CAPÍTULO 8
Perspectivas teóricas sobre a construção de categorias do fato jurídico processual
Partindo da conclusão de que é impossível sistematizar uma teoria sobre existência, validade e eficácia no processo a partir dos elementos já existentes na dogmática jurídica, resta indagar quais as possibilidades metodológicas de construção de tal teoria "partindo-se do início". Nesse momento torna-se evidente a necessidade da prévia discussão dos temas contidos na primeira parte desse trabalho, pois a construção de um estudo novo não se faz sem a quebra do tabu de que até a criatividade deve basear-se na cópia, com algumas adaptações do que já existe. Porém, isso não significa "dar asas à imaginação" e não se fundamentar em nada que já tenha sido estudado. O que é necessário é a coragem de identificar qual é a metodologia que o assunto requer pela sua própria natureza, adequar-se à natureza dos fatos, mesmo que não haja discursos (preferencialmente de autoridades) que possam servir como apoio. Isto é, é preciso investigar como, por exemplo, Pontes de Miranda pensou para organizar as categorias do fato jurídico no Direito Privado, mesmo que ele não tenha escrito nada sobre a sua metodologia. Para isso, é preciso acreditar nos processos da razão, e não apenas na persuasão do discurso.
A construção de categorias é um problema no mínimo tão antigo quanto Aristóteles. Baseia-se na identificação da essência dos objetos e sua organização em conjuntos de acordo com suas semelhanças e diferenças. Cada categoria identifica-se pelo seu denominador comum. Para falarmos em categorias de seres é preciso deixar bem claro que elas só existem em função de coisas, e não apenas de palavras, pois, como bem nos explicaram os lingüistas, uma palavra adquire significados diferentes de acordo com o contexto no qual se insere. A partir dessa constatação tão óbvia, alguns filósofos chegaram, inclusive, a negar a realidade das coisas em si, como se os fatos fossem apenas apêndices da linguagem e não vice-versa Essa discussão matusalêmica será vista durante o capítulo, e, avisa-se aos navegantes partidários do moderno ceticismo lingüístico, que se quiserem negar qualquer status de real aos fatos, coloquem desde já o livro de volta à prateleira.
Como vemos na pesquisa de Gadamer, essas questões sobre as palavras e as coisas são muito anteriores a Foucault ou Wittgenstein:
"No Crátilo de Platão, são postas em discussão duas teorias que procuram determinar, por caminhos diversos, a relação de palavras e coisas: a teoria convencionalista vê a única fonte dos significados das palavras na univocidade do uso lingüístico que se alcança por convenção e exercício. A teoria contrária defende uma coincidência natural de palavra e coisa, designada pelo conceito de correctura. É evidente que se trata de duas posições extremas, e que portanto objetivamente não necessitam se excluir".
"Platão pretende mostrar que na linguagem, na pretensão da correctura lingüística, não se pode alcançar nenhuma verdade pautada na coisa, e o ente tem de ser conhecido sem as palavras, puramente a partir dele mesmo. Com isso se desloca radicalmente o problema para um novo nível. A dialética, a que aponta esse contexto, pretende evidentemente confiar o pensamento a si mesmo e a seus verdadeiros objetos (Gegenstände), abrindo as "idéias", de maneira tal que, com isso, se supere o poder das palavras e sua tecnificação demoníaca na arte da argumentação sofística. A superação do âmbito das palavras, pela dialética não quer dizer, obviamente, que exista realmente um conhecimento isento de palavras, mas, unicamente, que o que abre o acesso à verdade não é a palavra, mas pelo contrário: que a "adequação" da palavra só se poderia julgar a partir do conhecimento das coisas".
É possível, a partir dessa explicação, entender que a pesquisa hermenêutica é uma tentativa de adequação, da melhor forma possível, das idéias ou das coisas com suas representações verbais. A realidade desse fenômeno pressupõe a possibilidade da comunicação, e a prova do desentendimento e do equívoco a justifica, pois não pode haver erro sem um parâmetro de certeza, o que nos remete ao paradoxo do relativismo.
