O descumprimento do contrato de estágio e sua caracterização em vínculo de emprego

23/04/2016 às 19:21
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O presente artigo visa esclarecer sobre a linha tênue existente entre a relação de emprego e o contrato de estágio.

A lei nº 11.788/2008 (Lei do Estágio), estabelece em seu artigo primeiro que o estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos.

Ainda nos artigos seguintes podemos observar que:

Art. 3º O estágio, tanto na hipótese do § 1º do art. 2º desta Lei quanto na prevista no § 2º do mesmo dispositivo, não cria vínculo empregatício de qualquer natureza, observados os seguintes requisitos:

I – matrícula e frequência regular do educando em curso de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e nos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos e atestados pela instituição de ensino;

II – celebração de termo de compromisso entre o educando, a parte concedente do estágio e a instituição de ensino;

III – compatibilidade entre as atividades desenvolvidas no estágio e aquelas previstas no termo de compromisso. (grifos nossos)

§ 1º O estágio, como ato educativo escolar supervisionado, deverá ter acompanhamento efetivo pelo professor orientador da instituição de ensino e por supervisor da parte concedente, comprovado por vistos nos relatórios referidos no inciso IV do caput do art. 7º desta Lei e por menção de aprovação final.

§ 2º O descumprimento de qualquer dos incisos deste artigo ou de qualquer obrigação contida no termo de compromisso caracteriza vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária. (grifos nossos)

A legislação vigente deixa claro que qualquer descumprimento legal ou contratual das obrigações contidas no termo de compromisso do estágio caracteriza vínculo de emprego, mas, como isso realmente pode ocorrer?

A lei de estágio determina que o estudante trabalhe no máximo 06 (seis) horas diárias e 30 (trinta) horas semanais (no caso de estudantes do ensino superior), logo, se o empregador exigir que o estagiário trabalhe por mais tempo será uma clara violação legal e contratual, uma vez que o estagiário estará exercendo jornada elastecida (horas extras), caracterizando flagrante vínculo de emprego.

O exemplo acima é apenas uma das muitas hipóteses que podem ocorrer o vínculo de emprego, podemos ainda mencionar o uso do estudante como “boy” do escritório, ou qualquer outra atividade que desvie o previsto em seu contrato, bem como, viole a lei.

No que se refere aos requisitos formais e materiais do contrato de estágio temos um elucidativo julgado do Tribunal Superior do Trabalho, do Ministro e doutrinador Maurício Godinho Delgado:

A correção e regularidade do estágio estão dadas pela ordem jurídica através de dois tipos de requisitos jurídicos: os formais e os materiais.

Segundo a Lei 6.494/77, são requisitos formais:

a) a qualificação das partes envolvidas no estágio (estudante-trabalhador) e tomador de serviços (pessoas jurídicas de Direito Privado, órgãos da Administração Pública e Instituições de Ensino);

b) celebração de um termo de compromisso entre o estudante e a parte concedente do estágio;

c) a interveniência da Instituição de Ensino no encaminhamento do estagiário;

d) a concessão de seguro de acidentes pessoais;

e) a bolsa de complementação educacional (requisito não obrigatório, tendo em vista a possibilidade de prestação graciosa de estágio).

Ademais, enquadram-se como requisitos materiais:

a) realização do estágio em unidades com condições reais de proporcionar experiência prática de formação profissional ao estudante (§ 2º, ab initio, do art. 1º da Lei n. 6.494/77);

b) real harmonia e compatibilização entre as funções exercidas e o estágio e a formação educativa e profissional do estudante em sua escola, observado o respectivo currículo escolar;

c) efetivos acompanhamento e supervisão pelo tomador de serviços, de modo a viabilizar a real transferência de conhecimentos técnico-profissionais;

d) proporcionar efetiva complementação do ensino e aprendizagem, em consonância com os currículos, programas e calendários escolares.

Verifica-se, então, que o contrato de estágio tem formalidades especiais, imperativas à sua configuração. Caso não atendidas tais formalidades (requisitos formais), descaracteriza-se a relação jurídica de estágio.

A par disso, cabe ainda ao intérprete conclusivo do Direito verificar a realização da efetiva pertinência e efetividade do núcleo substantivo do estágio (requisitos materiais), consistente na compatibilidade e harmonia entre o trabalho prestado e a escolaridade regular do estudante-estagiário.

Não percebida, concretamente, essa função educativa e formadora do estágio, desenquadra-se o vínculo praticado do modelo excetivo previsto na Lei n. 6.494/77, despontando a figura genérica da relação de emprego.

