elementos, por si só, esclareceriam os fatos, não havendo que se recorrer à colaboração processual.
O efeito de mera comunicação de crime é admitido quando não estiverem configurados os requisitos do instituto da colaboração premiada pelo fato, por exemplo, de o acusado se afirmar inocente, excluindo-se de atuação no fato delituoso ou conjunto subjetivo dos membros de quadrilha ou organização criminal.
Também terá eficácia de mera notitia criminis as de declarações do arrependido processual para fins probatórios. Num primeiro momento, com a análise do Direito comparado, centrando-se na solução conferida pelos ordenamentos jurídicos que influenciaram o Direito brasileiro a prever este especial meio de prova; em seguida, ocupa-se do principal fundamento para exigir a confirmação das declarações, que é o princípio constitucional do estado de inocência do acusado.
Decisões do STJ - Superior Tribunal de Justiça
A delação premiada nunca esteve tanto em evidência.
Em tempos de operação Lava Jato, à medida que surgem novos nomes envolvidos com o esquema de corrupção na Petrobras e em outras frentes da administração pública, amplia-se também o número de acordos de colaboração firmados com investigados em troca do alívio de suas penas, onde muito provavelmente réus devem ter tomando como motivação para essa opção, a condenação do principal articulador não político do caso chamado Mensalão que fora condenado a mais de 30 anos de reclusão.
Mecanismo de investigação e obtenção de prova, a delação premiada foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei 8.072 de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), em seu artigo 8º, parágrafo único.
Posteriormente, sua aplicação também passou a ser prevista em outras normas, a exemplo da Lei 11.343/06, da Lei 12.529/11 e até mesmo do Código Penal, artigo 159, parágrafo 4º.
Somente em 2013, entretanto, com a edição da Lei 12.850 de 2013, que prevê medidas de combate às organizações criminosas, foi que a delação premiada passou a ser regulada de forma mais completa, agora sob o título de colaboração premiada.
7.1 Prêmios da delação.
Os prêmios de um acordo de delação podem ir desde a diminuição da pena até o perdão judicial.
Cabe ao magistrado decidir qual medida deve ser aplicada ao caso. Em relação a essa discricionariedade, o artigo 4º, parágrafo primeiro, da Lei em estudo disciplina que o magistrado deve levar em consideração “a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração”.
Qualquer que seja a opção do magistrado, entretanto, essa decisão deverá ser fundamentada. No julgamento do HC 97.509 de relatoria do ministro Arnaldo Esteves Lima, também da Quinta Turma, o colegiado entendeu que “ofende o princípio da motivação, consagrado no artigo 93, IX, da Constituição Federal, a fixação da minorante da delação premiada em patamar mínimo sem a devida fundamentação, ainda que reconhecida pelo juízo monocrático a relevante colaboração do paciente na instrução probatória e na determinação dos autores do fato delituoso”[59].
No julgamento do HC 49.842 tendo o ministro Hélio Quaglia Barbosa, por exemplo, impetrado em favor de um investigador de polícia condenado por extorsão mediante sequestro, a Sexta Turma do STJ entendeu que não foram preenchidos os requisitos do perdão judicial devido à “reprovabilidade da conduta”, mas foi concedida a redução da pena em dois terços , ou seja, não existe “formula exata” para aplicação do instituto, mas sim uma analise de caso a caso.
7.2 Delator arrependido.
Pode acontecer de o delator voltar atrás e renegar as informações que tenha fornecido. Se houver arrependimento, não haverá benefícios da delação premiada, uma vez que o magistrado não poderá valer-se dessas informações para fundamentar sua decisão.
A ministra Laurita Vaz confirmou esse entendimento no HC 120.454, de sua relatoria. No caso, houve colaboração com a investigação durante o inquérito policial, porém o paciente se retratou em juízo.
No habeas corpus, a defesa alegou que o paciente havia contribuído para a investigação policial, confessando o crime e delatando todos os corréus, e por isso pediu o reconhecimento da causa de redução de pena prevista no artigo 14 da Lei 9.807.