O próprio Platão reconhece a praticidade desse fenômeno:
"E se só o um pouco correto consegue ainda reproduzir em si os contornos da coisa, isso pode bastar para que seja utilizável".
Voltando a Gadamer e o fenômeno da interpretação:
"Pelo caminho de nossa análise do fenômeno hermenêutico damos de cara com a função universal da lingüisticidade. Na medida em que o fenômeno hermenêutico se revela em seu próprio caráter lingüístico, possui por si mesmo um significado universal absoluto. Compreender e interpretar se subordinam de uma maneira específica à tradição lingüística. Mas, ao mesmo tempo, vão mais além dessa subordinação, não somente porque todas as criações culturais da humanidade, mesmo as não lingüísticas, pretendem ser entendidas desse modo, mas pela razão muito mais fundamental de que tudo o que é compreensível tem de ser acessível à compreensão e à interpretação. Para a compreensão vale o mesmo que para a linguagem. Não se pode tomar, nem a uma nem a outra, somente como um fato que se pudesse investigar empiricamente. Nenhuma das duas pode ser jamais um simples objeto, mas ambas abrangem tudo o que, de um modo ou de outro, pode chegar a ser objeto".
Ou seja, para Gadamer, a interpretação depende tanto dos fatos como da linguagem. No entanto, o hermeneuta volta à Platão para ressaltar a importância da adequação correta da linguagem com o objeto:
"O uso incorreto da linguagem, pelos sofistas, procede justamente da ignorância desta genuína possibilidade de verdade da fala. Quando o logos é entendido como representação de uma coisa, ou seja, como a sua abertura, sem distinguir essencialmente essa função de verdade da fala, com respeito ao caráter significativo das palavras, abre-se uma possibilidade de confissão que é própria da linguagem. Pode-se chegar a crer que a coisa é possuída na palavra. Atendo-se à palavra, estaríamos pois no caminho legítimo do conhecimento. Só que então vale também o inverso, onde há conhecimento, a verdade da fala tem de ser construída com a verdade das palavras, como seus elementos. E assim como se pressupõe a "correctura" dessas palavras, ou seja, sua adequação natural às coisas nomeadas por elas, estará permitindo também interpretar os elementos dessas palavras, as letras, na perspectiva de sua função de ser cópia das coisas. Essa é a conseqüência a que Sócrates obriga o seu interlocutor a chegar".
"Essa subordinação, que é logos, é pois, muito mais que a mera correspondência de palavras e coisas, tal como, em última análise, estaria correspondendo à teoria eleática do ser e como se pressupõe a teoria da cópia. Precisamente porque a verdade que o logos contém não é a da mera recepção, não é um mero deixar aparecer o ser, mas coloca o ser sempre numa determinada perspectiva, reconhecendo e atribuindo-lhe algo, o portador da verdade, e, conseqüentemente também de seu contrário, não é palavra, mas o logos. Daí segue-se também necessariamente que, a essa estrutura de relações, na qual o logos articula a coisa e precisamente com isso interpreta, lhe é inteiramente secundário seu caráter enunciativo, e, por conseguinte, sua vinculação à linguagem".
Sem adentrar nesse último problema filosófico, sobre a palavra, a verdade e o conhecimento, restringindo-se apenas à questão da possibilidade de se descrever os fenômenos de forma correta, é necessário, então, passar ao estudo da percepção e da natureza das coisas em si. Para isso, remonta-se à Aristóteles e ao estudo da identificação e caracterização dos seres. As categorias aristotélicas dos objetos do conhecimento são: Essência, Quantidade, Qualidade, Relação, Lugar, Tempo, Posição, Estado, Ação e Paixão. O que elas podem informar sobre as categorias de fatos jurídicos? O tempo de muito estudo dirá. Por enquanto, frise-se o que já foi dito: a questão é procurar pensar de forma aristotélica, e não apoiar-se em seus discursos. Pois Aristóteles é um dos melhores, senão o melhor filósofo a tratar de semelhanças entre gêneros e espécies. Basta verificar que toda a lógica derivou de sua obra.
