Breve visão sobre a função social do contrato

24/04/2016 às 12:56
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Em um tempo no qual avulta a necessidade de estabelecimento de relações solidárias entre as pessoas, que preservem e fomentem a dignidade humana, o desenvolvimento e a melhor ordenação do agrupamento social, impõe-se situar e compreender o contrato.

Capítulo 1
Introdução

Em um tempo no qual avulta a necessidade de estabelecimento de relações solidárias entre as pessoas, que preservem e mesmo fomentem a dignidade humana, mas, também, o desenvolvimento e a melhor ordenação, como um todo, do agrupamento social, impõe-se situar e compreender o contrato, atentando-se a esse novo paradigma.

Concorre a essa exigência a superveniência do Código Civil de 2002, pautado em princípios de equidade e socialidade que inspiraram sua elaboração e que, em rigor, deram curso à ideia de funcionalização dos direitos.

O contrato, hoje, ostenta não só nova estrutura, como também, e ainda de maior relevância, novo papel a desempenhar, sem desconsiderar seu atributo de exercício de uma liberdade individual, inafastável igualmente ao desenvolvimento da pessoa humana, enquanto tal, lhe reserva para cumprir objetivos sociais eleitos pelo sistema.

Capítulo 2
A Nova Realidade do Contrato

Reflexo da passagem do chamado Estado Liberal para o welfare state, o contrato ganha dimensão nova, que determina sua recompreensão sob o influxo de novos princípios que lhe dão conteúdo.

Se passou a exigir do Estado um diverso papel no campo jurídico e novos valores ganharam relevo, na esfera dos contratos particularmente mercê do fenômeno do dirigismo contratual, em que o Estado intervém, por meio do legislador e do juiz, para assegurar o predomínio dos interesses sociais sobre os individuais.

Cuida-se mesmo de o Estado invadir a autonomia da vontade para, em primeiro lugar por meio da lei, garantir uma desigualdade que faça o papel de equilibrar a desigualdade inversa que a situação das partes intrinsecamente envolve. Daí o exemplo de edição de leis protetivas, tal como, no Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho, as sucessivas leis de locação e, mais recentemente, o chamado Código de Defesa do Consumidor. Significa, ainda, dotar o juiz de meios e modos de alterar as disposições do contrato para corrigir situações de desigualdade, quer desde logo quando da contratação (lesão), quer em momento posterior (onerosidade excessiva).

Tempos atrás, eram basicamente três os princípios fundantes da disciplina do direito contratual. Tratava-se do princípio da liberdade das partes (ou da autonomia da vontade), que incluía a plena liberdade de contratar, do que contratar e de com quem contratar; do princípio da força obrigatória do contratato (pacta sunt servanda) e do princípio da relatividade de seus efeitos (o contrato não prejudica nem favorece terceiros, além das partes contratantes).

Contemporaneamente, a autonomia da vontade se coloca em termos diversos, em que a liberdade de contratar, que lhe dá sustento, não mais pode ser compreendida de modo absoluto. Nem sempre há a escolha de contratar ou não e de com quem contratar. A liberdade contratual está modificada em extensão tal de modo a ensejar se reconheça hoje existente um novo princípio dos contratos, o princípio da autonomia privada.

O princípio da força obrigatória dos contratos cede espaço à verificação de hipóteses em que a rígida aplicação dessa intangibilidade levaria a situação de desigualdade real, mercê de fatos extraordinários que tivessem alterado a base da contratação.

Por fim, o princípio da relatividade dos efeitos do contrato não mais se compadece com a ideia de que o ajuste se insere no contexto social, portanto longe de encerrar um ato isolado praticado pelas partes contratantes, dada a época de hipercomplexidade atual.

Trata-se, hoje, de se identificar novo conteúdo e forma de atuação do princípio da justiça contratual, tão diverso que se pode falar em um novo princípio do direito dos contratos, inserido num modelo de Estado que “aspira à realização de uma justiça efetiva que supere e torne inócua a desigualdade factual das partes”.

Ora, vem de se afirmar que, já em Aristóteles, atentava-se à necessidade de, nas relações entre os particulares, assegurar um equilíbrio que lhes garantisse a igualdade, mediante a atuação de uma justiça que fosse corretiva, justamente, das desigualdades.