A Quinta Turma, por unanimidade, acompanhou a relatora, para a qual, embora tenha havido colaboração inicial, “as informações prestadas pelo paciente perdem relevância, na medida em que não contribuíram, de fato, para a responsabilização dos agentes criminosos”.
De acordo com a ministra, o juiz nem sequer pôde utilizar tais informações para fundamentar a condenação, visto que o delator se retratou em juízo. “Sua pretensa colaboração, afinal, não logrou alcançar a utilidade que se pretende com o instituto da delação premiada a ponto de justificar a incidência da causa de diminuição de pena”, disse Laurita Vaz.
A colaboração tem que ser espontânea, tem que partir do agente, não pode ser imposta, ou constrangido a colaborar, e quem decide optar pelo instituto é próprio Réu junto com seu defensor e como consequência assume todo os prós e contras da escolha estabelecida.
7.3 Publicidade da delação.
De acordo com o artigo 7º da Lei 12.850 de 2013, “o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia”. Ou seja, o contraditório e a ampla defesa só serão exercidos depois de concluídas as diligências decorrentes das informações obtidas com a colaboração premiada, até porque se assim não fosse, muito provavelmente pouco surtiria efeito se os demais corréus ou aqueles ainda não conhecidos, que sabendo da delação, trabalhariam no sentido de contaminar a coletas de provas.
Em outro caso envolvendo o mensalão do DEM, no julgamento da APn 707, Domingos Lamoglia – conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Distrito Federal e também denunciado – alegou ofensa ao princípio do contraditório por não ter tido acesso à íntegra do acordo e dos documentos da delação premiada que o incriminou[60].
A Corte Especial do STJ não acolheu seus argumentos. O acórdão citou jurisprudência do STF segundo a qual o corréu pode ter acesso ao nome dos responsáveis pelo acordo de delação, mas esse direito não se estende às informações recebidas.
“Tendo sido formulado o acordo de delação premiada no curso do inquérito policial, em razão do sigilo necessário, não há falar em violação ao princípio do contraditório”, concluiu o colegiado.
7.4 Prova de corroboração.
A Lei 12.850 de 2013 também estabelece de forma expressa que: “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. Ou seja, as informações procedentes da colaboração premiada precisam ser confirmadas por outros elementos de prova – a chamada prova de corroboração.
No HC 289.853 do STJ que teve como relator o ministro Felix Fischer, julgado pela Quinta Turma, um homem condenado por roubo alegou nulidade absoluta de seu processo ao fundamento de que não teve a oportunidade de se defender quando foi acusado por um corréu em delação premiada. Disse ainda que as provas apresentadas seriam insuficientes para incriminá-lo.
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), no recurso de apelação, rechaçou essas alegações. Segundo o acórdão, a sentença condenatória teve amparo em vasto conteúdo probatório, como o depoimento de vítimas e de testemunhas e registros telefônicos.
O relator no STJ, ressalvou a impossibilidade do uso do habeas corpus para verificação das provas tidas como suficientes pelo TJMT, mas ratificou o entendimento de que a sentença não poderia se embasar apenas nas informações dadas pelo delator, mas também corroboradas em investigação criminal.
“A condenação não se baseou tão somente em depoimento extraído da delação premiada, amparando-se, outrossim, em elementos coligidos tanto na fase inquisitorial quanto judicial, não havendo falar em nulidade do processo por ofensa ao contraditório e ampla defesa”, concluiu o ministro.
Portanto, não basta apenas a delação dos demais participantes do delito perpetrado, há que se provar por outros meios, mesmo que a partir desse, que os fatos novos trazidos pelo colaborador realmente aconteceram.
{C}8. CONCLUSÃO
A verdadeira e robusta diferenciação entre Ética e Direito está de acordo com a cultura de cada Estado e nos seus respectivos desdobramentos. A primeira operando no campo abstrato e o segundo no campo concreto, solucionando conflitos e situações de fato.
Na obtenção de normatização da conduta humana, porém, ambos encontram as mesmas dificuldades para uma formulação concreta e universal.