A figura do estágio remete o analista à oportuna reflexão sobre a distribuição do ônus probatório no processo do trabalho. Admitida a prestação do trabalho pelo tomador de serviços (no caso, parte concedente do estágio), será deste o ônus de provar a existência de fato modificativo da relação jurídica existente. É que incide, no caso, a presunção de contrato empregatício, por constituir esse tipo de vínculo o padrão genérico e dominante de contratação de trabalho no mundo contemporâneo (Súmula 212/TST).

Contudo, efetuando o réu prova documental dos requisitos formais do estágio, passa ao autor da ação o ônus de evidenciar que tais documentos não espelham a modalidade de relação jurídica neles informada. É que, no caso, recai sobre a parte que alega a não veracidade do conteúdo de documentos o ônus de comprovar suas alegações (art. 389, I, CPC).

Em conclusão, desde que evidenciados, processualmente, os requisitos formais do estágio (prova documental, sob ônus da defesa), caberá ao autor demonstrar que os requisitos materiais, contudo, não emergem na relação jurídica trazida a exame judicial (prova não necessariamente documental)." (Processo: RR - 197500-59.2001.5.15.0014 Data de Julgamento: 18/12/2012, Relator Ministro: Mauricio Godinho Delgado, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 01/02/2013).

Assim, resta claro que para a validade do contrato de estágio, imperiosa a observância dos requisitos formais e materiais, do contrário existirá relação empregatícia, podendo o estudante requerer todas as verbas trabalhistas devidas.

Tanto o empregado quanto o próprio estagiário devem conhecer todos os requisitos formais para facilmente acusar qualquer inobservância. Inúmeras são as fraudes nas relações de emprego que ocorrem constantemente.

Reside no estagiário o sentimento mais nobre de esperança em seu futuro profissional, basta que uma oportunidade lhe seja dada no mercado. Infelizmente alguns empregadores violam friamente as esperanças e perspectivas dos estudantes ao contratar estagiários para realizar funções que em nada contribuem com seu aprendizado e futura profissão.

Sabendo que não há qualquer vínculo de emprego nos contratos de estágio, alguns empregadores pensam estar contratando “mão-de-obra qualificada barata”, sem qualquer respeito à legislação vigente, nem mesmo ao próprio estagiário que dispõe de seu tempo e conhecimento acadêmico atualizado, em prol do empregador.

Registre-se, ainda, que a Instituição de Ensino Superior deve supervisionar o estágio de seus acadêmicos, deve haver acompanhamento por professor orientador da mesma, tudo nos termos da legislação vigente.

Os relatórios de estágio são de suma importância para que essa orientação e fiscalização possa ocorrer de forma eficiente, pois, é por meio dela que o estagiário demonstra o progresso realizado no ambiente laboral, ou se seus serviços estão sendo desvirtuados pela odioso pensamento patronal de “mão-de-obra qualificada barata”.

As atividades desempenhadas pelo estagiário devem disponibilizar experiência prática de formação profissional, bem como, haver harmonia e compatibilização nas funções desenvolvidas no estágio e as disciplinas ministradas pela instituição de ensino, devendo tudo estar em conformidade com o currículo, programa e calendário acadêmicos.

Importante deixar claro ainda que o ônus de provar as atividades desenvolvidas pelo estagiário é do patrão, pois se trata de fato extintivo de um direito, na forma do artigo 818, da CLT.

Portanto, se o estágio tiver irregularidade formal, sem orientação, supervisão e tampouco avaliação do estágio no que diz respeito às atividades complementares à formação exercidas pelo acadêmico, seguramente irá acarretar a nulidade do referido contrato de estágio, com o consequente reconhecimento de vínculo empregatício, nos termos do artigo 3º, § 2º da Lei 11.788/2008, podendo o estagiário pleitear seus direitos trabalhistas com o devido reconhecimento do vínculo empregatício entre as partes.

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Reconhecido o vínculo de emprego, o patrão deverá anotar a CTPS do estudante, além do pagamento das seguintes verbas rescisórias: saldo de salário, aviso prévio, férias (se houver), férias proporcionais, ambas acrescidas do terço constitucional, décimo terceiro salário proporcional (se houver), e décimo terceiro salário proporcional, além de comprovar os depósitos fundiários, inclusive a multa de 40% sobre a totalidade do contrato.

Outrossim, reconhecido o vínculo de emprego, se for evidente a ausência do pagamento das verbas rescisórias no prazo legal, será devido ainda ao estagiário a multa prevista no artigo 477, § 8º da CLT e 467 da CLT.

Assim corrobora decisão proferida pelo TST no processo RR-42200-78.2001.5.09.0012, vejamos:

"(...) O vínculo de emprego foi rejeitado pela 12ª Vara do Trabalho de Curitiba, mas reconhecido pelo TRT do Paraná, que, ao concluir válido o contrato entre as partes, determinou o pagamento da multa do artigo 477, parágrafo 8º, da CLT sobre as verbas trabalhistas. Ao analisar o recurso da empresa no TST, o ministro Guilherme Caputo Bastos, relator na Segunda Turma, concluiu ser legítima a imposição da multa porque, no caso em questão, não havia dúvidas de que as verbas foram pagas fora do prazo, e também não existiam provas de que o atraso no pagamento tenha sido por culpa do empregado. (...)".

Ocorrendo violação patronal ao contrato de estágio, gerará assim o vínculo de emprego, o empregador poderá ser condenado ainda na justiça a entregar as guias TRCT (código 01), e CD-SD para que o estudante possa fazer jus ao benefício do seguro-desemprego (caso cumpra os requisitos), sob pena de pagamento da respectiva indenização substitutiva, conforme entendimento consagrado na Súmula 389 do TST, cujos valores deverão ser apurados em conformidade com as regras estabelecidas nas Leis 7.998/90 e 8.900/94, bem como Resoluções do CODEFAT, respeitando-se o teto do benefício.

Súmula nº 389 do TST

SEGURO-DESEMPREGO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. DIREITO À INDENIZAÇÃO POR NÃO LIBERAÇÃO DE GUIAS. (conversão das Orientações Jurisprudenciais nºs 210 e 211 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005

I - Inscreve-se na competência material da Justiça do Trabalho a lide entre empregado e empregador tendo por objeto indenização pelo não-fornecimento das guias do seguro-desemprego. (ex-OJ nº 210 da SBDI-1 - inserida em 08.11.2000) (grifos nossos)

II - O não-fornecimento pelo empregador da guia necessária para o recebimento do seguro-desemprego dá origem ao direito à indenização. (ex-OJ nº 211 da SBDI-1 - inserida em 08.11.2000) (grifos nossos)

Precedentes:

Item I

ERR 205237/1995 - Min. Rider de Brito

DJ 18.09.1998 - Decisão unânime

RR 249360/1996, 1ªT - Min. Regina Rezende Ezequiel

DJ 16.10.1998 - Decisão unânime

RR 303599/1996, 2ªT - Min. José Bráulio Bassini

DJ 26.03.1999 - Decisão unânime

RR 295642/1996, 3ªT - Min. José Zito Calasãs Rodrigues

DJ 19.02.1999 - Decisão unânime

RR 221408/1995, Ac. 4ªT 7997/1997 - Min. Milton de Moura França

DJ 03.10.1997 - Decisão unânime

RR 394844/1997, 5ªT - Min. Antônio Maria Thaumaturgo Cortizo

DJ 05.06.1998 - Decisão unânime

Item II

Err 272516/1996 - Min. João Batista Brito Pereira

DJ 10.11.2000 - Decisão unânime

ERR 273704/1996 - Min. Rider de Brito

DJ 26.03.1999 - Decisão por maioria

ERR 224718/1995, Ac. 5722/1997 - Min. Leonaldo Silva

DJ 12.12.1997 -  Decisão unânime

RR 302530/1996, 1ªT - Juiz Conv. João Mathias de Souza Filho

DJ 16.04.1999 - Decisão unânime

RR 376841/1997, 2ªT - Min. José Luciano de Castilho Pereira

DJ 07.08.1998 - Decisão unânime

RR 319964/1996, 4ªT  - Min. Barros Levenhagen

DJ 03.12.1999 - Decisão unânime

Constatadas as disposições contidas na Lei nº 6.494/1977 e, atualmente, na Lei nº 11.788/2008, o estágio não cria vínculo empregatício de qualquer natureza. No entanto, ocorrendo desvio de finalidade, o estágio pode fomentar na configuração de exata relação de emprego, diversa da relação de natureza civil, quando a realidade revelar os requisitos previstos nos artigos 2º e 3º, da CLT.

CONCLUSÃO

Assim, podemos observar a existência de uma linha muito tênue entre o contrato de estágio e o vínculo empregatício, podendo facilmente ser rompida pela inobservância patronal da legislação em vigor, fazendo com que os estagiários realizem atividades diversas do que realmente deveriam fazer em harmonia com sua grade curricular. Ocorrendo isso, o estudante deixa de ser estagiário e passa a ser funcionário, podendo requerer na Justiça o pagamento integral das verbas trabalhistas e contratuais, bem como, a indispensável anotação na sua CTPS.

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Sobre o autor
Emerson Correia Potiguara

Sócio do escritório Correia Potiguara Advocacia. Pós-Graduando em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania e especialista em Direito Tributário pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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