Pelo assim chamado princípio objetivo da equivalência entre prestação e contraprestação, procura-se garantir que, entre ambas, haja um valor sensivelmente correspondente, forma por que se realiza o justo contratual. Em se tratando da justa distribuição de ônus e riscos do contrato, o que se procura é uma equilibrada repartição, entre os contratantes, de benefícios e encargos contratuais.

Desta forma, representa o justo contratual uma forma de substancial igualdade na formação e, ainda, no desenvolvimento da relação contratual, que se deve conservar imune de extraordinárias alterações circunstanciais que a desequilibrem, assim desigualando as partes e, quiçá, escravizando uma delas ao ajuste, de que não poderá legitimamente se desvincular. Por estes motivos é que o Estado-juiz vem atuando cada vez mais no sentido de corrigir causas congênitas ou supervenientes de desequilíbrio contratual.

Tratando-se de lesão e de vedação de cláusulas abusivas, em ambas procura-se essencialmente corrigir ou mesmo evitar situação de desequilíbrio, portanto, de maltrato da justiça que deve presidir as relações contratuais, já no momento do nascimento do contrato.

Certamente que na lesão não há, em rigor, como causa da desproporção entre prestação e contraprestação, uma quebra no processo desenvolvido desde a vontade mentalmente formada e aquela ao final manifestada. Bem se vê, não se cuida de erro, dolo ou coação, mais de instrumento de preservação da justiça substancial das contratações, evitando-se que elas sejam manifestamente desproporcionais, desequilibradas e desiguais.

A cláusula abusiva é essencialmente aquela que vem marcada pela unilateralidade, que é resultado da posição de força, de superioridade de uma das partes contratantes, impondo um desequilíbrio contratual, de vantagens e riscos, que a ordem jurídica corrige ou, antes, impede. Seu fundamento, hoje, menos que no abuso do direito e na explicitude da lei, está ligado à exigência de que as contratações decorram de um comportamento leal e de cooperação entre os contraentes. Ou seja, relacionam-se boa-fé objetiva e justiça contratual de tal arte que o comportamento solidário seja o pressuposto necessário para uma contratação justa, que, de seu turno, não se compadece com a previsão de resultado desigual por conta da desigualdade substancial das partes.

Evidente que a desigualdade pode existir nos contratos. O problema está em que essa desigualdade precisa ter sido livre e conscientemente querida. A cláusula ou as cláusulas que a induzem precisam ter sido desejadas, realmente ajustadas, entabuladas na exata conformidade, inclusive com a natureza do contrato que se consuma.

Sob a denominação mais ampla, de alteração das circunstâncias, examinam-se as causas ulteriores de modificação do equilíbrio contratual, que servem a rescindir ou revisar o quanto entabulado pelas partes, a pretexto de salvaguarda desse princípio de equânime distribuição das vantagens e riscos dos ajustes.

Pode-se dizer que é autorizada a revisão do contrato, sem que, por alteração das circunstâncias, se destruísse a relação de equivalência entre prestação e contraprestação e sempre que se frustrasse a finalidade de ajuste. Em diversos termos, no rompimento da relação de equivalência, a prestação de uma parte, para ser cumprida, importa numa onerosidade tal, devido à alteração das circunstâncias, que nela já não se possa enxergar um equivalente da contraprestação contratada.

Não caberia à parte, de quem se espera conduta adequada a um padrão de retidão moral, de lealdade e cooperação nas relações contratuais, exigir da outra uma prestação já assimétrica em virtude de alteração das circunstâncias. Seria, com efeito, uma conduta contrária à boa-fé.

A anormalidade e a imprevisibilidade do evento modificativo das circunstâncias contratuais só podem ser aferidas em função do que razoavelmente exigível que as partes pudessem ter antevisto e previsto, acerca de um evento futuro cuja ocorrência seja de notável probabilidade, considerando o padrão de diligência do homem médio pertencente àquela categoria social, econômica ou profissional do contraente, tudo apreciado em função do caso concreto.

Diferente da boa-fé subjetiva, que é um estado psicológico, a boa-fé objetiva é uma regra de conduta, uma regra de comportamento leal que se espera dos indivíduos, portanto que com aquela não se confunde. Nesse sentido, Fernando Noronha dispõe que no campo contratual, a boa-fé objetiva pode ser compreendida como a expectativa de que a parte, com quem se contratou, agiu e agirá com correção e lealdade.

