Impeachment brasileiro: a inutilidade de se discutir o fato criminoso

13/04/2016 às 10:16
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A discussão sobre a existência ou não de crime de responsabilidade, juridicamente, é inútil. Tanto o recebimento da denúncia quanto o julgamento são atos políticos, semelhante às decisões de um juri popular. Há uma dissociação entre meio e fim.

A grande discussão jurídica sobre o impeachment, que vem dividindo o país, diz respeito à existência de crime de responsabilidade cometido pela Presidente da República. De um lado, há aqueles que apoiam o impeachment, elencando uma série de crimes de responsabilidade praticados pela Dilma, em especial as famosas pedaladas fiscais. De outro, há os contrários, sob o argumento de que a presidenta não cometeu nenhum crime de responsabilidade e, com isso, estaríamos diante de um verdadeiro golpe.

Na teoria é um belo debate, muito embora profundamente contaminado com intolerâncias ideológicas. Na prática, é um debate inútil, pois o processo de impeachment é eminentemente político: pouco importa se há ou não crime de reponsabilidade praticado. O que importa é se há parlamentares suficientes para afastar a presidenta.   

Em linhas gerais, o processo de impeachment se passa no órgão legislativo e, no Brasil, a Câmara Federal deve autorizar a instauração do processo e o Senado Federal deve julgá-lo:

“Art. 51 da Constituição de 1988. “Compete privativamente à Câmara dos Deputados:

I - autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado;”

Art. 52 da Constituição de 1988. ”Compete privativamente ao Senado Federal:

I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;”

Como se vê, quem decide se houve ou não a configuração de crimes de responsabilidade são os parlamentares. Ao contrário de um juiz que deve fundamentar juridicamente uma sentença proferida, sob pena de nulidade e posterior cassação da decisão, os parlamentares decidem de acordo com sua própria consciência, semelhante ao que ocorre no julgamento dos jurados no Tribunal do Júri.

Tanto um jurado quanto um parlamentar podem condenar ou impeachmar alguém por qualquer motivo, afinal, não há necessidade de fundamentar a decisão proferida. Ambos podem decidir pela condenação do acusado (ou impeachmado) por razões de preconceito racial, sexual, por discordâncias ideológicas, ou por qualquer outro motivo. O que terão que fazer é tão somente opinar, em silêncio, por “guilty or not guilty”; impeachment ou não impeachment.

Contudo, há diferenças substanciais: o Júri é dividido em duas fases, de modo que na primeira fase um Juiz de Direito deve se convencer da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria. Somente nessa hipótese haverá o julgamento político pelos jurados, que deverão decidir apenas sobre fatos relacionados a crimes contra a vida.

Por outro lado, no impechment todo o processo é decidido politicamente pelos parlamentares.  A Câmara Federal irá decidir sobre a abertura do procedimento e o Senado Federal irá julgar se houve o cometimento de algum dos diversos tipos de crimes de responsabilidade elencados no art. 85 da Constituição e em uma série de dispositivos da Lei nº.1079/50 – alguns, diga-se de passagem, extremamente abstratos. Pode-se dizer que é praticamente impossível não haver uma interpretação que impute a qualquer governador, prefeito e presidente do país o cometimento de algum crime de responsabilidade – basta algum ato contrário à Constituição. 

Embora a Constituição consagre o sistema de governo brasileiro como Presidencialista e determine, no contexto dos mandatos fixos inerente a esse sistema, que o Presidente da República somente poderá ser afastado do cargo (impeachment) em caso de cometimento de crimes de responsabilidade, na prática a decisão será eminentemente política, pouco importando a fundamentação do juízo dos parlamentares.

Recentemente, no julgamento da ADPF 378, ocasião em que o STF decidiu sobre o rito do impeachment, o Min. Luis Roberto Barroso, redator do acórdão, ressaltou a natureza política do julgamento realizado pelo parlamento:

“Apresentada denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, compete à Câmara dos Deputados autorizar a instauração de processo (art. 51, I, da CF/1988). A Câmara exerce, assim, um juízo eminentemente político sobre os fatos narrados, que constitui condição para o prosseguimento da denúncia. Ao Senado compete, privativamente, processar e julgar o Presidente (art. 52, I), locução que abrange a realização de um juízo inicial de instauração ou não do processo, isto é, de recebimento ou não da denúncia autorizada pela Câmara.” (grifo nosso)

Em suma, o Ministro afirma o caráter político das decisões dos parlamentares, de modo que o judiciário somente irá interferir em questões procedimentais, como aquelas que dizem respeito à garantia de defesa. Por isso, justamente pelo caráter político da decisão parlamentar, o judiciário jamais deverá interferir no mérito da decisão que afasta ou não o presidente.