Nos dias atuais a delação premiada demonstra ser um instrumento utilizado ao combate de crimes cometidos em concurso de agentes ou quadrilhas, não só no Brasil como no mundo todo, onde o objetivo é obter detalhes do iter criminis de um membro que resulte em dados que colaborem com as investigações.
A legislação brasileira é omissa quanto à clareza dos procedimentos haja vista possuirmos diversas legislações que tratam do mesmo instituto, por isso, foram abordados o conceito, valor probatório, funcionamento e as principais características inerentes à natureza jurídica de perdão judicial e ainda analisamos brevemente sua origem histórica, para posteriormente com uso do direito comparado aprofundar as principais características diferenças da delação premiada no Brasil.
Não obstante, o STJ entender que a delação tem natureza de perdão judicial, não há unanimidade ao douto entendimento, pois a delação demonstra ser um meio de prova, mesmo que inominada, pois é inequívoco o seu valor probatório serve para convencer o juiz quanto a materialidade e autoria do suposto fato criminoso.
Portanto, o perdão judicial é afastado, pois só ocorre em casos que as consequências do crime são tão severas ao réu, que a torna dispensável qualquer tipo de punição.
Podemos observar que as diversas legislações e a jurisprudência demonstram ainda falta de clareza procedimental e limites, tornando esse instituto uma incógnita.
Conforme demonstrado, o instituto da delação premiada já vem sendo utilizado há muito tempo pelos poderes dominantes e pelos Estados sem grandes mudanças em sua conceituação e em sua aplicação. Ocorre que, por outro caminho, a humanidade evoluiu e elegeu alguns elementos fundamentais, que afastam dos ordenamentos jurídicos as situações degradantes para o indivíduo.
E um elemento eleito é o princípio da dignidade da pessoa humana, elencado no preâmbulo da carta das Organizações das Nações Unidas – ONU, onde na interpretação moderna desse princípio, as atuações estatais devem se basear na moral para que seus agentes se norteiem por esse caminho.
Ocorre que, o instituto da delação premiada, enraizado na sociedade, é imbuído de uma moralidade suspeita por trazer contido o espírito da traição, onde diversos pensadores afirmam que esse instituto não deve ser utilizado pelas autoridades judiciárias.
Mas o que foi visto é que, diversos países, em sentido contrário, utilizam-se da delação premiada para facilitarem as investigações criminais. E aqui no Brasil, várias leis foram incorporadas para permitir que a delação premiada seja aplicada de forma a combater a essa criminalidade e com resultados práticos inestimáveis em benefício à sociedade.
No presente trabalho, a delação premiada foi analisada quanto a sua constitucionalidade no devido processo legal penal pela vertente dos princípios da ampla defesa e do contraditório, do sigilo processual do instituto, do princípio da publicidade dos atos processuais e do direito ao silêncio que o delator possui.
E de toda análise, pode-se concluir que o instituto da delação premiada, apesar do conteúdo aparentemente imoral, não pode ser afastado da legislação brasileira, pois a inconstitucionalidade dele não é patente.
Também se tem que, todas as teorias, contra e a favor do instituto, são muito bem justificadas, jurídica e logicamente, e nenhuma dessas conseguem afastar a aplicabilidade da delação premiada como um instrumento que não pode ser utilizado na persecução de um bem maior para a sociedade brasileira que é o combate à criminalidade como a corrupção que tanto castiga o país.
Dessa forma, o ponto de consideração inicial é pela aceitação da constitucionalidade da delação premiada como uma ferramenta útil para o combate das organizações criminosas, e as eventuais inconstitucionalidades devem ser analisadas no caso concreto de forma individualizada, e em caso de abusos, ser afastada a aplicação do instituto caso comprovado que em uma situação específica foram violados direitos constitucionais importantes do indivíduo e da aplicação da justiça.
À luz da matéria pesquisada e exposta ao longo deste trabalho, convém registrar algumas considerações conclusivas acerca das principais ideias apresentadas e analisadas.
A criminalidade é um fenômeno que está tomando dimensões que o Estado não consegue conter e esse panorama é sem dúvida questão de política criminal adotada pela administração pública.