Denis Mazeaud refere uma nova era do contrato, na qual este deve ser sociável e solidário. Pelo primeiro, tem-se um contrato em que a lealdade impõe conduta que seja transparente, daí decorrente o dever de informar, desde a fase pré-contratual. A referida conduta deve também ser decente, particularmente a do contratante forte, por isso a quem vedada a imposição de cláusulas abusivas, tanto quanto de cláusulas-surpresa ou ininteligíveis; e, ainda, coerente, por exemplo de reprovação a limitações de responsabilidade que firam a natureza ou causa objetica do contrato.

Pelo segundo, o contrato necessariamente deve revelar uma conduta de cooperação, de que decorre o dever de assistência, por exemplo, aconselhando ou advertindo e, mais, executando o contrato de modo a dar o maior proveito à contraparte, e de ingerência na esfera alheia, por exemplo, aconselhando ou advertindo a contraparte sobre algum erro na execução, ou agindo, se está inadimplente, de sorte a evitar prejuízo maior.

Costumeiramente são reconhecidas três básicas funções à boa-fé objetiva, em matéria contratual, sendo elas, interpretativa, supletiva e corretiva do contrato.

Interpretar um contrato, com efeito, significa buscar apreender o alcance não da vontade de cada qual dos contratantes, mas sim do consenso de ambos, do que tenha sido sua intenção comum, objetivada no ajuste. Portanto, se busca a vontade contratual, ou, por outra, interpretar o contrato, inserido em contexto de recompreensão da autonomia da vontade.

Para tanto, o intérprete deve valer-se de elementos do próprio contrato (lugar de entabulação, qualificação das partes, dentre outros dados) ou de elementos chamados extracotratuais, de que é exemplo o comportamento das partes, haurido da conduta por elas ostentada em relação ao objeto do ajuste.

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Na sua função supletiva, a boa-fé objetiva, além de dar suporte à colmatação de lacunas do contrato, cria o que se vem chamando de deveres jurídicos acessórios, isto é, independentes da prestação principal, mas essenciais ao correto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra.

Por fim, em sua função corretiva, a boa-fé objetiva serve ao controle das chamadas cláusulas abusivas. Veja-se, portanto, e em conclusão, que a boa-fé, à luz de novas prerrogativas trazidas ao sistema, cumprirá um papel cada vez mais ampliado, expandindo mesmo, em um ordenamento e uma codificação pautados, fundamentalmente, na preocupação com a eticidade das relações entre as pessoas, a rigor, um comando, mão um conselho, de ordem constitucional.

Capítulo 3
Princípios, cláusulas gerais e função social do contrato

A função social do contrato substancia ainda um princípio estruturante de ordem econômica, em virtude do disposto no art. 170, caput, da Constituição Federal, aí sem olvidar que o contrato, afinal, encerra expressão típica da atividade econômica, servindo, sempre, a dar forma a uma operação econômica, de transferência de riquezas.

Importa considerar que, hoje, não mais se atribui ao princípio apenas a função supletiva de integração, de preenchimento de lacunas. Com efeito, de todo superada a tese de que os princípios sirvam apenas a colmatar lacunas, até, antes de tudo, pela sua própria natureza, de enunciação de valores fundantes do ordenamento, bem assim por conta de sua normatividade.

Impor-se-á analisar se a função social do remanesce sendo um princípio, se, ao contrário, é uma cláusula geral, ou se, em última análise, pode ser identificada como um princípio e uma cláusula geral, simultaneamente. Posta alguma distinção, cumpre que se identifique um e outro conceito.

Como sintetiza Celso Antônio Bandeira de Mello, princípio é, por definição, mandamento nuclear do sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico dispositivo. E, por isso, para o mesmo autor, violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer.

A característica central da chamada cláusula geral, para Karl Engish, está no domínio técnica legislativa, oposta àquela casuística, de antevisão e descrição, pelo legislador, da hipótese fática, muito embora reconheça que ambas não se excluem. Ainda segundo este autor, é a generalidade que dá mobilidade ao sistema e permite que à cláusula geral se amolde um vasto grupo de situações, mercê da atuação judicial integradora.

Em síntese feliz, observa Judith Martins-Costa que a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente aberta, fluida ou vaga, caracterizando-se pela ampla extensão de seu campo semântico. Essa disposição é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato pra que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas. Esse dito mandato conferido ao juiz, vale acrescentar, ainda na esteira da mesma lição, significa a imposição de um reenvio do operador, determinado pela norma, e para a complementação de seu significado, a critérios não definidos no enunciado da cláusula geral, como estaria descrito em regra do tipo casuístico.