O político e jurista Michel Temer[1], personagem central (e, diga-se de passagem, o principal interessado) das discussões políticas que envolvem o afastamento da Presidente Dilma Roussef, também já escreveu sobre o caráter eminentemente político do processo de impedimento:

Neste tema, convém anotar que o julgamento do Senado Federal é de natureza política. É juízo de conveniência e oportunidade. Não nos parece que, tipificada a hipótese de responsabilização, o Senado haja de, necessariamente, impor penas. Pode ocorrer que o Senado Federal considere mais conveniente a manutenção do Presidente no seu cargo. Para evitar, por exemplo, a deflagração de um conflito civil; para impedir agitação interna. Para impedir desentendimentos internos, o Senado, diante da circunstância, por exemplo, de o Presidente achar-se em final de mandato, pode entender que não deva responsabilizá-lo. (grifo nosso)

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Se todas as decisões do processo são eminentemente políticas, não há qualquer relevância jurídica de se discutir se há ou não determinado crime de responsabilidade. Se não há necessidade de fundamentação, pode-se haver impeachment por qualquer motivo.

No fim das contas, haverá impeachment quando o cenário político proporcionar uma maioria de parlamentares que desejem, por qualquer motivo, seja por cometimento de crime de responsabilidade, seja por discordâncias políticas e ideológicas, retirarem o Presidente da República do poder.

Contudo, a constatação de que o impeachment pode ser deflagrado por qualquer motivo não encontra guarida na Constituição brasileira, que exige a verificação de crime de responsabilidade cometido pelo chefe de poder.

A finalidade do impeachment é a de somente afastar o chefe de poder que cometa algum crime tido como grave pelo ordenamento jurídico. Vale frisar, para ocorrer o impeachment é necessário (ou deveria ser) a verificação de um determinado tipo de crime, que a Constituição brasileira de 1988 definiu como sendo “crimes de responsabilidade”.

Mas se o processo (instrumento) é eminentemente político, questiona-se: será que o impeachment, tal como ele é regulamentado, é realmente capaz de satisfazer a sua finalidade?

A resposta só pode ser negativa. Se todas as decisões são políticas, não há qualquer relevância de se discutir se há ou não determinado crime de responsabilidade. Se não há necessidade de fundamentação, pode-se haver impeachment por qualquer motivo. Na prática, a exigência constitucional de que se apure o cometimento de crime de responsabilidade não passa de uma letra morta.

O que vivenciamos hoje é uma completa dissociação entre meio e fim; entre o processo de impeachment – julgamento político - e a sua finalidade – afastamento do chefe de poder somente em caso de cometimento de crime de responsabilidade.

As grandes celeumas sobre o tema surgem justamente dessa contradição: alguns irão dizer, com razão, que será injusto o afastamento do Presidente da República caso não se configure crime de reponsabilidade, uma vez que a existência de crime é requisito fundamental para o impeachment; outros irão afirmar, também com lucidez, que não há qualquer golpe institucional em curso, uma vez que o impeachment é previsto na Constituição, que o procedimento foi corretamente seguido e que a decisão final foi proferida pelos parlamentares, conforme manda a Constituição.

Enquanto uns defendem a finalidade do instituto – “sem crime é golpe” -, outros defendem a correção dos seus meios – “o processo seguirá os tramites legais e está previsto na Constituição”. Mais intensamente, a discussão desemboca sobre a existência ou não de crime de responsabilidade.

Nada disso importa juridicamente.

Talvez fosse o caso de se exigir uma maior clareza do ordenamento jurídico, de modo que o povo brasileiro soubesse que o presidente por ele eleito pode ser destituído, a qualquer momento, em razão de perda de apoio parlamentar. A Constituição poderia deixar isso claro, seria mais honesto institucionalmente.


Nota

[1] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 171/172.


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