Como será esse método? É o tema da próxima monografia de qualquer pesquisador audaz. Para ficar bem claro e evitar erros de princípios fundamentais, vale a dica de dois historiadores da lógica: Aristóteles trata de categorias de coisas e não de palavras:
"[...]Todavia se ele se pudesse fazer a si mesmo a pergunta, é quase certo que Aristóteles teria respondido que estava a tratar de coisas e não de palavras. A prova mais clara disto é a maneira como junta "ser predicado de qualquer coisa" e "estar em qualquer coisa" como ele faz na caracterização da substância citada acima. Quando ele ilustra a sua noção de "estar em" dizendo que uma certa questão de gramática está no espírito não está a falar de expressões lingüísticas. A resolução verdadeira da ambigüidade parece ser dada por Porfírio quando diz "Porque como as coisas são, assim são as expressões que primeiro as exprimem". Aristóteles está a classificar tipos de seres mas usa as diferenças entre regras para expressões lingüísticas diferentes como chave para as diferenças entre tipos de seres".
CONCLUSÃO
Ao se fazer a crítica sobre a busca da Jurisprudência (Ciência do Direito) do status de ciência, contata-se que ela nunca teve um modelo definido a seguir, por isso "vagou" (e vaga, ainda) por toda a história das sociedades.
A Jurisprudência carece de uma epistemologia, que a faça definir um campo de atuação, com diversos níveis epistemologicamente distintos. A falta de definição desses níveis tem causado verdadeira celeuma, onde misturam-se diversas funções: dogmática, tópicos-retóricos, sistemas normativos, princípios, normas e teorias gerais. Essa indiferenciação é responsável por problemas cognitivos (de entendimento) na aplicação do Direito, com conseqüências sérias. A compreensão desordenada dos fenômenos jurídicos dificulta o trabalho prático dos juristas, gerando infindáveis controvérsias que abarrotam os tribunais, numa intensidade crescente, com questões que poderiam ser resolvidas pela racionalidade. A dependência dos juízes de primeira instância, do "sinal verde" dos tribunais, fomenta uma cultura de insatisfação e falta de confiança na razão jurídica, o que incentiva a necessidade de decisões proferidas por instâncias revisoras.
As teorias gerais no Direito, bem como o desenvolvimento de uma cultura, entre os juristas, mais calcada na racionalidade e menos na casuística, é uma alternativa aos problemas da "crise do Direito". Essas teorias devem ser entendidas como "camadas cognitivas" que integram os sistemas de normas com os princípios valorativos e posturas jurídico-filosóficos.
O Direito Processual, que padece de uma deficiência nas questões de existência, validade e eficácia, beneficiar-se-ia com a construção de uma Teoria do Fato Jurídico inspirada no Direito Privado e adaptada aos princípios referentes à função social do processo. Essa construção deve partir de estudos teórico-sistemáticos criativos, tendo em vista que as condições de divergência entre a doutrina, legislação e jurisprudência não possibilitam uma sistematização coerente.
ANEXO I
Código de Processo Civil
Dispositivos referentes às nulidades
Art. 11. A falta (de outorga do cônjuge), não suprida pelo juiz, da autorização ou da outorga, quando necessária, invalida o processo.
Art. 13. Verificando a incapacidade processual ou a irregularidade da representação das partes, o juiz, suspendendo o processo, marcará prazo razoável para ser sanado o defeito.
Não sendo cumprido o despacho dentro do prazo, se a providência couber:
I - ao autor, o juiz decretará a nulidade do processo;
II - ao réu, reputar-se-á revel;
III - ao terceiro, será excluído do processo.
Art. 113. §2. Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente.
Art. 122. Ao decidir o conflito, o tribunal declarará qual o juiz competente, pronunciando-se também sobre a validade dos atos do juiz incompetente.