A cláusula geral, e aí o ponto a ser realçado, pode ou não conter um princípio; pode, em outras palavras, promover o reenvio a um princípio ou ao valor que ele contempla.

Nesse sentido, então, pode-se perfeitamente dizer que a função social do contrato seja, ao mesmo tempo, uma cláusula geral – do tipo restritivo e regulativo – e também um princípio. Isso porque, enquanto forma legislativa impregnada de deliberada fluidez, a presente cláusula geral reenvia o juiz a um princípio haurido do próprio ordenamento.

Capítulo 4
O conceito de função social do contrato. Seu conteúdo genérico “inter partes”

Em rigor, consoante assevera Fábio Konder Comparato, quando se fala em função, tem-se, em geral, a noção de um poder de dar destino determinado a um objeto ou a uma relação jurídica, de vinculá-los a certos objetivos; o que, acrescido do adjetivo “social”, significa dizer que esse objetivo ultrapassa o interesse do titular do direito – que, assim, passa a ter um poder-dever – para revelar-se como de interesse coletivo.

Como salienta Bobbio, a noção da função que se possa dizer social (solidarismo) e a da individual não são perspectivas dissociáveis. Ao contrário, a análise funcional do direito deve abarcá-las num esmo espectro, em que o Estado atua de modo não só a controlar os comportamentos humanos, mas a dirigi-los a certos objetivos queridos.

Eis aí o contorno primeiro, genérico e básico da função social do contrato. Sua relevância está, antes de tudo, na promoção daqueles objetivos do Estado Social, na eficácia dos valores básicos do ordenamento, o que, em nossa Constituição, constitui preceito expresso, a colocar a discussão fora de qualquer contexto que não seja jurídico, que seja puramente ideológico e, por isso, necessariamente parcial.

No direito brasileiro, já se advertiu que a assunção de uma função social significa que a conformação clássica do contrato, individualista e voluntarista, cede lugar a um novo modelo deste instituto jurídico, voltado a obsequiar os valores e princípios constitucionais de dignidade e livre desenvolvimento da personalidade humana.

Há o princípio da solidariedade social, integrativo do conceito de função social a que o contrato deve voltar-se e de que a igualdade substancial é também uma expressão. Em diversos termos, tem-se o poder de auto-regramento de interesses que as partes possuem, cedendo espaço, ou convivendo, com a exigência de que se o faça de forma socialmente útil, porque em prestígio da igualdade dos indivíduos e, assim, de uma relação mais solidária entre eles, possibilitando que cada um exerça uma igual liberdade jurídico-negocial, de acordo com suas próprias escolhas.

Para Fábio Konder Comparato, a solidariedade social, mais ainda, significa impor a todos deveres positivos de colaboração (situação em que hoje devem ser colocados os contratantes) e leva em conta as diferenças de condição social.

Como não se nega, o contrato deveu e ainda deve adequar-se à  realidade econômica. Vale dizer, se o contrato estandardizado serve a racionalizar a atividade da empresa, isso só pode ser tomado se interessar também ao grupo de consumidores, o que apenas ocorrerá se a racionalização, e o contrato, que é seu instrumento, prestarem-se a possibilitar o melhor acesso ao consumo, frise-se, como resultado justamente do efeito distributivo que o contrato deve conter e como corolário, ainda, de que o acesso à propriedade, hoje um direito e garantia individuais, deve ser facilitado. É a função social do contrato como projeção da função social da propriedade.

Portanto, o solidarismo social ostenta um primeiro contorno, que vale para quaisquer das relações jurídicas, paritárias ou não, de, justamente, preservar uma substancial igualdade entre as pessoas, garantindo que suas contratações sejam justas e, mais, marcadas pelo padrão e exigência de colaboração entre os contratantes, assim socialmente úteis, enquanto palco de prestígio das escolhas valorativas do sistema. De outra parte, significa também a promoção da justiça distributiva, quando fomenta o acesso a bens e serviços, em especial, embora não só, ao se cuidar de relações profissionais e, aí, de intrinsecamente desiguais.

Blibliografia

Godoy, Claudio Luiz Bueno de - Função Social do Contrato - 4a edição - São Paulo: Saraiva, 2013.

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