Cada vez mais, as organizações criminosas estão mais modernizadas, organizadas, com mais tecnologias, e pior, infiltradas nas administrações públicas, e o Estado continua emperrado em um sistema penal que já não tem efetividade para combater os inescrupulosos da sociedade, que agem sem moral, princípios ou ética, mas sim com ganância e sempre na certeza da impunidade.
Não tendo o Estado meios eficazes para romper a criminalidade, buscou na experiência do direito penal comparado, que admitiu a delação premiada, positivando, no Brasil, o referido instituto na esperança de alcançar os resultados que até então o sistema penal vigente não logrou sucesso.
A finalidade objetivada é sempre no sentido de beneficiar o acusado quando o mesmo contribuir com a investigação, entretanto, com o presente estudo, foi possível perceber que são raras as vezes que o delator recebe o benefício pelas informações fornecidas às autoridades tendo em vista que para ser beneficiado pelo instituto, não basta apenas relato do “caminho do crime”, mas sim fatos reveladores de detalhes não colhidos na investigação, onde somente com a participação do “colaborador” é que seria possível desmembrar toda a ação delituosa.
A efetividade das informações é vista pelos operadores do direito como requisito imprescindível para o colaborador receber a benesse, não bastando somente trazer dados até então desconhecidos e pela falta de efetividade dos novos dados fornecido é que o benefício deixa de ser aplicado.
O Estado pretende com a delação premiar o infrator que trair seus comparsas de empreitadas delituosas, na intenção de receber informações relevantes às investigações policiais e ao processo penal.
Na verdade, espera que o delinquente faça o seu trabalho. O grande aspecto a ser discutido centraliza-se no fato de leis infraconstitucionais irem contra os princípios já consagrados pela Carta Magna, e mesmo assim serem utilizadas no nosso sistema jurídico.
A quem defenda que o instituto deixa às favas o devido processo legal, vez que não há observância do contraditório e da ampla defesa, mas a nosso ver, traz imenso benefício à sociedade e o objetivo maior é a defesa deste.
No tocante ao seu valor como prova, somente pode ser acolhida em consonância com outras provas dos autos observando o princípio da inadmissibilidade da obtenção e aproveitamento das provas ilícitas e/ou ilegítimas, o pleno contraditório e o direito à ampla defesa como regra primordial do Estado Democrático de Direito que tanto defendemos.
A delação não poder ser o único meio do Estado de obter informações acerca dos crimes praticados por uma organização criminosa, pois inadmissível, entretanto, não impossível de imaginar, que o denunciado seja coagido a prestar informações para receber um suposto prêmio e, assim, ter seu direito constitucional de permanecer em silêncio violado.
Em que pese ser a delação premiada vista como trunfo ao combate da criminalidade, esta deve ser acrescida, juntada a outros meios de prova para assim não violar os direitos e garantias sedimentados e erigidos ao grau de dogma constitucional.
Assim, não deve o Estado ceder a um instituto que pode aparentemente ser contrário aos princípios constitucionais, sob pena de declarar a falência do sistema investigatório policial e do processo penal em nome de desmantelar as organizações criminosas com a finalidade de combater a criminalidade.
O crescimento dos delitos somente irão deixar de existir efetivamente quando o Estado, sozinho, puder combatê-la de maneira humana, segura e igual para todos. Conclui-se que o Direito Penal, consagrado em um Estado Democrático de Direito, somente será legítimo quando combater com eficácia a criminalidade, de maneira a conseguir diminuir a violência que grassa a sociedade, ao mesmo tempo em que observa as garantias constitucionais de seus indivíduos.
Portanto, a delação premiada deve ser vista com cautela no sistema penal brasileiro – mesmo sendo um eficaz meio para se combater a criminalidade, tendo em vista os princípios basilares do direito objetivo do Estado em aplicar a pena para se obter o arrependimento pelo crimes cometidos e a reintegrar à sociedade o delinqüente, insculpido nos princípios garantidores de um processo penal justo.
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