Art. 214. Para a validade do processo, é indispensável a citação inicial do réu.
§1. O comparecimento espontâneo do réu supre, entretanto, a falta de citação.
§2. Comparecendo o réu apenas para argüir a nulidade e sendo esta decretada, considerar-se-á feita a citação na data em que ele ou seu advogado for intimado da decisão.
Art. 243. Quando a lei prescrever determinada forma, sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa.
Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.
Art. 245. A nulidade dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão.
Parágrafo único. Não se aplica esta disposição às nulidades que o juiz deva decretar de ofício, nem prevalece a preclusão, provando a parte legítimo impedimento.
Art. 246. É nulo o processo, quando o Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir.
Parágrafo único. Se o processo tiver corrido, sem conhecimento do Ministério Público, o juiz o anulará a partir do momento em que o órgão devia ter sido intimado.
Art. 247. As citações e as intimações serão nulas, quando feitas sem a observância das prescrições legais.
Art. 248. Anulado o ato, reputam-se de nenhum efeito todos os subseqüentes que dele dependam; todavia, a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as outras, que dela sejam independentes.
Art. 249. O juiz, ao pronunciar a nulidade, declarará que atos são atingidos, ordenando as providências necessárias, a fim de que sejam repetidos, ou retificados.
§1 O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte
§2 Quando puder decidir do mérito a favor da parte a quem aproveite a declaração da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato, ou suprir-lhe a falta.
Art. 250. O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem necessários, a fim de se observarem, quanto possível, as prescrições legais.
Parágrafo único. Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados, desde que não resulte prejuízo à defesa.
Art. 333. Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa ônus da prova quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.
Art. 560. Parágrafo único. Versando a preliminar sobre nulidade suprível, o tribunal, havendo necessidade, converterá o julgamento em diligência, ordenando a remessa dos autos ao juiz, a fim de ser sanado o vício.
Art. 618. É nula a execução:
I - se o título executivo não for líquido, certo e exigível;
II - se o devedor não for regularmente citado;
III - se instaurada antes de se verificar a condição ou de ocorrido o termo, nos casos do art. 572.
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II – as provisões de alimento e de combustível, necessárias à manutenção do devedor e de sua família durante um mês;
III – o anel nupcial e os retratos de família;
IV – os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários públicos, o soldo e os salários, salvo para pagamento de prestação alimentícia;
V – os equipamentos dos militares;
VI – os livros, as máquinas, os utensílios e os instrumentos, necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão;
VII – as pensões, as tenças ou os montepios, percebidos dos cofres públicos, ou de institutos de previdência, bem como os provenientes de liberalidade de terceiro, quando destinados ao sustento do devedor ou da sua família;
VIII – os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;
IX – o seguro de vida;
X – o imóvel rural, até um módulo, desde que este seja o único de que disponha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário.
Art. 1.105. Serão citados, sob pena de nulidade, todos os interessados, bem como o Ministério Público.
Inexistência
Art. 37. Sem instrumento de mandato, o advogado não será admitido a procurar em juízo. Poderá, todavia, em nome da parte intentar ação, a fim de evitar decadência ou prescrição, bem como intervir, no processo, para praticar atos reputados urgentes. Nestes casos, o advogado se obrigará, independentemente de caução, a exibir o instrumento de mandato no prazo de quinze (15) dias, prorrogável até outros quinze (15), por despacho do juiz.
Parágrafo único. Os atos, não ratificados no prazo, serão havidos por inexistentes, respondendo o advogado por despesas, perdas e danos.
Da ação rescisória
Art.485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I – se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II – proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III – resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV – ofender coisa julgada;
V – violar literal disposição de lei;
VI – se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;
VII – depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII – houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
IX – fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;
X – a indenização fixada em ação de desapropriação direta ou indireta for flagrantemente superior ou manifestamente inferior ao preço de mercado do objeto da ação judicial.
§1º Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.
§2º É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.
Art. 486. Os atos judiciais, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil.